ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O andarilho
Nathalia Lavigne | Edição 69, Junho 2012
Matt Green reconheceu as folhas em formato triangular e bordas recortadas a metros de distância. Animado, interrompeu a conversa, atravessou a rua de repente e foi conferir de perto o arbusto que crescia entre a calçada e a fenda do muro de uma casa. Enquanto ajustava a câmera do celular para registrar o canteiro, explicou se tratar de uma lamb’s quarter, planta da espécie Chenopodium album (ou ansarinha-branca, em bom vernáculo). É bastante nutritiva, prosseguiu, ótima para preparar saladas e a última moda nos restaurantes naturais no circuito hipster de Nova York. Como se quisesse ilustrar seu raciocínio, Green mandou ver três folhas ali mesmo, a seco. “O gosto é muito bom, lembra espinafre”, empolgou-se.
Caso fosse flagrado por algum morador daquela região residencial do Queens, o americano de calça cargo, barba volumosa e tênis surrado passaria tranquilamente por um turista de hábitos excêntricos, talvez um botânico. Aos 32 anos, Matt Green pode até ter o encantamento de quem descobre um lugar pela primeira vez, mas é provável que nenhum morador conheça Nova York tão bem quanto ele – pelo menos no que diz respeito à extensão territorial.
Green interrompeu a carreira de engenheiro civil em janeiro. Desde então, está empenhado em atingir um objetivo nada modesto: caminhar por todas as ruas da cidade, sem exceção. O plano envolve não só as quadras planejadas de Manhattan, de onde os turistas brasileiros raramente saem, mas também as vielas e avenidas dos outros quatro distritos de Nova York: Queens, Brooklyn, Staten Island e Bronx.
Ele estima levar no mínimo mais dois anos para alcançar a façanha de percorrer os 10 720 quilômetros que ainda faltam e fechar o total de aproximadamente 12 800 quilômetros – estão incluídos nessa conta o percurso das pontes ligando os bairros e as ruas por onde ele inevitavelmente vai passar mais de uma vez. Para isso, Green tenta cumprir um expediente de seis horas por dia de caminhada, revezando-se entre as passadas e os registros fotográficos abundantes. São cerca de 100 cliques por dia, basicamente da vegetação urbana, de placas com frases curiosas e de portões exóticos. “Passei a aprender sobre flores”, contou. “Quando vou pesquisar, sempre descubro uma espécie nova.”
Além da rotina de 16 quilômetros diários, que cumpre de cinco a seis vezes por semana, Matt Green ainda passa parte da madrugada atualizando o site sobre o projeto (imjustwalkin.com). Ele diz gastar quase dez horas por dia publicando fotos, pesquisando sobre os lugares por onde passou e assinalando no mapa da cidade as ruas devidamente marcadas com suas pegadas. O site serve também para que o engenheiro arrecade doações para não precisar trabalhar enquanto cumpre o desafio. Até abril, ele já tinha levantado quase 9 mil dólares, o suficiente para lhe garantir tranquilidade até o início de 2013, se mantiver os gastos espartanos de pouco mais de 15 dólares por dia.
O cálculo não inclui, claro, as cifras do aluguel na maior cidade americana. Em tempos de crise financeira, Green é um sem-teto por opção. Pernoita na casa de amigos, levando como bagagem apenas a mochila e o laptop. Seu lugar de pouso serve como base para as áreas que ainda precisa percorrer. “Tento sempre andar perto da região em que estou hospedado, assim não preciso pagar para usar o metrô”, explicou. Ele disse já ter passado por uns quinze endereços diferentes.
A rotina nômade não é novidade para Matt Green. Em 2010, cansado de passar o dia trancado num escritório de engenharia, no qual traçava rotas de estradas, ele trocou o mapa pela realidade. Decidiu cruzar os Estados Unidos de costa a costa, saindo de Rockaway Beach, no Queens, até a praia homônima banhada pelo Pacífico, no estado do Oregon. A pé, of course. Levou cinco meses para percorrer os quase 5 mil quilômetros, andando uma média de 32 quilômetros por dia.
Antes disso, em 2008, Green havia passado pelas mais de 400 estações de metrô de Nova York, num intervalo de 24 horas e dois minutos. Dessa vez, pelo menos, teve o conforto de viajar sentado na maior parte do tempo, o que para ele não parece dizer muita coisa.
Quebrar recordes também não é o objetivo do engenheiro. Se quisesse entrar para o Guinness, teria que provar que esteve mesmo em todas as ruas, preocupação que não tem. A julgar pelas anotações caóticas do seu bloco de notas, não será surpreendente se ele acabar se esquecendo de alguma rua.
Mas quem se importa? Green não demonstra obsessão em seguir um método muito preciso. Seu roteiro é algo caótico, inclui vias repetidas e às vezes deixa de lado algumas ruas dos bairros por onde passa. Ele acorda por volta das dez e só costuma decidir que caminho vai trilhar naquele dia minutos antes de sair, quase sempre por volta de meio-dia. Tampouco se priva de mudar de planos no meio de uma rota. Certa vez, conheceu no Brooklyn um grupo de monges budistas do Camboja e trocou a caminhada por algumas horas de meditação no templo.
Na escaldante tarde de maio em que ele riscou da sua checklist sete ruas e quatro avenidas do Queens, a profusão de flores de espécies variadas disputava sua atenção com esferas prateadas – aparentemente a última tendência na decoração de portões. Deve ter sido difícil eleger um deles para a série “Portão do Dia” de seu site.
As placas também estavam especialmente curiosas naquela vizinhança. Uma delas prometia processar quem estacionasse o carro na entrada da garagem. Outra, com letras garrafais em vermelho, proibia especificamente a entrega de panfletos de restaurantes chineses – o veto não se estendia à propaganda de pizzarias ou lanchonetes. Green ficou incomodado. E prometeu pesquisar, entre suas andanças, se as leis americanas admitem tal apartheid gastronômico.