Na livraria, antes de partir para o banco, fiz uma concessão ao princípio de prazer: me regalei com os Écrits de Lacan, cujo artigo sobre "a etapa do espelho na formação do Eu" eu vinha namorando e querendo cotejar com o famigerado conto "O espelho", de Machado, cujos enigmas me atazanavam FOTO: JUCA MARTINS_ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES
Boceta de pandora
Memórias de um jovem professor na Praça da República
José Miguel Wisnik | Edição 121, Outubro 2016
Alguns metros depois da saída do banco o rapaz magro me pediu ajuda. Vinha de Osasco, não conhecia o Centro de São Paulo, queria me explicar o lugar aonde precisava ir, mas até nisso se atrapalhava. Mais que de uma informação trivial, havia nele um vago pedido de atenção, acompanhado de certo desamparo. Eu teria passado reto, acenando com um gesto de pressa justificada. Tinha contas a pagar em vários lugares do Centro e o fim da tarde me esperava com um futebol de salão entre amigos. É verdade, também, que tinha dinheiro vivo para pagá-las, depois de longo período no vermelho. Talvez por isso sentisse as árvores emaranhadas da Praça da República mais envolventes e o quadrilátero de gente movido por uma força que parecia vir do chão. A perspectiva de futebol coroava o dia, que já saía no lucro. Certa sensação artificial de folga contribuiu para devolver minha atenção a ele.
Me contou que estava ali a mando do pai, que o incumbira de uma missão meio obscura e cercada de responsabilidade. Conforme as instruções escritas no pedaço de papel que me mostrava, deveria se dirigir ao prédio da Recebedoria de Apólices Federal, procurar determinado guichê e entregar um documento (que guardava na bolsa atada à cintura) a certo senhor de nome Silas. Fez alusão confusa a expectativa de recompensa – o senhor Silas teria prometido, sempre através do pai, retribuir com um valor não determinado, mas que esperava que fosse, dizia singelamente, “talvez um relógio”.
Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz
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