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Pela última vez
As dores de um divórcio coletivo
Tiago Coelho | Edição 127, Abril 2017
O homem baixinho e magricela fitava o celular com o semblante sério. Estava sentado sozinho, na última fileira de cadeiras do auditório. “Deletei todas as nossas fotos juntos”, comentou Hélio de Oliveira, de 37 anos, depois de passar algum tempo absorvido pelo aparelho. Parecia triste, mas também resignado. “Deixei só umazinha”, completou, enquanto arriscava um sorriso sem muita convicção e estendia o celular. “Nós dois em Arraial do Cabo. Dá uma olhada.”
Uma mulher muito bonita, com a pele bronzeada, veio se sentar ao seu lado. Segurava um copinho de café na mão. Era a moça da foto. “Não trouxe um café para mim?”, quis saber Oliveira. “Quando eu te pedi para pegar um copo de Coca, você recusou”, respondeu Andreia Santana, de 32 anos. Falou como quem fornece uma informação evidente, sem raiva, mas também sem afeto. Por alguns minutos, ela, cabeleireira, e ele, cobrador de ônibus e morador do bairro de Campinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, permaneceram um ao lado do outro, sem trocar palavra.
Além de Oliveira e Santana, outros catorze casais dispostos a colocar um ponto final em seus matrimônios ocupavam a sala de espera, um ambiente sem janelas em um prédio comercial no Centro do Rio. Estava em curso naquela tarde, no final de fevereiro, o primeiro divórcio coletivo da história da cidade, um oferecimento da Defensoria Pública do Estado em convênio com a associação dos titulares de cartório.
Uma funcionária gritou lá de dentro, chamando os nomes de Santana e Oliveira. Havia chegado a hora da separação. Mas por que afinal o casamento havia acabado? “Ela tem outro relacionamento”, acusou Oliveira. “Para de querer falar por mim”, reagiu Santana. “Tenho mesmo. Mas não foi esse o motivo.”
A cabeleireira se dispôs então a dar a sua versão da história. Oliveira já fora casado antes. Havia se separado. Ocorre que, pouco antes que ela e o cobrador se conhecessem, Oliveira teve uma recaída, um revival com a ex-mulher. Meses depois, quando os dois já viviam juntos, chegou a notícia: a ex-mulher de Oliveira estava grávida. Veio o desgaste, inevitável. Mais algum tempo, o rompimento. “Foi esse o motivo”, concluiu a cabeleireira.
“Isso aconteceu antes que eu te conhecesse, já disse um milhão de vezes”, irritou-se o agora quase ex. “Não é motivo para separação.” Depois, um pouco como quem se contradiz, garantiu que assinaria “convicto” os papéis do divórcio. “Quero continuar a vida, construir outra família. Sou evangélico e acredito no casamento.”
“Então casa no papel com a sua ex”, rebateu Santana, esticando aquela que talvez fosse – quem sabe? – a derradeira discussão do casal. “Você nem vai precisar construir uma família. O filho vocês já têm, inclusive.”
Um punhado de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas atraídos pelo inédito divórcio coletivo obstruía a passagem até a sala. “Hélio e Andreia, entrem, por favor!”, pediu a funcionária do cartório. Logo antes de passar pela porta, Andreia Santana percebeu que estava sozinha. Olhou para trás, procurando pelo marido no corredor. “Onde esse cara se meteu?” Hélio de Oliveira tinha sumido.
Ao se dar conta do que acontecia, a funcionária pediu que outro casal passasse à frente. “Não acredito que ele aprontou mais essa”, resmungou a cabeleireira. Estava aflita, entre outras razões porque não queria perder a oportunidade de se divorciar de maneira rápida, sem custos.
Para a maior parte da população, não é isso o que costuma acontecer. A lei permite a separação consensual em cartórios, mas exige a presença de um advogado. Sem recursos para contratar um profissional, muitos casais recorrem à Defensoria Pública. Os defensores públicos são poucos, os pedidos se acumulam e uma fila de processos se forma. Há quem acabe tendo que esperar por meses a fio até conseguir romper de vez, legalmente, o relacionamento.
A ideia de fazer divórcios coletivos é a de tentar dar maior celeridade a esses processos. Atender a quinze casais é pouco para quem tem esse tipo de objetivo, mas membros da Defensoria e da associação de cartórios disseram que pretendem tornar a iniciativa mais frequente.
Andreia Santana esperava no corredor havia cinco minutos, de cara amarrada, quando Hélio de Oliveira voltou a dar o ar da graça. “Onde você se meteu?”, perguntou ao cobrador, irritada. “Calma que eu não desisti, não. Só fui ao banheiro”, respondeu Oliveira, afivelando o cinto sobre a calça.
Entraram na sala. A funcionária do cartório leu o documento. Ambos declaravam, dizia o texto, já não haver vínculo entre eles, nem possibilidade de reconciliação. Oliveira e Santana ouviram em silêncio a ladainha jurídica e assinaram os papéis.
Não era o fim. De volta ao auditório, teriam que esperar pela emissão da certidão de divórcio. Alguns casais estavam na mesma situação, outros ainda esperavam ser chamados. A maioria se sentava lado a lado, ainda que o marido e a mulher não se falassem. Mas havia aqueles para os quais nem isso era mais possível.
Uma jovem negra e um rapaz branco, muito jovens, admitiram ter decidido se casar cedo demais, por orientação do pastor. A inexperiência talvez tenha tornado ainda mais difícil a vida a dois. Ela estava sentada nos fundos da sala, ao lado da mãe. Ele, de terno e mochila, na primeira fileira do auditório. Não trocaram olhares nem na hora de assinar os papéis.
“Os próximos somos nós?”, Andreia Santana quis saber. “Calma, você já vai se ver livre de mim”, Oliveira respondeu. Os dois riram. A essa altura eles já haviam contado em detalhes a história do dia em que o cobrador fez com que o ônibus esperasse por vários minutos, no ponto em que ela costumava aparecer, para que pudesse se declarar à cabeleireira, na frente de todos, motorista e passageiros.
“Esse cara é maluco, mas é gente boa”, ela comentou, como quem faz uma confidência, quando Oliveira se levantou para ir ao banheiro mais uma vez. “Mas acabou mesmo, é passado, sem chance”, disse em seguida.
Já era final de tarde quando eles receberam a certidão de divórcio. Haviam passado horas naquela sala e estavam famintos. “Você me deve um almoço por eu ter te aturado tanto tempo”, ela brincou. “Não te devo mais nada a partir de agora”, respondeu Oliveira, ao lado dela, já a caminho do elevador. Continuaram o caminho juntos lá fora, depois de deixarem o prédio. E afinal almoçaram juntos, numa lanchonete não muito longe dali. Pela última vez, quem sabe.
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