Os 287 milhões de reais gastos em reformas não salvaram um navio que já chegou combalido FOTO: ALEXANDRE GALANTE_PODER NAVAL
Inútil paisagem
A morte e a morte do porta-aviões São Paulo
Cláudio Goldberg Rabin | Edição 132, Setembro 2017
Quem chega ao Rio de Janeiro de avião pelo Aeroporto Santos Dumont pode vê-la boiando majestosamente, embora há anos a embarcação não se afaste mais de seu ancoradouro na Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara.
Mesmo sem navegar, por algum tempo a gigantesca máquina de metal ainda dava sinais de vida: às vezes soltava uma fumaça preta espessa, não raro deixava vazar óleo. Guinchos de vapor em alta temperatura produzidos pelas caldeiras do sistema de propulsão podiam irromper de suas tubulações carcomidas e surpreender os tripulantes. Passou por reformas, por estudos de reformas, por anúncios de estudos de novas reformas. Nada adiantou. No início deste ano, afinal a Marinha do Brasil decidiu que era hora de desligar as máquinas e fazer o anúncio tantas vezes protelado: o porta-aviões São Paulo estava morto. Na França, o jornal Le Monde anunciou com gravidade o que chamou de “a segunda morte” do capitão da esquadra verde-amarela.
A primeira havia acontecido dezesseis anos antes, no dia 15 de novembro de 2000, quando o porta-aviões Foch deixou de prestar serviços para a Marinha francesa. Desde os anos 60 ele singrava os mares sob a bandeira tricolor: serviu de segurança para testes nucleares em ilhas do Pacífico, fez exercícios militares multilaterais e entrou em ação em conflitos nos Bálcãs. Uma cerimônia realizada na cidade portuária de Brest, no noroeste da França, conferiu solenidade à aposentadoria do navio, que chegava ao ano 2000 quase quarentão. No mesmo dia, local e evento, porém, ele renascia, renomeado, como o brasileiríssimo São Paulo A12.
Depois de um ano de negociações, a Marinha brasileira comemorava a compra do equipamento, adquirido, segundo os militares, em condições para lá de favoráveis: além de ter custado a pechincha de 12 milhões de dólares, o valor pôde ser parcelado em três vezes. Já os franceses respiravam aliviados por terem se livrado de uma sucata tóxica cuja manutenção era cara e funcionamento, duvidoso.
Em fevereiro de 2001, o finado Foch, cujo nome é uma homenagem ao marechal que liderou a vitória francesa na Primeira Guerra Mundial, começou a jornada pelo Atlântico rumo à nova casa, o Arsenal de Marinha, no Rio de Janeiro. Dezessete dias depois de sair da França, suas 33 mil toneladas de ferro, aço e ferrugem chegavam ao Brasil.
O navio-aeródromo, como é chamado no jargão militar, tinha como missão suceder o combalido Minas Gerais, comprado da Inglaterra décadas antes, durante o governo de Juscelino Kubitschek. Enquanto uma nau chegava, a outra se despedia, fazendo sua última viagem até a Índia, onde veio a ser despedaçada e transformada em sucata. Agora cabia ao São Paulo proteger a costa do país.
Com o novo porta-aviões em funcionamento, o Brasil poderia projetar poder sobre seu território no Atlântico com mais agilidade. Pela natureza do navio, os caças embarcados (A4 Skyhawks de segunda mão, comprados do Kuwait) teriam uma plataforma móvel para alcançar rapidamente qualquer ponto da “Amazônia Azul”, como os militares gostam de chamar as águas territoriais brasileiras. Além disso, pegava bem ser a única nação da América Latina a ostentar uma arma com tal porte.
Mal o São Paulo passou a fazer parte da paisagem carioca, contudo, alguns observadores mais perspicazes notaram algo de estranho. Foi o que fez o escritor Carlos Heitor Cony, numa crônica sobre o navio: “Chegou há pouco na [Baía de] Guanabara, já como coisa nossa. Todos os jornais publicaram a sua foto: lá estava aquele penacho negro saindo de sua formidável chaminé.” Era um mau presságio.
Chamado a servir no São Paulo, onde embarcou dois dias antes do Natal de 2003, o marinheiro André Luiz Santos, então com 19 anos, assustou-se com as dimensões do bicho: “Você chega embaixo dele e vê aquele navio gigantesco, muito alto e grande pra caramba. Tem o mesmo tamanho do Titanic.” A primeira impressão, contudo, não foi a que ficou. “Achava tudo muito velho, com tubulações antigas e fedorentas, embora as áreas comuns fossem limpinhas”, contou. “Eu fui para o São Paulo porque havia uma expectativa de boas viagens, mas ele acabou não indo a lugar nenhum. Só ficou dentro do Brasil.”
A bem da verdade, o ex-militar que hoje tem uma empresa de e-commerce, ainda pôde pegar o que se poderia chamar de “o auge” da embarcação. Pelo menos ela navegava – apenas pela costa nacional, é verdade – e catapultava aeronaves rumo ao Atlântico. “Ver um caça de perto decolando de cima de um navio no meio do mar é lindo, é algo que eu nunca vou me esquecer”, disse o marujo.
Nos primeiros anos de atividade, o navio não chegava a oferecer riscos à tripulação. Assim foi até o dia 17 de maio de 2005, quando uma tubulação da caldeira se rompeu e o vazamento de vapor provocou a morte de três pessoas, deixando outras oito feridas. “Eu estava no meu alojamento quando tocou um alerta. Na saída, vi um dos corredores principais interditado. Lembro que o pessoal da caldeira, de onde veio o vapor, se recusou a voltar. O clima ficou pesado porque as pessoas temiam que algo maior pudesse acontecer”, lembrou Santos.
A Marinha, contudo, mantinha esperanças de poder recuperar o São Paulo. Nos cinco anos seguintes ele parou de navegar, os técnicos reformaram catapultas, tubulações, unidades de resfriamento e o sistema de propulsão. Quando o navio voltou a realizar testes, em 2010, pouca coisa havia mudado. A bordo se comentava que a embarcação era um caso perdido. O porta-aviões continuava a exibir seu característico “penacho” de fumaça preta e a oferecer riscos.
Nos anos seguintes, os acidentes se acumularam: um incêndio deixou uma pessoa morta e duas feridas; outro, mais três marujos com queimaduras, além de despejar óleo na Baía de Guanabara. A Marinha teimava em manter o São Paulo como parte da esquadra, embora desde 2014 não fizesse sequer novos testes com o navio. A embarcação havia entrado num estado de coma.
Novo estudo foi encomendado, mas as conclusões foram desanimadoras: seriam necessários mais dez anos de obras, com custos elevados e uma sobrevida incerta. O melhor a fazer era desligar as máquinas e admitir de uma vez por todas que, depois dos 287 milhões de reais gastos em reparos e manutenção, era hora de deixar o São Paulo partir.
Nos próximos três anos o porta-aviões será descomissionado, isto é, tudo o que tem algum valor dentro dele será retirado. Depois, se tudo der certo, o Brasil conseguirá afinal transformá-lo no que, de certa forma, sempre foi: sucata.
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