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    Alma e corpo de uma raça

questões cinematográficas

Cinema e futebol – quem comeu quem?

A relação do cinema brasileiro com o futebol é antiga. Mas desde Alma e corpo de uma raça (1938) e O craque (1954), até Heleno (2011), histórias e personagens relacionados à paixão esportiva nacional nunca resultaram em filmes memoráveis ou grandes sucessos comerciais. Mesmo assim, a tentação de tirar proveito da popularidade do futebol parece não arrefecer.

A tentativa mais recente feita nesse sentido aconteceu no sábado (9/6), durante o jogo contra a Argentina,

| 13 jun 2012_14h19
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A relação do cinema brasileiro com o futebol é antiga. Mas desde (1938) e O craque (1954), até Heleno (2011), histórias e personagens relacionados à paixão esportiva nacional nunca resultaram em filmes memoráveis ou grandes sucessos comerciais. Mesmo assim, a tentação de tirar proveito da popularidade do futebol parece não arrefecer.

A tentativa mais recente feita nesse sentido aconteceu no sábado (9/6), durante o jogo contra a Argentina, procurando aproveitar a transmissão da tevê para promover a estreia de um filme. Segundo dados do IBOPE, a partida foi vista, pela Rede Globo, em cerca de um milhão de casas, em média, na Grande São Paulo. Excelente oportunidade, sem dúvida, para anunciar produtos e serviços de amplo consumo.

Aos seis minutos do primeiro tempo, uma pergunta inusitada surgiu no painel eletrônico rotativo, na lateral do campo, entre os nomes de grandes anunciantes – empresas de telefonia e informática, indústria automobilística, banco estatal, fábrica de aparelho de barbear, rede de supermercado etc.. Os publicitários responsáveis pelo lançamento do filme E aí…comeu? devem estar apostando que a divulgação do título e da data de estreia durante a transmissão, motivará a ida de telespectadores ao cinema, compensando o custo do que pareceram ter sido duas breves inserções, de cerca de 20”.

Comer já foi considerado um ato sagrado. Na sociedade patriarcal, a família se reunia em volta da mesa e conversava. Câmara Cascudo descreve a refeição como “hora de silêncio, compostura, severidade” – conotações perdidas nestes tempos profanos em que, para promover um filme, comer é associado à relação sexual. Convém estar atento, porém, ao divulgar mensagens ambíguas que podem não ser bem entendidas, ou até mesmo terem seu sentido invertido, resultando por cruel ironia em efeito oposto ao pretendido. Divulgada em contexto inabitual, a publicidade feita durante o jogo entre Brasil e Argentina acabou sendo perversa com a seleção brasileira, correndo o risco ainda de ser contraproducente para o filme prestes a estrear.

Em Macunaíma, publicado em 1928, Mário de Andrade deu sentido literal ao ato de comer o próximo, apropriando-se, em viés humorístico, das lendas do gigante Piaimã “comedor de gente” e do Currupira – anão de cabeleira rubra, com os calcanhares virados para frente, enganador de caçadores e viajantes ao deixar rastro falso, levando-os a se perderem na floresta. [na foto ao lado, Rafael de Carvalho, à esquerda, interpreta o Currupira e Grande Otelo, Macunaíma].

Na rapsódia, depois de dar um pedaço da própria perna para o menino Macunaíma comer, o Currupira ensina errado o caminho de volta ao mocambo, com intenção de capturar o herói e devorá-lo. Mas por preguiça Macunaíma segue o caminho certo, sendo perseguido pelo Currupira aos gritos: “Carne da minha perna! Carne da minha perna!”. E de dentro da barriga de Macuníma, o pedaço de carne da perna do Currupira responde: “Quê foi?”

Adiante nas peripécias, Macunaíma acaba na panela de polenta de Venceslau Pietro Pietra, que “era o gigante Piaimã”, mas, mesmo “picado em vinte vezes trinta torresminhos”, escapa de ser comido pelo estrangeiro forte e dominador.

Depois de ser seduzido por uma “cunhã lindíssima” – a pérfida Uiara –, Macunaíma volta da briga no fundo da lagoa “com mordidas pela corpo todo, sem perna direita, sem os dedões sem os cocos-da-Baia, sem orelhas sem nariz sem nenhum dos seus tesouros.” Capenga, acaba transformado na constelação da Ursa Maior, e “banza solitário no campo vasto do céu”.

No sábado, logo depois do Brasil fazer um a zero, aos 22’ do primeiro tempo, a pergunta surgiu pela segunda vez no painel, enquadrado na margem superior da televisão, seguida de uma marca de bebida isotônica e de um curso de línguas. Parece duvidoso que muitos tenham entendido e conseguido reter que se tratava do título de um filme. De qualquer forma, na metade do primeiro tempo, a expressão sarcástica ainda poderia ter algum sentido. Parecia possível ganhar da Argentina e saciar o apetite dos torcedores.

Depois, foi o que se viu. Neymar parecia estar com os calcanhares virados para frente. O malabarista moicano do Santos continua deficiente na seleção. E apesar do Brasil ter chegado a fazer 3 a 2, a Argentina sempre pareceu confiar que seria vitoriosa. Sem o poder mágico que salva Macunaíma de ser comido com a polenta, a seleção brasileira acabou sendo devorada pelo gigante Piaimã/Messi que levou o resultado, quando quis, ao 4 a 3 final. É possível imaginar, por isso, que o espectador brasileiro venha a rejeitar o filme para não se sentir vítima do sarcasmo do título ao ser lembrado do infeliz jogo em que a seleção foi jantada.

Considerações de gosto à parte, o título em si é sintomático do voo rasante que o cinema brasileiro tem oferecido.

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