minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Hércules 56 CO

questões cinematográficas

De 15 a 70 – testemunhos filmados da tortura

Tudo mudou entre setembro de 1969 e janeiro de 1971, período que, em retrospecto, parece extraordinariamente curto. Foram 17 meses, durante os quais três embaixadores foram sequestrados, no Rio, e um cônsul, em São Paulo. Soltos em troca da libertação de 130 prisioneiros, seguiu-se um endurecimento brutal da repressão.

| 29 ago 2012_18h43
A+ A- A

Tudo mudou entre setembro de 1969 e janeiro de 1971, período que, em retrospecto, parece extraordinariamente curto. Foram 17 meses, durante os quais três embaixadores foram sequestrados, no Rio, e um cônsul, em São Paulo. Soltos em troca da libertação de 130 prisioneiros, seguiu-se um endurecimento brutal da repressão.

Entre a chegada ao México dos 15 militantes soltos em troca da libertação do embaixador americano, e a chegada ao Chile dos 70 libertados em troca do embaixador suíço, as organizações políticas, armadas ou não, sofreram severas perdas. Dirigentes e militantes foram assassinados e a tortura continuou a ser praticada, depois de institucionalizada como instrumento do regime a partir do Ato Institucional 5, de dezembro de 1968.

Nesse sentido, a avaliação do então líder estudantil Vladimir Palmeira, um dos 15 libertados em troca do embaixador americano, Charles Elbrick, em depoimento a Silvio Da-Rin incluído no documentário , de  2006, parece exemplar:

“Tá na cara que foi uma ação politicamente errada. Entendeu? Por quê? Porque nós não tínhamos força suficiente para fazer uma ação daquele tipo. A repressão que se segue mata o Marighella. Entendeu? Dá uma paulada na ALN [Aliança Libertadora Nacional], depois termina dando uma paulada no MR8 [Movimento Revolucionário 8 de outubro] também. E jogou, definitivamente, a esquerda na defensiva. Eu acho que foi um passo errado desse ponto de vista, embora, pessoalmente [sorri] muito agradável para mim [riso]. Entendeu? Mas acho que, politicamente, o pessoal não tinha força para fazer aquele tipo de ato.”

A alegria de Vladimir, e a gratidão de Maria Augusta Carneiro Ribeiro, militante do MR8, por ter sido incluída na lista, ambas registradas em , exprimem bem a ambiguidade da situação vivida em setembro de 1969. Houve quem não quisesse ir. Outros não admitiam perder a oportunidade de se livrar da prisão. Foi "agradável”, não só para os libertados, como Vladimir, mas para um espectro amplo que ia dos que tinham engajamento político, aos que participavam da euforia inconsequente simplesmente por afinidade com a derrota imposta à ditadura. Naquele momento, poucos terão sabido avaliar a violência que atingiria as organizações políticas clandestinas logo a seguir.

Gregório Bezerra, outro dos 15 libertados, foi dos poucos a se pronunciar com clareza, na época, nesse sentido. O veterano militante do Partido Comunista, em declaração publicada na semana seguinte ao sequestro, declarou discordar “das ações isoladas que nada adiantarão ao desenvolvimento do processo revolucionário e somente servirão para agravar, ainda mais, a vida do povo brasileiro e de motivação para maiores crimes contra todos os patriotas” (Resistência, 13 de setembro de 1969. Citado por Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada).

Como é natural, há poucos registros filmados desses eventos. Mas entre os hoje conhecidos, dois se destacam. Um, até onde é possível saber inédito no Brasil, foi localizado pelo príncipe dos pesquisadores, Antônio Venâncio. O outro é o filme de Chris Marker, On vous parle de Brésil: Tortures (Vos falamos do Brasil: torturas), de 1969, editado a partir de filmagens feitas em Cuba, nas quais alguns dos 15 libertados em troca do embaixador americano descrevem e denunciam as torturas sofridas por eles e que continuavam a ocorrer nas prisões brasileiras.

O tom desses depoimentos, retomados por Silvio Da-Rin em , utilizando imagens filmadas no México e o acervo cubano original, diferem de maneira nítida dos que foram filmados, em 1971, no Chile, por Haskell Wexler e Saul Landau para o documentário Brasil – Um relato de tortura, comentado neste blog há algumas semanas.

Os jornalistas Jacques Grignon-Dumoulin (1929-2001) e Tony Halick (1921-1998), correspondentes da televisão francesa e da rede americana NBC, também cobriram o sequestro, Halick com uma câmera Paillard-Bolex pendurada na cintura, mas não se tem notícia das filmagens que devem ter feito.

Dada a situação política na Argentina, surpreende que a televisão possa ter veiculado reportagem sobre o sequestro do embaixador americano. Com o poder executivo e legislativo concentrados na Presidência, o general Juan Carlos Ongania estava à frente de uma ditadura militar desde o golpe de estado ocorrido em 1966, que teria sido inspirado no regime implantado, no Brasil, em abril de 1964.

Os partidos políticos estavam proibidos. O estado de sítio era quase permanente. Professores e estudantes universitários eram perseguidos. Estabelecimentos militares assaltados por grupos guerrilheiros. E uma intervenção militar decretada em Rosario liquidara a mobilização estudantil – contexto no qual não pareceria ser do interesse dos generais argentinos que o sequestro fosse divulgado com estardalhaço em seu país, a não ser como pretexto para justificar novas ações repressivas. 

A reportagem da tevê argentina começa com entrevista dada em inglês pelo embaixador brasileiro nos Estados Unidos, Mario Gibson Barbosa, que no mês seguinte substituiria Magalhães Pinto no ministério das Relações Exteriores, e seria o ministro durante o governo do general Médici (1969-74).

Coerente com o vocabulário oficial do governo, o ministro trata os sequestradores como “terroristas” e o sequestro como “ato criminoso contra a inviolabilidade do chefe da missão de uma nação amiga [que] causará, com certeza, total e completa repulsa por parte dos brasileiros.” O embaixador declara ainda não acreditar que “os terroristas tenham qualquer ganho com isso. Eles se expuseram, se mostraram como são e é um fato, com certeza, que essa ação não lhes trará absolutamente nenhum ganho.”

A suposta “repulsa” generalizada não parece ter ocorrido, e algum “ganho”, ao menos momentâneo, houve. O manifesto dos responsáveis pelo sequestro do embaixador americano, denunciando o regime e a tortura praticada nas prisões, foi lido na televisão e publicado nos jornais. E 15 presos, de diferentes organizações, foram soltos.

A condenação formal, em termos inequívocos, por parte do diplomata brasileiro, contrasta com a excitação meio gaiata do repórter nas filmagens que se seguem. Mais notável que isso, porém, é a diferença de tom e o comedimento do embaixador americano, Charles Elbrick, na entrevista coletiva dada pouco depois de ter sido libertado.

Elbrick declara ter dito “a eles [seus sequestradores] que deplorava qualquer forma de violência e que estava particularmente amargurado por ter sido feito prisioneiro”.

“Dei a entender”, diz Elbrick, “que a maneira de viver que tinham escolhido não era muito agradável, e era, além disso, muito arriscada. Eles não concordaram comigo. Disseram que, na verdade, qualquer outra forma de ação política, neste país, estaria condenada ao fracasso. E por essa razão tinham que recorrer à violência. É claro que também não concordei com eles. E dei a entender também que há outros modos de alcançar objetivos políticos, em vez da violência.”

Embora não use as mesmas expressões do embaixador brasileiro, diz que “eram todos jovens, e muito determinados, não sendo o tipo de pessoa com a qual alguém gostaria de discutir. Isso não quer dizer que parecessem gângsteres, porque não pareciam, de jeito algum”, completa Elbrick.

As imagens filmadas para a reportagem da televisão argentina mostram ainda a urna da igreja onde foi encontrada a primeira mensagem dos sequestradores, na qual estabeleciam as condições para soltar o embaixador, e uma carta dele dirigida à esposa. A filmagem inclui ainda entrevistas rápidas de Ramaiana Vaz Vargens e Paulo César – PC – Araújo, repórteres do Jornal do Brasil que encontraram a primeira e a mensagem seguinte, contendo os nomes dos 15 prisioneiros a serem libertados.

Às 16h15 de domingo, 7 de setembro, segundo o repórter argentino, “os jornalistas do mundo” estavam em frente à embaixada americana, no centro do Rio, aguardando a confirmação da chegada ao México dos 15 brasileiros libertados, da qual dependia o embaixador americano para ser solto.

O Hércules 56, da Força Aérea Brasileira, aterrissara na Cidade do México uma hora antes. Ao saírem da embaixada americana, duas jornalistas brasileiras, do Correio da Manhã e da Notícia, informam que está sendo esperada a divulgação pela UPI da radiofoto [comprovando a chegada ao México dos brasileiros em liberdade] “para depois os raptores decidirem a que horas vão soltar o embaixador”.

Enquanto isso, no México, depois de saírem do avião sem as algemas – por ordem do ministro do Interior, Luis Echeverría – com as quais foram obrigados a viajar desde o Brasil, os libertados, mesmo deixando transparecer satisfação se mantém bastante circunspectos, dando declarações prudentes à imprensa, pelo que se pode ver em .

Echeverría, que reprimira com violência as manifestações estudantis, em 1968, culminando no chamado massacre de Tlatelolco, e ordenara o combate aos grupos guerrilheiros no estado de Guerrero, seria eleito presidente da República no ano seguinte.

Ao desembarcar, Maria Augusta Carneiro Ribeiro declara a um repórter não saber nada sobre a organização responsável pelo sequestro do embaixador americano. No seu depoimento 4 décadas depois, incluído em , tendo visto a filmagem de 1969, ela esclarece que declarou pertencer apenas ao movimento estudantil por que não sabia com quem estava falando.

Naquela mesma noite, no Rio, a reportagem da televisão argentina registra a confusão em frente à residência do embaixador americano. O táxi Volkswagen no qual o ele acabara de chegar é visto indo embora a toda velocidade. Depois, o ministro Magalhães Pinto sai  da visita feita ao diplomata americano, acompanhado do chefe do Departamento das Américas do Itamaraty.

No dia seguinte, a reportagem argentina mostra a casa onde o embaixador ficou detido durante o sequestro, filmada inicialmente de longe, na rua Barão de Petrópolis, no Rio Comprido.

Na favela próxima, moradores aparentando indiferença observam o movimento de militares e jornalistas. E numa curiosa entrevista, um vizinho recusa dar seu nome, mas concorda em ser filmado.

Segundo sua declaração, haviam notado algo estranho por que depois da casa ter ficado vazia durante muito tempo, fora alugada há um mês e os “inquilinos alegavam que não podiam morar nela por que tinham colocado sinteco no chão e havia um odor, e a criança [sic] não podia morar lá.” O vizinho nomeia ainda a mulher que alugou a casa, cujo nome havia sido divulgado pelos jornais pouco depois do desfecho do sequestro.

Passados três dias da libertação do embaixador, o repórter argentino tem acesso à casa onde entrevista o proprietário, “senhor Vladimir Pinheiro da Fonseca” e filma um quarto com um colchão de casal, o banheiro e a sala de estar.

O senhor da Fonseca, como é chamado pelo repórter, declara que alugou a casa a “um casal jovem, de boa aparência, com vinte e poucos anos, ambos em processo de desquite”.

Segundo ele, a casa estava sendo observada por que “a polícia já tinha conhecimento do caso. […] Sabia que o embaixador estava lá, mas não poderia tomar nenhuma providência para não por em risco a vida dele”. Os sequestradores, declara, teriam sido filmados “por teleobjetiva a mais ou menos uns 400 metros de distância”.

Três semanas depois, embora nem todos quisessem ir, 14 dos 15 libertados desembarcam em Cuba, atendendo convite, ou pedido, de Fidel Castro, que os recebe no aeroporto de Havana.. Embora não houvesse unidade de posição no grupo sequer com relação à ida para Cuba, apenas Flávio Tavares, empregado como jornalista, ficou no México. Os demais, com expressões variadas, ora transbordando satisfação, ora sérios, podem ser vistos em torno de Fidel Castro nos filmes de Chris Marker e de Sílvio Da-Rin, ambos usando as imagens feitas pelos cubanos.

Nem todos parecem ter dado depoimentos filmados, mas os que o fizeram relatam, compenetrados, o que sofreram e o que companheiros de militância continuavam a sofrer. Visivelmente, estão cumprindo a tarefa de denunciar e tornar público o que ocorria no Brasil, ainda inverossímil para muitos àquela altura.

Da maneira que Silvio Da-Rin edita esses depoimentos, colocando-os no início do filme, adquirem a função narrativa de justificar o sequestro do embaixador. Chris Marker é mais sóbrio, dando ao seu filme a forma de um panfleto de denúncia.

Na atitude dos que depõem e na filmagem feita pelos cubanos, por outro lado, não há o menor vislumbre de algo parecido às constrangedoras encenações feitas um ano e meio depois, no Chile, por Haskell Wexler e Saul Landau, além de alguns dos 70 brasileiros libertados, para o filme Brasil – Um relato de tortura.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí