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    Vladimir Carvalho e Joris Ivens, Viña del Mar, 1969

questões cinematográficas

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III – Joris Ivens e François Reichenbach

Da lista de nomes indicados pela UNESCO para ser escolhido quem viria ao Brasil orientar “jovens realizadores”, o governo brasileiro manifestou sua preferência por François Reichenbach e Joris Ivens, em fevereiro de 1962.

| 26 out 2012_19h04
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III – Joris Ivens e François Reichenbach

Da lista de nomes indicados pela UNESCO para ser escolhido quem viria ao Brasil orientar “jovens realizadores”, o governo brasileiro manifestou sua preferência por François Reichenbach e Joris Ivens, em fevereiro de 1962.

Embora não haja registro, no caso de Ivens é provável que tenha sido ao menos consultado pela UNESCO. A razão de não ter podido aceitar parece clara – estava ocupado com outro  projeto semelhante. Em Joris Ivens en Chile: el documental entre la poesia y la crítica (Santiago: Editorial Cuarto Propio, 2011), Tiziana Panizza recupera as circunstâncias que levaram o “holandês errante” ao Chile, em 1962.

O então senador Salvador Allende conheceu Ivens, em 1961, em Cuba, onde estava fazendo dois filmes com jovens cineastas cubanos – Diário de viagem e Povo armado. Partiu de Allende o convite para, nas palavras do próprio Ivens, “ir ao Chile dar aos jovens cineastas um pouco de meus conhecimentos”, assegurando que a Universidade do Chile o receberia e comprometendo-se pessoalmente a “preparar o terreno”.

Aceito o convite, Ivens chegou a Santiago, em abril de 1962, onde alguns curta-metragens haviam sido realizados, a partir de 1957, no Cine experimental – Departamento Audiovisual da Universidade, criado por dois estudantes de arquitetura. A presença de Ivens representava para eles, segundo Panizza, aproximação maior ainda “de um cinema social, de reflexão e compromisso.”

Nessa primeira estadia, Ivens comentou filmes realizados pelos participantes do seminário e planejou voltar ao Chile para fazer um filme-seminário com os estudantes. E em outubro de 1962, coincidindo com o início, no Brasil, do curso de cinema patrocinado pela UNESCO, as filmagens de …em Valparaiso foram afinal iniciadas

Assim como Jean Rouch, Ivens estava em plena atividade, ocupado com outros projetos. As carreiras de ambos, e a de Reisz também, estavam em plena ascenção, sendo tentador especular, embora seja uma especulação vã, como teria sido diferente, e mais proveitoso, se qualquer um dos três tivesse vindo ao Brasil naquele momento.

Em março de 1962, depois de um telefonema na véspera, uma carta é escrita para François Reichenbach (foto ao lado), primeira opção do governo brasileiro para ser professor do curso. A tarefa a ser realizada é apresentada como “missão de especialista”. O trabalho de um grupo de “jovens realizadores […] deveria ser orientado por um especialista de renome mundial, para que a produção de filmes documentários no Brasil possa tomar novo impulso e atingir um alto nível.”

Os honorários previstos eram de $1200 dólares por mês, incluindo despesas diárias, além de passagem ida e volta de primeira classe. Outros $3000 dólares estavam previstos para gastos com filme virgem e laboratório. Caso Reichenbach desse, em princípio, seu acordo, um contrato seria preparado.

Os valores indicados, corresponderiam, hoje, a cerca de $9000 dólares de salário mensal, e $22000 dólares de gastos de produção.

IV – Ideário

Dirigida a François Reichenbach para tratar de um curso de cinema, a carta convite da divisão das Técnicas de Informação da UNESCO, de março de 1962, emprega termos inusitados, parecendo reiterar certa inadequação do projeto às iniciativas habituais da Organização. As palavras talvez correspondam à formalidade da instituição, mas em retrospecto “missão de especialista” sugere um viés duplamente equivocado.

“Missão”, expressão usual, comumente empregada desde sempre na diplomacia, lembra também ações de catequese e expedições etnográficas. E “especialista” seria mais adequado para cientistas e técnicos do que cineastas. Coroando os termos inapropriados, pretender no início dos conturbados anos sessenta revestir um curso de cinema com semelhante aura pedagógica denotava uma concepção anacrônica que punha em risco de antemão a possibilidade de sucesso da iniciativa.

Mesmo se os termos forem debitados à formalidade diplomática, a carta contém ainda uma afirmação que viria a se comprovar inexata e causar enganos e frustração. Ao contrário do que ocorria naquele momento com Ivens, no Chile, nenhum “jovem realizador” receberia qualquer orientação, no Rio, pelo simples fato que a turma de alunos seria formada apenas por candidatos a cineasta e técnico, sem nenhuma experiência anterior de realização. As únicas exceções sendo Flávio Migliaccio e Dib Lutfi. Flávio era ator e diretor, tendo trabalhado no Teatro de Arena de São Paulo, e dirigido Os mendigos, em 1962; Dib trabalhava como câmera da TV Rio, desde 1957, e fotografara, em 1961, o curta-metragem O menino da calça branca, dirigido por Sérgio Ricardo (foto ao lado). Os jovens realizadores do Cinema novo, a quem a carta da UNESCO talvez pretendesse aludir, mantiveram-se distantes, sem nenhum interesse pelo curso.

A carta revela também o grau de improvisação reinante, ainda maior considerando a anunciada pretensão paternalista de conseguir, com um curso de 5 meses, que a produção de filmes documentários no Brasil tomasse novo impulso e atingisse alto nível.

A “missão” teria que começar, por razões administrativas da UNESCO, em no máximo quatro meses, para poder ser concluída até o final do ano de 1962, e o “especialista” encarregado sequer estava escolhido. (cont.)

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