show CO
Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido (parte 8)
Com o curso em andamento há quase dois meses, o equipamento de filmagem do Sucksdorff acabou chegando, na primeira quinzena de dezembro. Um dos ítens da aparelhagem foi liberado pela alfândega a tempo de ser levado ao Maracanã, no dia 15, quando – para sorte de Joaquim Pedro – Garrincha deu um show, fazendo dois gols diante de 150000 torcedores, na decisão do Campeonato Carioca de 1962, em que o Botafogo ganhou do Flamengo por três a zero.
(clique aqui se quiser ler a série "Missão Sucksdorff – o que poderia ter sido" desde o início)
XIII – O melhor possível
Com o curso em andamento há quase dois meses, o equipamento de filmagem do Sucksdorff acabou chegando, na primeira quinzena de dezembro. Um dos itens da aparelhagem foi liberado pela alfândega a tempo de ser levado ao Maracanã, no dia 15, quando – para sorte de Joaquim Pedro – Garrincha deu um , fazendo dois gols diante de 150.000 torcedores, na decisão do Campeonato Carioca de 1962, em que o Botafogo ganhou do Flamengo por três a zero.
Naquele domingo, foi feita a principal filmagem de um jogo para Garrincha, alegria do povo, com várias câmeras nas mãos de Mario Carneiro, Fernando Duarte, David Neves e do próprio Joaquim Pedro, que filmou de um monomotor os planos aéreos do estádio lotado. Pela primeira vez, a produção pode dispor do equipamento portátil mais avançado que havia, na época, para fazer som direto – um gravador Nagra III, emprestado por Sucksdorff, aparelho raro, se não inexistente no Brasil.
O restante dos 1.650 quilos de equipamento, liberado pela alfândega antes do fim do ano, ia ser instalado numa sala comercial, entre o Posto 5 e 6, em Copacabana, para onde o curso se transferiria a partir de janeiro de 1963. Como parte essencial do aprendizado prático que estava por começar, dois alunos receberam a tarefa de montar as estantes necessárias para acomodar câmeras e refletores. Improvisadas com tábuas e tijolos, tiveram que carregá-las escadaria acima, até o sexto andar do prédio.
Ainda no auditório do INCE, na praça da República, antes de concluir a primeira parte do curso, 22 alunos foram selecionados através de uma prova escrita para a etapa seguinte, de caráter prático, envolvendo o uso do equipamento de filmagem e a mesa de montagem, que ainda estava para chegar.
O ano de 1962 chegava ao fim quando Henny de Jong escreve para Sucksdorff, de Paris, no dia 20 de dezembro, em termos que devem ter influído para determinar a maneira como ele passou a encarar sua “missão”. Sem nunca deixar de reclamar, pouco a pouco, primeiro foi ficando descrente da possibilidade dela ser bem sucedida, e depois se tornou seu mais virulento crítico.
Desaconselhando enfaticamente Sucksdorff a fazer qualquer gasto adicional com seus recursos pessoais, Henny de Jong escreve: “não é sua culpa se não há disponibilidade de tais equipamentos [de luz e sincronização], nem você poderá ser responsabilizado se sua missão for prejudicada por isso. Quando não há meios para obter refletores, mesmo considerando que chamamos a atenção das autoridades brasileiras repetidas vezes para a necessidade de torná-los disponíveis, você deve simplesmente abandonar toda filmagem que dependa desse equipamento. O mesmo vale com relação ao que for necessário para sincronizar imagem e som. É preciso conseguir fazer o melhor possível, levando em conta a situação no local. Essa é a essência do trabalho em missões como a sua.” [meus grifos, EE]
“O princípio básico de qualquer missão da Unesco”, continua de Jong, “é que as pessoas treinadas sejam capazes de continuar seu trabalho melhor do que antes, depois que a missão tenha partido, com os meios que tenham e que possam custear.”
Repetindo “categoricamente” que além dos recursos já acordados com o governo brasileiro, a Unesco não dispunha de quaisquer meios adicionais para custear a missão, de Jong encerra afirmando: “ter que fazer e conseguir com menos do que se considera desejável e sobretudo com o que se obteve depois de ter tentado com afinco não é sinônimo da palavra fracasso.” [meu grifo, EE]
O que a carta enfatiza, além de um traço psicológico de Sucksdorff – sempre reclamando, com ou sem razão, parecendo querer se eximir de responsabilidade pela situação problemática que contribuíra para criar – é sua falta de adequação profissional para a tarefa que assumiu.
Mesmo nunca tendo trabalhado com orçamentos milionários, Sucksdorff sempre teve acesso a meios técnicos de excelência, na Europa, tanto em termos de equipamento de filmagem, quanto de laboratório de imagem e estúdio de som – padrão muito acima do que existia no Brasil naquele momento. Como seus filmes demonstram, Sucksdorff valorizava ao extremo o acabamento técnico irrepreensível. Ao se ver em um meio cuja bandeira era a “camera na mão e uma ideia na cabeça”, seria inevitável que houvesse um choque entre suas exigências e a precariedade técnica reinante.
XIV – O curso: parte prática
O curso atravessou o verão carioca na maior informalidade, costumeira na Zona Sul da cidade. As aulas não tinham dia e horário certos. E os 22 alunos raramente se encontravam todos de uma vez. Alguns apareciam de vez em quando, outros foram sumindo. O próprio Sucksdorff parecia prestes a submergir na clássica depressão nórdica.
Acompanhados por alguns alunos, testes de sensitometria foram feitos na Líder Cinematográfica, resultando quase sempre em pequenos embates entre Sucksdorff e o Dr. Victor, engenheiro químico e gerente industrial do laboratório.
Os alunos dotados de alguma iniciativa própria chegaram a se aventurar por Copacabana para fazer pequenas filmagens, sem produzirem, porém, nada de memorável, a não ser ressentimento nos que não participavam dessas incursões.
Quem tinha alguma aptidão técnica aprendeu a carregar o chassis da câmera, e foi apresentado às entranhas da Arriflex – grifa de tração, espelho giratório, ângulo de abertura e rotação do obturador.
E enquanto, no Rio, o curso seguia em ritmo praieiro com frequência regular de um pequeno grupo de alunos, em Paris, o delegado permanente do Brasil, Paulo Carneiro, e o diretor geral da Unesco, René Maheu, trocavam amabilidades.
Paulo Carneiro escreve a René Maheu, em 22 de janeiro, comunicando ter sido informado pelo Ministério das Relações Exteriores do Brasil de que “o seminário de cinematografia dirigido pelo sr. Sucksdorff despertou o mais vivo interesse, com a participação de 80 alunos vindos não apenas da cidade do Rio de Janeiro mas também de vários estados da União”.
Segundo essa carta, “os alunos escreveram roteiros sobre temas que lhes foram propostos. Decidiu-se que um filme seria feito a partir do melhor roteiro.”
Concluindo, Paulo Carneiro diz ter pensado transmitir “esses detalhes para sublinhar a eficácia da missão Sucksdorff que será talvez o ponto de partida de um desenvolvimento importante do cinema brasileiro.”
Em resposta, René Maheu declara estar “particularmente feliz em saber que o estágio dirigido pelo sr. Sucksdorff despertou vivo interesse no conjunto do país [sic] e que os trabalhos prosseguem de maneira eficaz. Compartilho com você”, acrescenta Maheu, “a esperança de que essa missão virá a dar novo impulso ao cinema brasileiro e é uma grande satisfação saber que a Unesco pode se associar a esse esforço.”
O número inicial de alunos citado por Paulo Carneiro parece exagerado, mas é possível que corresponda ao dos primeiros dias de aula, estabilizado depois entre 40 e 50, antes de ser reduzido para os 22 que formalmente fariam a parte prática do curso. Quanto aos roteiros que teriam sido escritos, a impressão é que, na verdade, nada mais foram do que um exercício de roteirização feito na primeira parte do curso, sem ter havido intenção de filmá-los.
Quando a mesa de montagem Steenbeck finalmente chegou e foi instalada, entre o final de janeiro e início de fevereiro, faltando um mês para o fim do curso, além de aprender seu manuseio – extremamente simples –, ainda houve tempo para dois ou três alunos assistirem uma cópia de O Homem de Aran, vinda da Cinemateca Brasileira.
As filmagens feitas pelos alunos, por sua vez, terminaram sendo tão poucas que, no final de fevereiro, com o curso prestes a acabar, 90% do filme virgem e das fitas de áudio, comprado por cerca de 3.000 dólares pela Unesco, continuavam intocados. (cont.)
Leia também
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí