César deve morrer CO
César deve morrer
Apesar da música retórica e de uma pequena tolice no final, há bons motivos para assistir a César deve morrer, dirigido pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani.
Um foi mencionado por Otávio Frias Filho no debate realizado no Instituto Moreira Salles, em fevereiro – o paralelo feito por Carlos Lacerda entre o enredo de Júlio César e a crise política ocorrida em agosto de 1954, no Brasil, que o levou a traduzir o drama de Shakespeare para português em prosa.
Apesar da música retórica e de uma pequena tolice no final, há bons motivos para assistir a , dirigido pelos irmãos Paolo e Vittorio Taviani.
Um foi mencionado por Otávio Frias Filho no debate realizado no Instituto Moreira Salles, em fevereiro – o paralelo feito por Carlos Lacerda entre o enredo de Júlio César e a crise política ocorrida em agosto de 1954, no Brasil, que o levou a traduzir o drama de Shakespeare para português em prosa.
Outra razão para ver o filme é a oportunidade de ver a inusitada transposição de Júlio César, peça escrita há mais de quatrocentos anos, na qual Shakespeare busca um novo tipo de herói que, ainda hoje, é raro encontrar no teatro ou no cinema – o próprio Shakespeare não consegue entender a tragédia de Brutus, escreve Harley Granville-Barker em seu famoso prefácio, “homem que, não por ódio, ciúme nem fraqueza, mas apenas ‘por um pensamento geral honesto e para o bem comum a todos’ se uniu aos conspiradores e assassinou seu amigo.” Para Shakespeare, segundo Granville-Barker, “o problema espitirual do assassino virtuoso é o mais interessante da história. É Brutus quem melhor interpreta o tema da peça: faça o mal para que resulte o bem, e veja o que de fato acontece.” Tema cuja atualidade dispensa comentários e é, por si só, outra razão para assistir a .
Em depoimento dado ao Jornal da Tarde, em 1977, publicado no mesmo ano pela Editora Nova Fronteira, Lacerda diz que, no final de agosto de 1954, havia um “falso ar de tranquilidade, de normalidade, que não tinha nada que ver com a realidade, que era na verdade – para quem tivesse o mínimo de sensibilidade – assustadora, por que o que tinha acontecido no Brasil [a virada da opinião pública em seguida ao suicídio de Vargas] era o que aconteceu no drama de Shakespeare, […] A mesma multidão que aclamava Brutus e os que mataram César, quando Marco Antônio fez seu discurso com o cadáver nos braços, começou a pedir a morte dos que tinham assassinado César.” E Lacerda conclui: “Foi assim que passei de vítima a assasssino de Vargas. […] Vargas […] passou a ser o Júlio César de Shakespeare.”
Em Shakespeare nosso contemporâneo, cuja primeira edição é de 1965, Jan Kott já havia indicado a fonte de inspiração para essa reviravolta da opinião pública, se a expressão couber referindo-se ao início do século dezessete: “Shakespeare tinha visto como o povo de Londres lotou as ruas para dar as boas vindas a Essex [Robert Devereux, 2º conde de Essex, líder de um golpe de estado fracassado] com tochas, e mais tarde se aglomerou para assistir sua execução.” Para Shakespeare, segundo Kott, “o povo é apenas um objeto da história, não seu ator. Ele pode suscitar repulsa, piedade ou terror; mas ele é impotente, ele é um joguete dos que detém poder em suas mãos” – concepção cara a Lacerda e que também permanece atual.
Granville-Barker define Júlio César como tragédia da “integridade intelectual” e “da excessiva firmeza de princípios”. E considera que Shakespeare está à procura do herói no qual pensamento e emoção se conciliam e confrontam de forma mais equilibrada. Se Brutus ainda o desconcerta, “Hamlet, como se diz, está esperando para começar.”
A escolha de Júlio César, feita pelos irmãos Taviani, não é apenas adequada por ser, nas palavras de Vittorio, “uma história italiana, uma história romana, uma história que é parte da imaginação coletiva do povo italiano.” Além disso, sendo encenada por presos cumprindo sentenças por assassinatos e tráfico, relacionados à Máfia e à Camorra, no presídio de segurança máxima de Rebibbia, em Roma, os atores têm experiência de vida comum à dos personagens, permeada por traição, conspiração, culpa e amizade. Para completar, formam uma galeria fascinante de tipos humanos, difícil de encontrar entre atores profissionais.
Contando com o suporte de Fabio Cavalli, diretor do grupo de teatro de Rebibbia, os Taviani se beneficiaram do trabalho dele, que começou em 2006 e já teve 30.000 espectadores. Cavalli também atua no filme fazendo o papel de diretor da encenação.
Essa experiência teatral é difundida, na Itália, através de 110 grupos atuando em prisões. E Matteo Garrone, diretor de Gomorra, também fez uso dela ao escolher um ex-assassino de aluguel de Nápoles, cumprindo pena perpétua numa prisão toscana, para fazer o papel principal de Realidade (2012).
Os presos de Rebibbia, segundo Cavalli declarou ao Los Angeles Times (10/2/2013), “são inteligentes, têm algo a dizer e têm excelente memória, liderança e poder de sedução.” Uma compensação pelas excelentes atuações que obtém estaria, para ele, na redução da reincidência. “Em média, 65% dos presos italianos voltam a cometer crimes depois de soltos, mas para os que fizeram teatro na prisão, não há quase nenhum caso”, disse Cavalli.
Ainda assim, sem poder apagar de todo seu passado, há casos como o de um figurante de que foi morto a tiros depois de ter sido solto.
Um dos integrantes do grupo de Rebibbia considera que o fato de serem bons atores é “uma coisa napolitana. Fazer um papel é natural para napolitanos”, declarou. “Somos bons”, segundo outro, "por que alguns de nós vêm atuando na prisão há anos”. Origem sem privilégios e muito tempo de prisão são mencionados como fonte de inspiração. “As pessoas perguntaram de tornamos o assassinato de Júlio César convincente por que nós mesmos cometemos assassinatos, mas a razão é mais relacionada ao nosso sofrimento.”
O tropeço dos Taviani no final é difícil de entender. Quando um dos presos diz “a cela se tornou uma prisão desde que descobri a arte”, a redundância banaliza tudo que a precede. A pequena tolice sugere a hipótese, em princípio absurda, dos Taviani não terem a dimensão exata do filme que fizeram. Mas só assim se explicaria terem sido capazes de minar a base de .
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí