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questões cinematográficas

Documentando o documentário

A nova edição de Documenting the Documentary, que acaba de ser lançada, reafirma a importância da coletânea de ensaios publicada pela primeira vez em 1998. Acentua também, de maneira inequívoca, a posição marginal do documentário brasileiro no âmbito universitário norte-americano.

| 03 fev 2014_17h33
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A nova edição de , que acaba de ser lançada, reafirma a importância da coletânea de ensaios publicada pela primeira vez em 1998. Acentua também, de maneira inequívoca, a posição marginal do documentário brasileiro no âmbito universitário norte-americano.

Editado pela Wayne State University Press, (sem tradução em português)  se tornou referência obrigatória, com destaque para as análises de O sangue das bestas (1949), de George Franju; Os mestres loucos (1955), de Jean Rouch; e Noite e neblina (1955), de Alain Resnais. Os 27 ensaios de professores americanos e canadenses tratam de Nanook, o esquimó, de 1922, a Finding Christa, de 1991 – filme pouco conhecido, no Brasil, de Camille Billops e James Hatch, produzido pelo Public Broadcasting Service (PBS), no qual além de co-diretora, Billops é personagem, narrando a história da sua filha Christa, entregue por ela para ser adotada aos quatro anos e com quem se reencontrou vinte anos depois.

A nova edição excluiu, sem informar o motivo, o artigo sobre The Journey (1987), de Peter Watkins [foto ao lado], e inclui 5 novos ensaios sobre Culloden (1964), de Peter Watkins; 4 Little Girls (1997), de Spike Lee; Les glaneurs et la glaneuse (2000), de Agnès Varda; Homem urso (2005), de Werner Herzog; e Borat (2006), de Larry Charles.

Na introdução à edição deste ano, o indefectível Bill Nichols escreve que os ensaios reunidos em , “reconsideram suposições, compartilham percepções e provocam reflexões sobre a natureza e propósito de filmes documentários como um empreendimento global”. Nesses termos, manejado com cuidado, o livro é instrumento ideal para quem não se satisfaz em apenas tangenciar documentários a que assiste.

Nichols trata também da falta de limites definidos para o que é considerado um documentário, questão que diz respeito aos próprios filmes selecionados para a coletânea. Para Nichols, “a maneira escolhida pelo realizador para representar a si mesmo e aos outros permanece aberta a variações extraordinárias. Só por essa razão, a cuidadosa reflexão fornecida por estes ensaios sobre os antecedentes e princípios desse desafio impressionante é de real valor tanto para estudantes de documentário quanto para seus praticantes atuais e futuros.”

“Se a antropologia é fundamentalmente, nas palavras de Margaret Mead”, escreve Nichols, “a ‘disciplina das palavras’, o filme documentário é mais fundamentalmente a disciplina da representação audiovisual”. A questão, diz Nichols, seria “como os realizadores de documentários devem se disciplinar para viver entre os outros, compreender experiências pessoais e eventos históricos, e representá-los de modo diferente de um sociólogo, jornalista, historiador, viajante ou antropólogo cultural”.

Se a introdução de Nichols levanta questões relevantes, a dos editores da coletânea (embora não esteja assinada), Barry Keith Grant e Jeannette Sloniowski, decepciona por advogar em causa própria, fazendo a protocolar exaltação do gênero documental. Afirma que “o documentário se tornou ainda mais popular e controvertido [do que era em 1998]”. A elasticidade do conceito ecumênico de documentário, na concepção dos editores, engloba os reality shows da TV, o que explica a afirmação de que o gênero é “popular”, mas revela evidente frouxidão conceitual. No balaio dos editores cabe de tudo, inclusive o que é postado no YouTube, “mais de 700.000 novos cineastas”, afirmam, ao proclamar que “o interesse pelos ‘gêneros reality’ é visivelmente maior do que jamais foi graças ao advento do equipamento de gravação de baixo custo”. Além do aspecto quantitativo, consideram “existir agora um intenso desejo global de registrar, examinar e exibir ‘o real’” – afirmação duvidosa da qual deveriam tratar de forma menos passageira.

O ensaio sobre Culloden, outro filme pouco conhecido no Brasil, situa a originalidade do projeto de Peter Watkins, iniciado na década de 1960, época de predomínio do cinema direto. Indo em sentido contrário ao da busca da espontaneidade, Watkins se propôs reencenar, buscando “ter cada segundo organizado e planejado sob controle total, e ainda assim fazer que pareca estar acontecendo, de fato, naquele momento”. Retomou, nesses termos, a tradição inaugurada por Robert Flaherty que John Grierson conceituou, a propósito de Moana (1926), como sendo o “tratamento criativo da realidade” –variante da qual Watkins permaneceu praticante fiel de Culloden e War game (1965) a La Commune (1999).

Ver a imagem de alguém que morreu nos obriga a refletir sobre o que significa ser filmado – “e como essas filmagens funcionam além da morte”. Essa é a questão central levantada por O homem urso (2005), de Werner Herzog, segundo o ensaio dedicado ao filme. Ao sermos informados que as mortes de Timothy Treadwell e de Amie Huguenard, namorada dele, foram gravadas por uma câmera que estava com a lente tapada, tendo sido registrado apenas o som, vemos em seguida o que o autor do ensaio considera ser, talvez, “a cena chave de todo o filme” – Herzog ouvindo o ataque do urso, diante de uma amiga de Treadwell. Depois de ouvir a gravação, Herzog diz a ela: “Você nunca deve ouvir isto”, e recomenda que ela destrua a fita “por que será o elefante branco no seu quarto por toda sua vida”.

Aceitamos o que Herzog diz como sendo verdadeiro, o que, em se tratando dele, exige grande dose de credulidade. Nos seus filmes é preciso aceitar a concepção de realismo que ele chama de “realismo extático”, mais próximo da poesia que do jornalismo – transfiguração da realidade que, segundo Herzog, diferencia poetas de contadores.

Herzog ignora o pacto tácito entre realizador e público sem o qual o documentário não subsiste como gênero diferenciado – o que é mostrado reproduz o que ocorreu no passado, ocorreria mesmo se não estivesse sendo filmado, ou ainda, quando propiciado pelo realizador não é fruto da sua imaginação. A tendência a diluir a fronteira entre ficção e documentário, que vem se tornando predominante, cria uma interseção rica de possibilidades criativas mas pressupõe praticantes éticos, o que nem sempre é o caso.

Documenting the documentary reúne farta matéria de reflexão, pecando apenas por etnocentrismo ao ignorar de todo filmes brasileiros que poderiam contribuir para melhor compreender as questões levantadas.

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