Diário Parte 1 1973-1977
David Perlov – O caminho de volta (II)
Ao anunciar, em 1973, que deixara de ter atração pelo cinema profissional, David Perlov fez movimento semelhante ao que Jean-Luc Godard e Alain Cavalier haviam feito anos antes – a opção por um cinema não-industrial inserida no contexto da utopia política dos anos 1960, que teve Jonas Mekas como principal precursor.
Sem pretender indicar precedências, nem supor que Perlov tenha sido influenciado por Godard ou Cavalier, resta o fato de que a crise profissional dos três, além das circunstâncias indicadas, tem ainda outros pontos em comum.
Ao anunciar, em 1973, que deixara de ter atração pelo cinema profissional, David Perlov fez movimento semelhante ao que Jean-Luc Godard e Alain Cavalier haviam feito anos antes – a opção por um cinema não-industrial inserida no contexto da utopia política dos anos 1960, que teve Jonas Mekas como principal precursor.
Sem pretender indicar precedências, nem supor que Perlov tenha sido influenciado por Godard ou Cavalier, resta o fato de que a crise profissional dos três, além das circunstâncias indicadas, tem ainda outros pontos em comum.
É verdade que, ao contrário de Cavalier, Perlov não silencia por vontade própria. A mudez lhe é imposta – ele chama uma ida ao serviço de cinema governamental de Israel e à televisão, em Jerusalém, de uma “descida ao inferno”:
“[…] os mesmos sorrisos nauseantes, elogios não solicitados, e a recusa prevista. O que eles querem são filmes de que ninguém precisa. Cada reunião é um novo nível de repulsa. […]” (, 17’39”).
Perlov quer fazer “filmes sobre pessoas”, não sobre ideias. Mas só recebe propostas de “memoriais. Dias de lembrança. Grandes eventos. E no cinema, superficialidade, esterilidade.” Ele fica em casa. “São anos de ociosidade forçada, desemprego.” (, 16’06”).
Ao começar a filmar sozinho e a lecionar no Departamento de Cinema e Televisão da Universidade de Tel Aviv, em 1973, Perlov se torna um homem com uma câmera, como Godard foi brevemente em maio de 1968, e Cavalier se tornaria, a partir de 1996, ao fazer La Rencontre.
Perlov abre os olhos e mostra o mundo, sem dúvida. Documenta o cotidiano, o dia a dia. Mas o que prevalece é o caminho de volta – a “longa jornada” (Diário Parte 3 1981-82, 29’45”) à qual ele mesmo se refere na terceira parte do Diário. Iniciada com a viagem a São Paulo, em fevereiro de 1974, “depois de uma ausência de 20 anos” (Diário Parte 1 1973-77, 11’15”), a volta no tempo termina 25 anos depois, em Belo Horizonte, com a visita ao túmulo da mãe, Anna Perlov (1907-1966), fechando o ciclo iniciado com a epígrafe da primeira parte – referência alegórica ao fato dela ter sido analfabeta:
“Nas terras de pobreza e analfabetismo, aqueles que não podiam assinar seus nomes tinham duas cruzes marcadas nas suas fotografias: nome e sobrenome.”
Ensaio autobiográfico alusivo, narrado na primeira pessoa, Perlov tem presença física fugaz no Diário, aparecendo quase sempre refletido em espelhos filmando a si mesmo. Exceção a esse recato é o exame dos seus olhos feito diante da câmera no qual o oftalmologista (Diário, 1978-1980, parte 2. 20’16” a 24’07”) recomenda uma operação para remover a mucosa formada na conjuntiva.
Perlov, mesmo considerando “dramáticos, retóricos, líricos” os discursos contra os massacres efetuados por falanges cristãs, com a conivência de Israel, nos campos de refugiados palestinos de Sabra e Shatila, sente que “precisa estar” (Diário Parte 4 1982-1983, 42’10”) presente na rua e filmar os protestos. Ele não gosta de “assuntos terríveis”, e preferiria “não filmar a guerra”, mas considera que “o realizador de documentários precisa às vezes se comprometer e tomar partido nessas questões difíceis.” (“A conversation in two parts with David Perlov”, The Medium in 20th Century Art, Rachel Bilevsky-Cohen and Baruch Blich (ed.), Tel Aviv: Or-Am e Jerusalem: The Van Leer Jerusalem Institute, 1996)
Socialista e sionista, Perlov tem dificuldade de se integrar em Israel, onde sempre se sentiu estrangeiro (Uri Klein, “As vistas de Perlov”, Haaretz, 19 de dezembro de 2003. Reproduzida em David Perlov: Epifanias do cotidiano. Ilana Feldman e Patrícia Mourão, org., p.84). Ao voltar a São Paulo, em 1974, vem “se despedir do seu passado”. A caminho da Vila Mariana, onde morou com seu avô, cita os versos da canção Stranger Here, de Odetta: “estrangeiro aqui, estranho lá/ estrangeiro em toda parte/ Eu gostaria de ir para casa, querida/ Mas lá também sou um estrangeiro.” (Diário Parte 1 1973–1977, 13’50”. Do LP Sometimes I Feel, RCA Victor, 1962). Versos que reiteram o desajuste de quem sente não pertencer a nenhum lugar e inicia “uma longa jornada a caminho de casa” (Diário Parte 3 1981-1982, 30’03”) – a sua casa “no jardim do fundo, em Belo Horizonte. Feijão preto sem arroz. Uma ou duas bananas por semana” (Diário Parte 3 1981-1982, 30’10”). Jornada que adia, cancela, da qual tenta desistir e, quando acaba partindo de São Paulo, adormece e só acorda no fim do trajeto (cont.)
(Diário 1973-1983, DVD Instituto Moreira Salles).
Leia também
David Perlov – O caminho de volta (I)
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí