minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Diário

questões cinematográficas

David Perlov – O caminho de volta (III)

Diário é um título que pode induzir a erro. O próprio Perlov admitiu nunca ter pretendido fazer propriamente um diário filmado – gênero centrado no próprio autor, valorizando acima de tudo o momento e espontaniedade da filmagem, formado de registros desarticulados e heterogêneos, feitos para uso privado, não sendo permitida sua difusão pública, conforme definido por David E.James em “Film Diary/Diary Film: Practice and Product in Jona’s Mekas Walden”.

| 14 jul 2014_13h38
A+ A- A

é um título que pode induzir a erro. O próprio Perlov admitiu nunca ter pretendido fazer propriamente um diário filmado – gênero centrado no próprio autor, valorizando acima de tudo o momento e espontaniedade da filmagem, formado de registros desarticulados e heterogêneos, feitos para uso privado, não sendo permitida sua difusão pública, conforme definido por David E.James em “Film Diary/Diary Film: Practice and Product in Jona’s Mekas Walden”.

Ao contrário, no Diário, “há muita seleção, antes de filmar e depois, e ele é extremamente intencional, apesar de parecer acidental. No meu filme há uma ordem na seleção, uma ordem ao pensar antes e de novo, depois da filmagem. Durante a montagem você deita tudo que você filmou numa ‘superfície limpa’, e aí você trabalha nessa superfície limpa para pensar na ordem do filme, para construir o filme. Isso acontece apesar de Diário lidar com as questões mais triviais.” (Uri Klein, “As vistas de Perlov”, Haaretz, 19 de dezembro de 2003).

Nesse sentido, Diário se diferencia de Walden, de Jonas Mekas, filmado a partir de 1950 e lançado em 1969 ainda com o título Diários, Notas & Esboços. Apesar de ambos terem sido finalizados como filmes-diário e não diários filmados, segundo David E. James, citado acima, Mekas enfatiza os vínculos de Walden com a forma escrita de um diário que procura preservar na montagem: “Eu não tinha nenhum longo período de tempo para preparar um roteiro, depois para levar meses para filmar, depois para editar etc. Eu tinha apenas alguns momentos que me permitiam filmar apenas pequenos trechos de filme. Todo meu trabalho pessoal se tornou anotações. Achei que deveria fazer o que pudesse hoje, por que se não fizer, eu posso não conseguir outro tempo livre por semanas. Se posso filmar um minuto – filmo um minuto. Se posso filmar dez segundos – filmo dez segundos. Eu pego o que posso, por desespero. Mas por muito tempo não via o material que estava reunindo dessa maneira. Achava que o que estava fazendo, de fato, era treinar. Estava me preparando, ou tentando ficar em contato com minha câmera, para que quando chegasse o dia quando eu tivesse tempo, aí eu faria um filme ‘de verdade’.”

Perlov lia e gostava dos textos de Mekas, sobre os quais falava muito com sua filha, Yael, mas nunca vira seus filmes (Yael Perlov em “Un entretien avec Yael Perlov et Shalev Vayness"). E no Diário, adota perspectiva diferente de Mekas, controlando o processo, não apenas por dispor de poucos recursos e não ter muito negativo para usar. Meticulosamente planejado, é construído peça por peça, montado com precisão, e narrado com um texto pensado e escrito sílaba por sílaba. “Eu tenho uma abordagem original e especial”, declarou Perlov, “da relação entre minha narração, que soa literária, e o diálogo e a fala natural dos personagens. As palavras, a estrutura das frases, o aspecto linguístico e a entonação são extremamente dominantes no filme Diário.” (“A conversation in two parts with David Perlov”).

Apesar de anunciar, logo na primeira sequência, a intenção de filmar sozinho e para si mesmo, pelo menos a partir do grande dia em que uma mesa de montagem é instalada na sua casa (Diário Parte 2 1978-1980, 32’08”), em 1980, Perlov trabalha tendo em vista editar o filme para ser exibido, se é que essa intenção já não existia desde o final da década de 1970 quando montou uma primeira versão do Diário, de 45’, para ser exibida na TV israelense.

Perlov definiria a linha narrativa dominante do Diário com precisão, ao dizer que sempre teve “desejo de escrever uma autobiografia imaginária que seria pictórica” (“A conversation in two parts with David Perlov”). E que ao ter a oportunidade de fazer o filme viu nele “a possibilidade de seguir essas trilhas autobiográficas.”

Embora ele se defina como “otimista por natureza e apreciador de coisas lindas”, volta e meia um fatalismo subjacente emerge no Diário, indicando a aproximação, e depois a iminência de um fim inexorável. A guerra do Yom Kippur, em 1973, convence Perlov que Israel “se encaminhava para a destruição”, o que o faz voltar a São Paulo, no ano seguinte, pela primeira vez em 20 anos, para “dizer adeus”.

Durante sua estadia na cidade, seu pai, com quem se encontra pela quarta vez na vida, tem um enfarte, ficando com dois dedos paralisados, o que o impede de continuar trabalhando como mágico.

Além de fazer o roteiro sentimental da adolescência, incluindo as casas dos colegas de colégio, o bonde que o levava ao Bom Retiro, as ruas “mutiladas” a caminho da Vila Mariana, Perlov filma o cemitério onde seu avô, Naftali Perlow (1890-1950), está enterrado em um túmulo com inscrições em ídiche e português.

Quando vai a Paris, em 1977, também depois de uma ausência de 20 anos, Perlov lembra a advertência da sua “madrasta negra”, Dona Guiomar: “Nunca refaça seus próprios passos. Seus pés podem ser queimados e você não poderá mais andar” – exatamente o que ele começara a fazer, em 1973, e continuaria fazendo ao longo dos 20 anos seguintes, desafiando a sabedoria protestante e, como Orfeu, pagando um preço por isso. [Fim]

Este post e os dois anteriores são versão condensada do texto que fará parte do livro A eternidade na esquina – o cinema de David Perlov, organizado por Ilana Feldman e Patrícia Mourão, a ser lançado pela editora Azougue no final deste ano.

(Diário 1973-1983, DVD Instituto Moreira Salles)

Leia também

David Perlov – O caminho de volta (II)

David Perlov – O caminho de volta (I)

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí