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questões cinematográficas

Leviatã – Nikolai esmagado

É compreensível e, portanto, perdoável que ao entrar na sala de cinema refrigerada para fugir da canícula, o início de Leviatã provoque certa sonolência no espectador. Em especial naquele que estiver habituado à fórmula narrativa consagrada, segundo a qual é preciso prender a atenção do público no primeiro minuto do filme ou, de preferência, no plano de abertura.

| 19 jan 2015_11h25
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É compreensível e, portanto, perdoável que ao entrar na sala de cinema refrigerada para fugir da canícula, o início de provoque certa sonolência no espectador. Em especial naquele que estiver habituado à fórmula narrativa consagrada, segundo a qual é preciso prender a atenção do público no primeiro minuto do filme ou, de preferência, no plano de abertura.

Mas, quem não for viciado nos filmes que a grande indústria oferece em larga escala, e estiver disposto a vencer o sono, será recompensado. , dirigido por Andrei Zvyagintsev e escrito por ele em parceria com Oleg Negin, é um flagrante da engrenagem destruidora do poder, narrado de forma pouco usual com longas e belas imagens fixas filmadas com extremo rigor.

A via crúcis do pescador Nikolai (Aleksei Serebryakov), tratado no filme pelo diminutivo Kolya, ocorre em uma remota vila pesqueira, no litoral norte da Rússia. Filmado em Teriberka, na costa do mar Barents, adjacente ao Ártico, se passa durante a atual Presidência de Vladimir Putin, seu terceiro mandato depois de ter sido primeiro ministro duas vezes e se tornado presidente pela primeira vez em 2000. É a fotografia dele que a equipe encontrou na parede da sala do prefeito quando chegou para filmar e ela aparece no mesmo lugar no filme.

Nikolai, um homem comum, é espoliado e triturado pelo conluio entre o poder municipal corrupto associado à Igreja Ortodoxa, com a colaboração da polícia e de seguranças privados. Vítima de um monstro, ele perde tudo – a casa, a mulher e a liberdade. Até seu aparente anjo protetor, o advogado Dmitri (Vladimir Vdovichenkov), na verdade precipita sua desgraça.

Como em As três irmãs, são constantes as referências a Moscou – um pólo de atração distante; cidade longínqua de onde emana o poder, da qual Dmitri veio e para onde volta sozinho, deixando para trás Lilia (Elena Lyadova), a mulher de Nikolai a quem chegou a propor que fosse com ele. 

“Viver na Rússia”, declarou Zvyagintsev ao The Guardian, “é como estar em um campo minado”. “É claro que é um filme sobre a Rússia”, admitiu meses antes. “Vivemos em um sistema feudal quando tudo está nas mãos de uma pessoa e a relação dos demais é de subordinação vertical.” Os principais modos de operação da estrutura do poder na Rússia moderna são, segundo Zvyagintsev, kissing upwards and kicking downwards (de um lado, elogios exagerados e hipócritas, do outro, derrubadas).

Na verdade, porém, segundo Zvyagintsev,  é inspirado em um caso ocorrido nos Estados Unidos e ele pretende que seja uma parábola universal – “as ideias centrais são relevantes em qualquer lugar”. De fato, assistindo ao filme não há como deixar de lembrar do México e, sob certos aspectos, do próprio Brasil.

, apesar de parcialmente financiado com recursos do Ministério da Cultura, ainda não foi lançado na Rússia. Mesmo depois de ganhar o prêmio de roteiro no Festival de Cannes do ano passado, de ter sido nomeado candidato russo ao Oscar de filme não falado em inglês, e de receber o recente Globo de Ouro de melhor filme falado em língua estrangeira, o filme de Zvyagintsev vem sendo criticado pelo ministro da Cultura, Vladimir Medinsky, e denunciado como “anti-russo”.

O lançamento na Rússia, previsto para o próximo mês, será de uma versão cortada, atendendo à recente lei que baniu xingamentos em filmes. Em declaração ao jornal Izvestia, conforme a matéria citada do Guardian, Medinsky disse que o retrato da Igreja ortodoxa feito em ultrapassa “todos os limites” e os personagens “não são russos verdadeiros”; “por mais que os autores os tenham feito xingarem e entornarem litros de vodka, eles não são russos. Não me reconheci, nem meus colegas, amigos, amigos de amigos nos personagens de Leviatã,” disse Medinsky. Ele declarou esperar que Zvyaginstev faça filmes no futuro “sem esse desespero existencial”.

Ainda na matéria do Guardian, há a informação de que o ativista ortodoxo Kirill Frolov e o analista político Sergei Markov publicaram críticas a nas suas respectivas páginas no Facebook. Para Frolov, “ é um libelo obsceno contra a igreja e o estado russos”. Ele pediu que o filme seja banido: “Eu deixaria de me preocupar se estamos supostamente restringindo liberdades. Não precisamos nos justificar. é mau, e não há qualquer lugar para maldade no cinema”; e para Markov, “o filme é parte da nova Guerra Fria que o oeste está lutando contra a Rússia. Esse é um filme anti-russo feito basicamente de acordo com uma ordem do oeste, um manifesto cinematográfico anti-Putin. É uma pena que pessoas talentosas o tenham feito, mas quando pessoas talentosas estão do lado do mau, pessoas serão frias em relação a elas. Eu acredito que os espectadores irão ignorar essa coisa escura e sem esperança.”

Se nem essa controvérsia é capaz de despertar o sonolento espectador carioca, só nos resta admitir que fomos esmagados por nosso provincianismo.

“Não posso deixar de reagir ao que está acontecendo à minha volta”, declarou Zvyagintsev. E nós, podemos? Pergunto eu.

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