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    O crítico de cinema Victor Téllez, interpretado por Rafael Spregelburd, no filme argentino de Hermán Guerschuny

questões cinematográficas

O crítico e a doença do cinema

Os sintomas são graves. Embora seja argentino e fale castelhano, ele pensa em francês, faz anotações no escuro enquanto assiste aos filmes, raramente escreve críticas favoráveis, refere-se a Godard como a um íntimo, reencena com sua namorada a famosa sequência de Acossado (1960) na qual Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) ameaça estrangular Patricia Franchini (Jean Seberg) se ela não sorrir antes dele contar até oito.

| 02 fev 2015_18h19
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Os sintomas são graves. Embora seja argentino e fale castelhano, ele pensa em francês, faz anotações no escuro enquanto assiste aos filmes, raramente escreve críticas favoráveis, refere-se a Godard como a um íntimo, reencena com sua namorada a famosa sequência de Acossado (1960) na qual Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo) ameaça estrangular Patricia Franchini (Jean Seberg) se ela não sorrir antes dele contar até oito. Na cena, Michel aperta o pescoço dela com os polegares e conta: “…dois, três, quatrocincoseis, sete, sete e meio, sete e três quartos…”. E diz, à medida que aumenta a pressão no pescoço dela durante 17 segundos: “Você é tão covarde. Aposto que vai sorrir.” Finalmente, Patricia dá o sorriso mais lindo do mundo, sorriso que conquistou para sempre toda uma geração, à qual pertence o crítico de cinema Victor Téllez. Ele é o personagem principal de O crítico (2013), de Hermán Guerschuny, e seus sintomas não deixam dúvida: sofre da doença do cinema, ou melhor, “de la maladie du cinéma”.

Prova de que o diagnóstico está correto é Téllez, além da sintomalogia mencionada, ainda acreditar em final feliz. É preciso que sua namorada, prestes a embarcar de volta à Espanha, recuse a proposta de ficar com ele na Argentina e lhe diga algo como “você vai se sentir melhor com o tempo”, para que ele, surpreso, pareça encarar por um momento a realidade da vida. A vida que, como Janet Malcom escreveu comentando Tio Vania, “permanece opaca, desinteressante, sem beleza”.

No trailer de O crítico, exibido também antes do filme (por engano?) em sessão do Estação Net Gávea 3, dirigindo-se aos espectadores, Téllez mostra ser mais ácido do que no próprio filme ao anunciar que tem duas notícias para dar, uma má e outra boa. A má notícia é que “o cinema está morto”, antiga tese de Godard; a boa notícia é que “ainda é possível fugir pela saída de emergência”.

O que Téllez acharia de Depois da chuva, de Claudio Mesquita e Marília Hughes? Estranharia a preocupação da simpática dupla de diretores em situar o ação em um período preciso que vai do Comício das Diretas, em abril de 1984, à morte de Tancredo Neves, um ano depois, vistos em imagens de arquivo no ínicio e no final do filme? Diante da indiferença dos personagens em relação aos eventos políticos daqueles dias, ele ficaria em dúvida quanto à intenção dessa abertura e desse encerramento? Estranharia a apatia do elenco de adolescentes, mesmo não sendo atores profissionais? Consideraria que Depois da chuva confirma a morte do cinema? Não creio que chegasse a tanto.

E dos títulos de alguns filmes brasileiros recentes, o que Téllez diria? Talvez achasse bizarro nomes como Amor, plástico e barulho, Até que a Sbórnia nos separe e Tudo que Deus criou e procurasse saber se chamam atenção, atraem público, são adequados aos próprios filmes. É possível que ficasse intrigado, sem saber se são propositalmente de mau gosto ou se seus diretores, produtores e distribuidores os consideram instigantes.

Téllez iria assistir e comentaria Loucas para casar? Imagino que não. Se fosse, creio que sairia deprimido. É a isso que estamos reduzidos, pensaria consigo mesmo, sem deixar de anotar, porém, o talento das atrizes Fabiana Karla e Tatá Werneck. Sugestionado por uma cena do início filme, retomada perto do final, Téllez talvez tivesse impulso de se atirar da ponte. Pobre, Téllez. Ele não é mesmo deste mundo no qual personagens debilóides, humor primário e ambientes luxuosos, regidos pelo menino de ouro Roberto Santucci, são servidos para alegria da galera.

E o que Téllez teria a dizer sobre o próprio filme O crítico, do qual é o personagem principal? Reconheceria que, fora ele mesmo, é fraco? Que mesmo para um filme de estreia, deixa muito a desejar? Téllez à parte, o que resta é um enredo bobinho contado de maneira burocrática, sem qualquer interesse visual. Mais uma variação do eterno tema homem encontra mulher e a relação acaba se desfazendo.

Como explicar, então, que tenha ganho o prêmio de Melhor Filme Latino, dado pelo júri da Crítica, em agosto do ano passado, no 42º Festival de Cinema de Gramado? Os críticos terão se reconhecido no filme? Terá sido, então, uma decisão autocelebratória? Um caso flagrante de corporativismo? É possível, o que apenas confirmaria o que já se sabe: a maladie du cinéma é uma pandemia há mais de um século e, enquanto as previsões apocalípticas não se confirmarem de todo, não há nada a fazer.

*

PS. Quem se lembrar da sequência de Acossado citada no primeiro parágrafo acima deve seguir as recomendações da OMS. Deve estar contaminado pelo vírus da doença do cinema e o mal sendo incurável é preciso buscar assistência psiquiátrica para não perder o rumo de todo.

 

Cena do filme ‘Acossado’ (‘À bout de souffle’, no título original), lançado em 1960

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