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    Manuel Pulgar-Vidal durante a abertura da Conferência do Clima de Lima (foto: Ministério das Relações Exteriores do Peru - CC BY-SA 2.0)

Questões da Ciência

O cirurgião-chefe

Manuel Pulgar-Vidal, ministro do Meio Ambiente do Peru, foi o responsável por compatibilizar posições que pareciam inconciliáveis no final da Conferência do Clima realizada em Lima em dezembro passado. A costura do acordo que resolveu o impasse no qual os países se encontravam ao final de duas semanas de negociações foi relatada na “chegada” da piauí 100. Leia a seguir uma versão estendida da reportagem, com trechos não incluídos na edição impressa.

Bernardo Esteves | 13 jan 2015_12h47
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Manuel Pulgar-Vidal, ministro do Meio Ambiente do Peru, foi o responsável por compatibilizar posições que pareciam inconciliáveis no final da Conferência do Clima realizada em Lima em dezembro passado. A costura do acordo que resolveu o impasse no qual os países se encontravam ao final de duas semanas de negociações foi relatada na “chegada” da piauí 100. Leia a seguir uma versão estendida da reportagem, com trechos não incluídos na edição impressa e ouça um podcast sobre os bastidores da cobertura do evento.

CIRURGIA À PERUANA
A costura de um acordo do clima com obrigações para todos


Enquanto as negociações para um novo acordo global progrediam lentamente na Conferência do Clima em Lima, as emissões de gases do efeito estufa na atmosfera seguiam aumentando.

Passava da meia-noite de sábado quando os monitores espalhados pela Conferência do Clima da ONU em Lima, no Peru, anunciaram que os negociadores se reuniriam à uma da manhã, e que a plenária seria realizada na sequência. A portas fechadas, representantes de quase 200 países estavam definindo o resultado mais aguardado do encontro, ao qual todos se referem como COP, sigla em inglês para Conferência das Partes. Na primeira quinzena de dezembro, eles haviam tentado chegar a um acordo sobre as bases de um tratado para o combate ao aquecimento global.

No início da segunda semana do evento, o presidente da COP de 2014, Manuel Pulgar-Vidal, ministro do Meio Ambiente do país anfitrião, convidou os negociadores a celebrar o “espírito de Lima”. Anunciou o plano de terminar a semana erguendo um brinde de pisco com vinho às 18 horas de sexta-feira, referindo-se às bebidas nacionais do Peru e da França, para selar a transição até a COP de 2015, em Paris. Na ocasião, espera-se, será assinado o novo acordo climático global – um documento que alguns vêm chamando informalmente de “Aliança de Paris”, que a partir de 2020 deve suceder o Protocolo de Kyoto.

A expectativa era de que os países saíssem com um primeiro rascunho do acordo. Pairava o sentimento de que não se podia errar. O naufrágio da conferência de Copenhague, em 2009, quando os países não conseguiram apontar o caminho para um novo tratado, ainda estava vivo na memória de todos. “Esta é a última chance que temos”, disse o ministro Raphael Azeredo, diretor do Departamento de Meio Ambiente do Itamaraty e um dos negociadores brasileiros no Peru, numa entrevista em seu gabinete, algumas semanas antes da COP. “Um fracasso em Lima significa um fracasso em Paris.”

Compartilhado por colegas de outros países, o sentimento de urgência não bastou para que os negociadores chegassem a um consenso no prazo determinado. No início da noite de sexta, o embaixador José Antônio Marcondes de Carvalho, líder da equipe de negociadores do Brasil, chamou para uma conversa os conterrâneos que cobriam o evento. Não estava contente com o texto que ora se apresentava – parecia-lhe pouco ambicioso, um retrocesso em relação aos compromissos já assumidos. “O documento padece de uma série de debilidades”, afirmou, recorrendo a um eufemismo.

A

s partes reunidas nas COPs são os 195 países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, além da União Europeia. A convenção foi instituída há 22 anos, durante a Eco-92, a Cúpula da Terra realizada no Rio de Janeiro. Sua criação sinalizava a preocupação crescente com um problema para o qual a humanidade começava a despertar: o aquecimento global provocado pela emissão de gases produzidos por atividades como a queima de combustíveis fósseis para a geração de energia, a produção industrial, a agricultura, a pecuária ou o desmatamento.

Cientistas constataram que a concentração desses gases – ditos do “efeito estufa” – na atmosfera estava alcançando patamares inauditos, o que aumentaria a temperatura média do planeta, com consequências potencialmente funestas. Se o termômetro subisse até 6ºC, como indicavam algumas projeções feitas por grandes computadores que simulam a evolução do sistema climático global, aumentaria a frequência de eventos catastróficos como grandes secas ou tempestades, furacões e inundações, com o recrudescimento da fome, o alastramento de doenças e a ocorrência de conflitos.

Um dos objetivos da convenção era estabelecer um tratado internacional que resolvesse o problema – nos moldes do Protocolo de Montreal, exitoso ao conter o buraco da camada de ozônio na atmosfera. Assinado na COP de 1997, Kyoto só entrou em vigor em 2005. A Convenção do Clima e o Protocolo de Kyoto são como a Constituição do regime climático internacional, e as COPs são fóruns em que negociadores dos países discutem as leis complementares.

O Protocolo de Kyoto foi elaborado com base num elemento central da Convenção do Clima: o reconhecimento de que diferentes países contribuíram de forma desigual para a elevação da temperatura do planeta. Países desenvolvidos, que desde a Revolução Industrial estavam lançando gás carbônico na atmosfera, teriam mais responsabilidade histórica do que países em desenvolvimento, cujos parques industriais só se consolidaram no século XX. No texto da convenção, essa discrepância se cristalizou na premissa de que os países têm “responsabilidades comuns, mas diferenciadas”. Por isso, no Protocolo de Kyoto apenas os desenvolvidos assumiram o compromisso de reduzir a emissão de gases-estufa até o ano de 2020.

Limitar a emissão dos gases que estavam causando o buraco de ozônio, como fez o Protocolo de Montreal, de 1987, mostrou-se uma tarefa mais fácil, porque atrelada à regulação de um setor industrial localizado. Para evitar o lançamento dos gases-estufa, porém, é preciso mudar toda a estrutura da economia dos países, com a transição para formas renováveis de energia e transformações profundas na produção industrial e na agropecuária. Não chega a surpreender que o Protocolo de Kyoto tenha encontrado resistência em muitos países. Japão e Rússia já avisaram que não cumprirão os compromissos assumidos para o período entre 2012 e 2020. O Canadá ratificou-o, mas recuou após constatar que não cumpriria suas metas (nenhum deles sofreu qualquer sanção). Os Estados Unidos chegaram a assiná-lo, mas quando o acordo foi submetido ao Senado, foi rejeitado com a votação eloquente de 95 a 0.

Sem a presença dos Estados Unidos, o país que mais lançou esses gases na atmosfera, e de economias emergentes como China, Índia e Brasil, dispensadas de reduzir suas emissões, o acordo abarcou apenas 15% das emissões globais, e só conseguiu desacelerar o aumento da emissão dos gases poluentes.

O

embaixador José Antônio Marcondes de Carvalho é um gaúcho de cabelo e barba grisalhos, as sobrancelhas pretas. Em Lima, recebeu em várias ocasiões os repórteres brasileiros, convocados por um grupo de WhatsApp. Na noite de sexta, enquanto os negociadores alinhavavam o texto da decisão final, parecia mais tenso do que nas conversas anteriores: em duas ocasiões falou com voz mais firme, levemente acima do tom cordato com que costuma se dirigir aos interlocutores. Estava contrariado porque o documento não deixava explícita a diferenciação entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. “Trata-se de uma cláusula pétrea que sequer está mencionada no texto”, afirmou. “Não queremos reescrever a convenção.”

Os países ricos não querem mais pagar a conta sozinhos. O fim da diferenciação entre as nações foi abertamente defendido pelos representantes da União Europeia. Alegam que já não faz sentido excluir países que fizeram avanços significativos no combate à pobreza e que hoje, com economias robustas, estão entre os principais emissores de gases-estufa. Em uma entrevista coletiva, Elina Bardram – líder da equipe europeia de negociadores – afirmou que o princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” tem que “ser aplicado de forma mais contemporânea e nuançada, porque o mundo não é estático”. E concluiu: “Não vivemos mais no mundo de 1992.”

O princípio também foi reforçado de forma enfática por John Kerry, secretário de Estado norte-americano, durante uma visita relâmpago. “Não temos mais tempo para discutir de quem é a responsabilidade”, afirmou. Kerry admitiu que os Estados Unidos e outras nações haviam contribuído significativamente para o aquecimento global, mas num momento em que ainda não tinham conhecimento das consequências da emissão irrestrita de gases-estufa na atmosfera. Lembrou que os países em desenvolvimento respondem hoje por mais de metade das emissões globais, e que não podem repetir os mesmos erros do passado. “Um acordo ambicioso em Paris não é uma opção, é uma necessidade urgente.”

E

uropeus e norte-americanos chegaram a Lima de bem com a opinião pública, após anúncios de compromissos voluntários de combate ao aquecimento global. No fim de outubro, a União Europeia declarou que reduzirá suas emissões em 40% até 2030 – tomando por base os níveis de 1990 –, e que aumentará a participação de fontes renováveis em sua matriz energética. O anúncio conjunto feito algumas semanas depois por China e Estados Unidos foi mais surpreendente, embora menos ousado. Barack Obama declarou que o país reduziria suas emissões entre 26 e 28% até 2025, em comparação com os níveis de 2005. Já o presidente Xi Jinping estabeleceu 2030 como ano limite para o crescimento das emissões chinesas, além de se comprometer a investir vigorosamente em energias renováveis – uma ação motivada em parte pela insatisfação dos chineses com a poluição nas grandes cidades.

O anúncio conjunto animou os ambientalistas. Pela primeira vez, os dois maiores emissores – juntos, respondem por 42% de todo o carbono lançado na atmosfera – acenavam com ações incisivas de combate ao aquecimento global. Obama prometia agir contra a mudança climática desde sua primeira candidatura, mas só atuou no segundo mandato. Com dificuldade para aprovar medidas impopulares no Congresso, tem se limitado ao âmbito do Poder Executivo, como a exigência de normas mais rígidas de regulação de termelétricas e de alguns setores industriais. Resta ver se essas ações serão o bastante para que se atinjam as metas americanas, e se o barco seguirá no mesmo rumo caso o Partido Republicano recupere a Casa Branca no ano que vem.

Após o anúncio, especulou-se se a Índia – o terceiro maior emissor global – assumiria algum compromisso voluntário. Os ventos que sopram de Nova Delhi, porém, indicam o contrário: o país vem investindo pesado na exploração de carvão, o mais demonizado dos combustíveis fósseis, abundante no país, e vai priorizar a erradicação da pobreza – são 300 milhões de cidadãos (uma vez e meia a população brasileira) sem acesso a eletricidade, com emissão de carbono quase dez vezes menor que o norte-americano médio. Recentemente, o ministro indiano das Minas e Energia afirmou que “por muitos anos os imperativos de desenvolvimento do país não poderiam ser sacrificados no altar das mudanças climáticas potenciais”, segundo relatou o New York Times.

Na diplomacia do clima, o Brasil negocia em bloco com China, Índia e África do Sul, com quem forma o grupo conhecido pela sigla Basic. A ministra Izabella Teixeira, do Meio Ambiente, se reuniu várias vezes com seus colegas do Basic e foi fotografada ao lado deles para sinalizar a união do grupo.

O Brasil também tinha trunfos para mostrar em Lima: em seu discurso, a ministra celebrou os dados recém-anunciados de redução anual do desmatamento na Amazônia, um índice que caiu 82% em dez anos. “O Brasil deixou de emitir 650 milhões de toneladas anuais de dióxido de carbono”, afirmou.

A ministra não disse, porém, que as emissões brasileiras cresceram quase 8% em 2013, beirando 1,6 bilhões de toneladas de CO2. “Se o Brasil não reduzir suas emissões para abaixo de um bilhão de toneladas até 2030, não dará para limitarmos o aquecimento à meta de 2ºC”, disse o ambientalista Carlos Rittl, citando cálculos não publicados do Observatório do Clima, do qual é o secretário executivo.

À diferença do Protocolo de Kyoto, que impõe metas obrigatórias de redução de emissões a alguns países, o acordo de Paris será baseado em compromissos voluntários, anunciados individualmente. A dificuldade de se fechar um acordo internacional contra o aquecimento do planeta já foi comparada ao desafio de dividir uma conta de bar ao cabo de uma noitada. Uns comem e bebem desde o início da festa, alguns recém-chegados se fartam; uns tomam uísque, outros só bebem chope ou água. O que se pede para o tratado de Paris é que cada um faça um exame de consciência e desembolse o quanto achar justo para pagar a conta.

Cada país vai submeter sua proposta de contribuição ao longo do primeiro semestre, e um comitê designado pela Convenção do Clima avaliará se as ações anunciadas serão capazes de manter o aumento da temperatura média abaixo do limite de 2ºC em relação ao período anterior à Revolução Industrial – um patamar que talvez permita arcar com as consequências do aquecimento global (o mercúrio já subiu 0,8ºC desde 1850). Para isso, os cientistas estimam que seja necessária uma redução de 40 a 70% nas emissões globais até 2050, em comparação com 1990.

Numa rodada de negociações anterior, o Brasil propôs um novo modelo de diferenciação dos países que prevê níveis diferentes de comprometimento para o acordo de Paris. A ideia se inspira na imagem de círculos concêntricos, em que países do centro teriam que anunciar contribuições nacionais mais ambiciosas que os das camadas mais periféricas.

Numa entrevista que deu durante um lanche no meio da tarde, o engenheiro florestal Tasso Azevedo recorreu a dois pratos de plástico, cada um de um tamanho, para representar os círculos concêntricos. “A ideia só funciona se contar com um gatilho que defina como os países migrarão para os círculos mais internos, como por exemplo a renda per capita ou outro índice de desenvolvimento”, disse Azevedo, que em Lima integrou a delegação brasileira e assessorou o presidente da COP.

Na avaliação de Carlos Rittl, o modelo é engenhoso. Falta ao Brasil, porém, mais garra nas ações de combate. Rittl abriu seu laptop e mostrou um estudo da Universidade Concórdia, no Canadá, com uma estimativa de quanto os diferentes países contribuíram desde a Revolução Industrial para o aquecimento global verificado até hoje. O Brasil aparece em quarto lugar, atrás de Estados Unidos, China e Rússia, e à frente da Índia, Alemanha e Reino Unido, em grande parte devido ao desmatamento. “Deveríamos ocupar o círculo central, junto com os países desenvolvidos”, disse.

A fala de Rittl ecoa críticas de outras organizações não governamentais que estiveram em Lima. Márcio Astrini, ambientalista do Greenpeace, sublinhou o descompasso entre a ação dos negociadores brasileiros e a política interna de meio ambiente no país. Citou o aumento recente das emissões brasileiras e a maior participação de combustíveis fósseis na matriz energética brasileira. Mas a contradição não é privilégio nosso. “Não há a menor compatibilidade entre o que se discute aqui e a realidade”, notou Astrini. “Os países vieram a Lima interessados em proteger suas economias.”

Em dezembro, o tufão Hagupit passou pelas Filipinas, deixando um rastro de dezenas de mortos e centenas de milhares de desalojados – é o terceiro ano seguido que isso acontece durante a COP. “Enquanto estamos aqui discutindo, as emissões de carbono continuam aumentando”, notou a representante da África do Sul.

A conferência de Lima atraiu em torno de 14 mil pessoas a uma série de pavilhões montados numa área do Pentagonito, a sede do Exército peruano. Pelo evento circularam não só os negociadores, mas também parlamentares, cientistas, representantes de ONGs e de vários setores da sociedade envolvidos em dezenas de atividades paralelas. O Brasil foi quem enviou a maior representação, com mais de 400 integrantes – o país decidiu acolher em sua delegação todos aqueles que representassem alguma instituição (e bancassem a viagem). Cerca de dez, porém, estavam autorizados a falar em nome do país.

As negociações propriamente ditas aconteciam em ambientes de acesso restrito, e progrediam com vagar. No regime multilateral, as decisões devem ser tomadas por consenso, e quando isso envolve o compromisso entre duas centenas de posições, a tarefa pode ser árdua. Tasso Azevedo contou ter presenciado uma discussão minuciosa sobre como a decisão final da COP faria referência ao rascunho do acordo de Paris incluído no anexo – se ele “deveria servir de base para”, “ser considerado” ou “ser tomado em conta”, entre várias outras opções. “Falaram quase duas horas e não resolveram.” A três dias do fim da conferência, um representante do Nepal lamentou que a discussão do novo acordo ainda estivesse no preâmbulo.

Não é incomum que as COPs se decidam nos últimos dias, em discussões que se arrastam madrugada adentro. Muitas vezes, leva a melhor quem tem uma delegação grande e pode contar com negociadores descansados até o fim. Um diplomata brasileiro comparou a plenária final a um filme de zumbis. Em Lima não foi diferente. Às duas e meia da madrugada do sábado, circulou um novo texto com a decisão final, que seria submetido à aprovação dos países. Tratava-se de um documento de quatro páginas, acompanhado do rascunho do acordo. Alguns quiseram discuti-lo e aprová-lo na sequência, mas outras delegações se opuseram. A sessão foi suspensa e a plenária foi marcada para as dez.

Por volta das dez e meia, os trabalhos ainda não haviam sido retomados. O pavilhão principal já estava com seus 2 mil lugares quase todos ocupados quando chegou um dos membros da delegação brasileira. Antes que ele entrasse, perguntei-lhe se havia sido possível avançar em relação ao documento que estava em discussão na véspera. Ele disse que os países haviam chegado a um texto de compromisso, que não agradava muito a ninguém. “Não fosse assim e não seria um texto de compromisso.”

Quando o coordenador da plenária abriu a palavra aos representantes das delegações, ficou claro que seria impossível aprovar o texto tal como estava. Vários países em desenvolvimento queixaram-se que o documento não reconhecia o princípio da diferenciação entre as nações e que priorizava apenas medidas de redução da emissão de gases do efeito estufa – queriam mais destaque aos mecanismos de adaptação, para que pudessem se preparar para fazer frente ao aquecimento global, além de ajuda financeira e tecnológica dos mais ricos.

O representante de Tuvalu, um país insular no Pacífico que corre o risco de desaparecer num futuro próximo se o nível médio dos oceanos continuar a subir nos níveis atuais, queixou-se que o texto não previa mecanismos para a compensação das perdas e danos sofridos pelos países mais vulneráveis em decorrência da mudança do clima. Exibindo uma gravata-borboleta verde bem estilosa, o negociador disse que a redação precisava de uma cirurgia. “Alguns elementos vitais precisam ser incorporados.”

Alguns fizeram intervenções teatrais. “Esse texto pode causar miséria e infelicidade”, vaticinou o Egito; “Não entreguemos a conta aos pobres”, conclamou a Índia; “O que vou dizer a meus filhos quando voltar para casa?”, indagou o representante do Paquistão. A colocação mais dramática veio da Malásia. O negociador Gurdial Singh Nijar lembrou que já vivemos num mundo diferenciado – bastava observar quem aplaudia as diferentes declarações na plenária. “Muitos de vocês nos colonizaram e partimos de condições bem distintas. O que mais querem que façamos? Há um mundo pobre lá fora, reconheçam isso.”

Os países desenvolvidos, por sua vez, também se declararam insatisfeitos. União Europeia, Rússia, Austrália, Nova Zelândia e Japão fizeram declarações similares, em que reconheciam imperfeições no documento, mas sustentavam que deveria ser levado adiante. Quando pediu a palavra, Todd Stern, negociador-chefe da delegação americana, afirmou que o próprio futuro da Convenção do Clima como arena para o trato da mudança climática dependia da aprovação do texto. “Não descartemos o que conseguimos até aqui. Faço um apelo para que considerem o que está em jogo.”

Os representantes do Basic ecoaram as críticas dos países em desenvolvimento e propuseram que o texto sofresse modificações pontuais nas horas seguintes. “Com alguns ajustes cirúrgicos pode ficar bom”, afirmou José Antônio Marcondes de Carvalho. Ainda na chave da metáfora médica, o ministro do meio ambiente de Cingapura – que havia sido mobilizado por Manuel Pulgar-Vidal, do Peru, para ouvir os diferentes lados e trabalhar pelo consenso – lembrou que, antes de se proceder a uma cirurgia, era preciso considerar a necessidade da intervenção e suas eventuais complicações. “Não podemos usar uma faca muito grande”, alertou. “Caso contrário, uma circuncisão pode acabar em amputação.”

“Parece que não temos um consenso”, reconheceu o coordenador da plenária, depois que todos se manifestaram. Só havia uma solução: a decisão final iria para a faca. O cirurgião-chefe apontado foi o presidente da conferência. Nas horas seguintes, Pulgar-Vidal se reuniria com representantes dos diferentes grupos de países, para conduzir os ajustes possíveis. Cabia a ele tentar conciliar em algumas horas os pontos de discórdia que os negociadores não haviam conseguido resolver em duas semanas.

Sob o bisturi de Pulgar-Vidal, o texto recebeu emendas que atenderam as principais reivindicações dos países em desenvolvimento. O princípio das “responsabilidades comuns, mas diferenciadas” foi nominalmente citado, e o mecanismo de compensação por perdas e danos também foi acolhido.

Ambientalistas consideraram o texto final uma solução de compromisso fraca. Muitas das decisões aguardadas em Lima continuam em aberto para as rodadas intermediárias que devem anteceder a COP de Paris – a primeira delas acontece já em fevereiro, em Genebra. Um primeiro rascunho do acordo foi aprovado, mas trata-se de um texto bastante vago de 37 páginas, em que cada parágrafo apresenta várias formulações – chegam a dez num dos casos – a serem escolhidas futuramente pelos negociadores. O acordo pode nos conduzir a mundos bem diferentes, a depender da redação final.

Embora o princípio de diferenciação entre os países tenha sido preservado, não ficou claro de que modo ele deve guiar o documento de Paris. A proposta dos círculos concêntricos apresentada pelo Brasil não foi mencionada, mas ainda pode inspirar o modelo a ser adotado. O prazo estipulado para o anúncio das ações que cada país se compromete a fazer para erigir o tratado de Paris é frouxo: o texto cita o primeiro trimestre de 2015, para “os países que estiverem prontos para fazê-lo”. O Brasil tem sinalizado que só em junho divulgará suas metas. Tampouco haverá mecanismos de revisão rigorosa dos objetivos a serem anunciados. O mundo vai depender da boa vontade e da ambição individual de cada nação para manter o aumento da temperatura abaixo do limite de 2ºC.

Outro ponto que avançou pouco em Lima foi o financiamento das ações de mitigação e adaptação dos países vulneráveis ao aquecimento global. Durante a COP, foram anunciados aportes de 10,2 bilhões de dólares ao Fundo Verde do Clima, criado com esse objetivo. A soma está dentro da meta estabelecida para este ano, mas não ficou claro como esses investimentos se elevarão à casa dos 100 bilhões anuais, compromisso firmado pelos países desenvolvidos a partir de 2020.

Mas a decisão final de Lima tem o lado positivo de manter os países nos trilhos rumo ao acordo de Paris. Não obstante os termos serem vagos, as nações seguem empenhadas em construir a primeira iniciativa de fato global de combate à mudança do clima – não é pouco. “Viemos a Lima assegurar o caminho para Paris, e estou confiante disso”, disse a ministra Izabella Teixeira após a plenária de sábado.

Quando faltavam três dias para o fim da COP, os principais pontos em negociação ainda não estavam fechados. Perguntei ao embaixador Marcondes de Carvalho se o pouco tempo que restava bastaria para desatar os nós. O embaixador citou uma frase que atribuiu a Neném Prancha, ex-técnico do Botafogo imortalizado como o filósofo do futebol. “Só acaba quando termina.” A julgar pelas pendências, o caminho até um acordo global está longe de terminar.

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