ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
УЧИТЕЛЬНИЦА
Aulas de russo com a neta de Prestes
Tiago Coelho | Edição 139, Abril 2018
A professora chegou à casa da aluna com o rosto vermelho e suado. A anfitriã ofereceu-lhe algo de beber. “Aceito um mate, пожалуйста”, respondeu Daria Prestes, pedindo por favor em russo (a pronúncia é algo próximo de bajausta). Enquanto se refrescava, praguejou contra o calor do Rio de Janeiro, apesar do fim iminente do verão. “Já em Moscou, onde a temperatura deveria estar subindo, o termômetro está abaixo de zero”, ela disse, num português com sotaque discreto. “Está tudo muito louco.”
A aluna daquela tarde era Thamie Kato, uma roteirista de audiovisual de 27 anos. A professora anunciou que a aula trataria de verbos auxiliares como querer, poder e dever. Pediu que a aluna dissesse “quero perguntar” em russo. Kato soltou um riso nervoso – até então, havia aprendido apenas a dizer expressões mais simples, como “obrigado” ou “com licença”.
Com alguma insegurança, Kato arriscou: “Я хочу спросить” (uma frase com pronúncia próxima de iarrá tshus prassit). “Muito bem”, reagiu a professora. Na aula seguinte, sugeriu que a aluna lhe perguntasse em russo se ela desejava beber mate ou água. “Aliás”, continuou, “você sabia que ‘vodca’ em russo quer dizer ‘aguinha’?”
Dias antes, Kato descobrira que havia sido sorteada no site da Fifa e poderia comprar entradas para a partida entre França e Dinamarca pela Copa do Mundo. Aficionada por esportes, estava disposta a ir para a Rússia mesmo sem a garantia dos ingressos, e por isso começara em novembro a aprender noções básicas do idioma de Dostoiévski.
A aluna ficou intrigada quando viu o nome da professora. “Eu sabia que ela tinha nascido em Moscou. Com esse sobrenome, imaginei que tivesse alguma ligação com Luís Carlos Prestes.” Logo na primeira aula, a professora confirmou que, de fato, é neta do líder histórico do comunismo brasileiro. Kato se animou com a revelação. Seu avô, um velho comunista, ficaria orgulhoso. “Ele tem em casa um quadro da Revolução Russa com Lênin marchando sobre Moscou.”
Quando descobrem a ascendência de Daria Prestes, os curiosos geralmente querem saber se ela é neta também de Olga Benário. Nesse caso, a resposta é não. Luís Carlos Prestes conheceu a ativista alemã de origem judaica em 1934, em Moscou. No ano seguinte, o casal voltou ao Brasil para comandarem juntos a Intentona Comunista, que pretendia derrubar Getúlio Vargas.
Com o fracasso do levante, Prestes acabou preso e Benário, grávida do companheiro, foi extraditada para a Alemanha, onde morreu num campo de concentração seis anos após o nascimento de sua única filha, Anita Leocádia Prestes.
“Mas minha avó tem uma história igualmente forte e bonita”, disse a professora de russo. “Dona Maria foi militante da Juventude Comunista Brasileira, e seus pais eram comunistas também.” Prestes a conheceu depois que voltou à vida política como senador anistiado após o fim do Estado Novo. A jovem pernambucana trabalhava como governanta e fazia a segurança pessoal de Prestes. Trinta e dois anos mais velho que a nova companheira, ele adotou os dois filhos que Maria já tinha e com ela teve mais sete. Daria é filha de um deles com uma russa. Nasceu em 1984 em Moscou, onde o avô havia se exilado com a família depois de ter seus direitos políticos cassados pela ditadura em 1964.
A neta tem poucas lembranças de Prestes, que retornara ao Rio de Janeiro depois da anistia de 1979. Conheceu-o só em 1989, quando esteve no Brasil pela primeira vez. Guardou do avô a lembrança de um homem afetuoso que gostava de brincar com os netos no jardim de sua casa, na Gávea.
Suas memórias da infância em Moscou são um pouco mais nítidas. Ela recorda que, como sua família era de exilados políticos, tinha uma vida mais confortável que a média dos soviéticos. As roupas e brinquedos que ela trazia das férias no Brasil ou no Chile – onde seu avô materno trabalhava como correspondente de um jornal soviético – contrastavam com os apetrechos marrons e cinzentos típicos da indústria local. “No parquinho as crianças todas tinham roupas iguais, e eu lá com um casaquinho rosa fluorescente.”
No final da aula, Thamie Kato quis saber se a professora fora à Rússia votar para presidente em março. “Eu costumava ir, mas dessa vez achei que não faria a menor diferença”, respondeu, desanimada. “O Putin ia se reeleger com ainda mais votos do que antes, e a oposição não é muito melhor.” Ela se considera de esquerda, mas não comunista como muitos em sua família. “Vivi aquilo de dentro e há coisas que não dão certo”, avaliou. “É uma utopia que é bom ter na cabeça, mas difícil de realizar.”
Daria Prestes deixou a Rússia no início da década de 2000, quando Putin chegou ao poder. A princípio, tinha apenas a intenção de pedir a cidadania brasileira, mas acabou gostando do clima quente do país que vivia um momento estável em sua democracia. Estabeleceu-se de vez no Rio em 2007, no bairro de Santa Teresa, e começou a ganhar a vida dando aulas particulares de russo. Entre seus alunos há jovens com raízes no país eslavo e estudantes de letras. “E homens com namoradas russas”, completou. “Elas exigem que eles aprendam o idioma.”
Com a aproximação da Copa, a professora contava com o aumento da clientela. Torcedores que, como Thamie Kato, vão aproveitar o torneio para conhecer a Rússia são minoria, porém. A procura aumentou mesmo entre os jornalistas que se preparam para cobrir o evento. Naquela mesma tarde, ela deu aula para um repórter da Rede Globo numa cafeteria do Leblon.
A maior dificuldade de seus alunos é com a gramática e com o alfabeto cirílico. Já a pronúncia, os brasileiros costumam tirar de letra. “A palavra ‘bem’, como na expressão ‘tudo bem’, se diz хорошо”, explicou ela – a pronúncia soa como hraxó. “Um aluno disse que parece uma saudação baiana, como axé”, disse, rindo.
A professora não pensa em voltar para Moscou, mas anda desencantada também com o Rio. “Talvez eu vá com minha filha para uma cidade do interior”, afirmou. “Aqui não está bom.”