O braço mecânico do submersível Shinkai 6500 coleta amostra de crosta na Elevação do Rio Grande, chapada gigantesca no fundo do Atlântico Sul. Embora não haja ali nenhum vestígio de civilizações perdidas, o minicontinente submerso vem sendo chamado pelos pesquisadores de Atlântida FOTO_JAMSTEC
O segredo do abismo
Por que o Brasil quer explorar minérios nas profundezas do oceano Atlântico
Claudio Angelo | Edição 142, Julho 2018
Na tela do computador de Paulo Yukio Sumida surge uma imagem ao mesmo tempo familiar e estranha. No vídeo, faróis potentes iluminam uma superfície plana e preta, parecida com uma estrada vazia, que se estende por alguns metros até ser engolida pela treva circundante. Um coral alaranjado aparece na frente da câmera e lembra o espectador que ele está olhando o assoalho do oceano Atlântico, a 900 metros de profundidade. “Parece que asfaltaram o fundo do mar”, observa Sumida. E emenda: “É melhor que as ruas de São Paulo.”
As imagens foram feitas em maio de 2013 pelo minissubmarino japonês Shinkai 6500, durante uma expedição nipo-brasileira a bordo do navio oceanográfico Yokosuka, da Jamstec (Agência Japonesa de Ciência e Tecnologia da Terra e do Mar), cujo objetivo era explorar o Atlântico Sul.
Professor de oceanografia biológica da Universidade de São Paulo (USP), Sumida tornou-se naquele cruzeiro o primeiro brasileiro a atingir a planície abissal sul-atlântica, a 4 200 metros de profundidade. Ele embarcou no Shinkai (“mar profundo”, em japonês) às oito da manhã do dia 23 de abril, para uma missão com o objetivo de coletar amostras da fauna e da geologia do local até então jamais visitado por seres humanos. Palmeirense fanático, fez questão de bater o recorde trajando uma camiseta do time, mas não contou para ninguém no Parque Antártica: na época, a equipe alviverde lutava para emergir da segunda divisão do Campeonato Brasileiro, e o cientista quis evitar piadas sobre o assunto.
O Shinkai 6500 é um submersível, como são chamados os submarinos de sua categoria. Há pouquíssimos do mesmo tipo em operação no mundo. Sua cabine é uma esfera perfeita de titânio feita para resistir à pressão da água em profundidades de até 6 500 metros, o que permite a seus tripulantes, dois pilotos e um cientista, explorar as regiões mais inóspitas e desconhecidas da Terra, os abismos marinhos. O preço da segurança é o desconforto: naquele mergulho, foram nove horas dividindo um espaço de 2 metros de diâmetro com uma parafernália eletrônica e os pilotos japoneses Masaya Katagiri e Kazuki Iijima – sem direito a ir ao banheiro ou dar uma voltinha lá fora.
Para quebrar o tédio da descida, de duas horas e meia e feita às escuras, os pilotos piscavam os faróis do Shinkai para receber, como resposta, uma piscadela de reflexo dos organismos abissais, que produzem a própria luminescência. São criaturas que parecem oriundas da ficção científica, como o peixe-pescador, que tem um tentáculo luminoso na frente da cara; a bocuda enguia-pelicano; e o molusco com o nome nada sutil de Vampyroteuthis infernalis, ou lula-vampira-do-inferno. Sumida compara a experiência a uma viagem ao espaço. Uma jornada e tanto para o filho temporão de um tintureiro e de uma dona de casa, que nasceu num quarto e sala no bairro operário da Mooca, na Zona Leste de São Paulo, e até os 21 anos só conhecia o fundo do mar pelos filmes de Jacques Cousteau na tevê.
Em duas décadas e meia de carreira, o pesquisador do Instituto Oceanográfico da USP já rodou o mundo, mergulhou em submersíveis – incluindo o lendário Alvin, no qual americanos exploraram os restos do Titanic, em 1986 – e descreveu espécies novas para a ciência. Mas a expedição do Shinkai acabaria por conduzi-lo, juntamente com cinco colegas da universidade, a um abismo que nenhum deles estava preparado para enfrentar: o da geopolítica. Um projeto do grupo para pesquisar uma das áreas visitadas pelo submersível esbarrou em planos que o governo brasileiro já vinha executando para aquela mesma região, envolvendo soberania nacional, acordos internacionais, um continente perdido e, potencialmente, os recursos que definirão a economia do século XXI.
A área em questão é a Elevação do Rio Grande, um conjunto de platôs submarinos localizado a 1 500 quilômetros da costa do Rio de Janeiro, em águas internacionais. O principal desses platôs, chamado “área Alfa”, é um chapadão submarino do tamanho da Inglaterra, cujo ponto mais alto está a 700 metros de profundidade e o mais baixo, a 5 mil metros. Perto do topo desse colossal monte marinho foram feitas as imagens da tal estrada submarina.
Aquele pavimento submerso é um tipo de formação geológica conhecido como “crosta ferromanganesífera rica em cobalto” – ou crosta, para os íntimos. Ele ocorre entre 700 e 2 mil metros de profundidade na Elevação do Rio Grande. Tem poucos centímetros de espessura, o equivalente talvez a uma boa camada de asfalto numa via urbana. Sua idade é desconhecida e sua origem é um mistério para a ciência. Alguns geólogos acham que as crostas são “rochas vivas”, produto da ação de estranhas bactérias magnéticas que habitam zonas pobres em oxigênio dos abismos marinhos. Outros teorizam que elas se formam naturalmente sobre rochas calcárias, pela deposição de minérios dissolvidos na água.
Consensos sobre as crostas só há dois: elas crescem muito devagar, à razão de 1 ou 2 milímetros por milhão de anos ou mais; e são uma potencial mina de ouro. Quer dizer, não exatamente de ouro, mas de mais de duas dezenas de outros metais raros, que são a alma da indústria de alta tecnologia e cuja demanda deverá se multiplicar nos próximos anos, na esteira dos esforços para livrar a economia global dos combustíveis fósseis.
Nesses depósitos submarinos encontram-se, em quantidades e concentrações até milhares de vezes maiores que em terra firme, elementos químicos como o cobalto, o manganês, o lítio e uma família de dezessete metais conhecidos pela designação “terras raras”, um tanto genérica e enganosa. Os elementos de terras raras atendem por nomes estranhos, como telúrio, samário, ítrio, praseodímio e disprósio. Você provavelmente cruzou com eles no ensino médio e não os reconheceria na rua hoje. No entanto, a chance é alta de que, neste exato momento, esteja carregando alguns gramas deles na mão, no bolso ou nas orelhas. Seus fones de ouvido são feitos com ímãs de neodímio. A tela de vidro do seu smartphone é polida com cério, e as cores vibrantes da imagem são cortesia de umas pitadas de térbio. Todos os apetrechos da vida digital, das câmeras fotográficas ao iPad, dos laptops às caixas de som portáteis, levam generosas pitadas de terras raras e outros metais exóticos em sua fabricação.
Em seu livro The Elements of Power [Os Elementos do Poder], ainda não traduzido no Brasil, o americano David S. Abraham afirma que esses “metais menores”, como ele chama, estão para o mundo high-tech como o fermento está para a pizza: a quantidade necessária é pequena, mas sem ele a massa não existe. “Rapidamente, o mundo está ficando tão dependente de metais raros quanto de petróleo”, escreve.
Essa dependência deve crescer acentuadamente na esteira do Acordo de Paris contra as mudanças climáticas, que entrou em vigor em 2016. Cumprir a meta mais modesta do tratado, de limitar o aquecimento global a menos de 2oC neste século, exigirá eliminar os combustíveis fósseis até 2050, no máximo. Só que a produção, a transmissão e o armazenamento de energia limpa são totalmente movidos a metais raros. Turbinas eólicas giram tão livremente por causa de ímãs de disprósio ou neodímio; painéis solares são recobertos com telúrio; e o carro elétrico da Tesla tem terras raras em dezenas de componentes e deve sua autonomia espetacular a uma bateria de íons de lítio que leva cobalto em sua composição. Para Abraham, “não é exagero dizer que nosso uso de metais raros determinará o futuro do planeta”.
O Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE) parece concordar. Segundo um documento do órgão, de 2011, há risco de desabastecimento de cinco minerais essenciais para a indústria de energias renováveis – ítrio, európio, térbio, disprósio e neodímio –, o que pode retardar o ganho de escala dessas fontes substitutas dos combustíveis fósseis. O DOE estima que a demanda por cobalto e neodímio deve triplicar até 2025 em relação a 2010, e a demanda por disprósio deve quadruplicar. Em 2017, a União Europeia classificou o cobalto e as terras raras entre os 27 produtos minerais críticos para sua economia. O petróleo não aparece na lista.
O potencial interesse econômico das crostas, a ampla ignorância científica sobre sua gênese e seu entorno e a experiência na missão do Yokosuka tornaram a Elevação do Rio Grande o alvo óbvio do grupo do Instituto Oceanográfico quando a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o Conselho Nacional de Pesquisa Ambiental do Reino Unido abriram o edital SoS Minerals (Security of Supply of Mineral Resources), de apoio à pesquisa em minerais críticos, em 2014. Seriam 4,3 milhões de reais em cinco anos, e o equivalente em libras esterlinas para um grupo do Reino Unido, para fazer pesquisa de ponta nessa região virtualmente desconhecida do mundo. Além de elucidar o mistério das tais “rochas vivas”, o grupo queria entender um pouco mais sobre o ambiente único no qual elas se formam, as criaturas que ali habitam e como preservar aquele ecossistema.
Os paulistas seriam coordenados pelo oceanógrafo Frederico Brandini, um veterano com mais de trinta anos de experiência. E também já sabiam quem seria o parceiro britânico: o grupo liderado pelo oceanógrafo Bramley Murton, da Universidade de Southampton, onde um dos membros da equipe de Brandini, o geólogo italiano Luigi Jovane, havia trabalhado antes de se mudar para a USP. Murton e seus colegas tinham interesse em estudar crostas que ocorrem no Tropic Seamount, um monte marinho perto das ilhas Canárias. A parceria com os brasileiros permitiria estudar duas regiões distintas de crostas e compará-las, para tentar elucidar sua formação. O plano parecia perfeito. Mas faltou combinar com Brasília.
Que a pesquisa com britânicos na Elevação do Rio Grande era assunto politicamente sensível foi algo que só ficou claro no começo de 2015, e por acaso. No coffee break de um evento em Brasília, o biólogo Alexander Turra, também professor do Instituto Oceanográfico e integrante do grupo de Brandini, abordou o capitão de mar e guerra Carlos Leite, da Marinha, e comentou sobre a verba recém-conquistada. Leite era representante da Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, o órgão que cuida dos principais programas federais de oceanografia, e não gostou da novidade.
“O tempo fechou”, recorda-se Turra. “Ele quis saber quais eram os termos da colaboração com Southampton, por que os ingleses e qual era o interesse deles.” Seguiram-se longas e tensas discussões entre o Instituto Oceanográfico e a secretaria, que culminaram com o órgão federal negando diesel da Petrobras para a primeira expedição do navio da USP Alpha Crucis à Elevação do Rio Grande, em fevereiro deste ano. O movimento era sem precedentes: o governo federal sempre apoia a oceanografia doando combustível da estatal para os navios de pesquisa das universidades públicas brasileiras. Essa gentileza frequentemente é questão de vida ou morte para um projeto de pesquisa. Encher o tanque do Alpha Crucis, por exemplo, custa 250 mil reais, dinheiro que faria falta para as ambições da USP.
E fez: o grupo do Instituto Oceanográfico teve de usar dinheiro do projeto para bancar o cruzeiro, mas isso impactou o andamento da pesquisa. Em outubro de 2018, os britânicos mandariam da África do Sul seu navio oceanográfico Discovery, equipado com robôs submarinos, para um segundo cruzeiro do projeto binacional na Elevação do Rio Grande. Segundo Murton, a pernada custaria 1 milhão de libras, um custo extra que o Conselho Nacional de Pesquisa Ambiental, do Reino Unido, se ofereceu para pagar, para espanto do cientista inglês. Com os veículos robóticos – tecnologia de que a USP não dispõe –, seria possível fazer em Rio Grande os mesmos tipos de análise que os britânicos já haviam feito nas Canárias. “O problema é que, como a USP teve de gastar no combustível, não teve mais dinheiro para pagar os técnicos dos robôs”, disse Murton. Não se sabe que destino terá a expedição.
A Marinha confirmou à piauí, por meio de seu Centro de Comunicação Social, não ter liberado o diesel, mas porque não teria recebido a solicitação da USP a tempo.
Havia dois motivos bem concretos para a irritação do comandante Leite em 2015. Apenas um deles ficou claro para Turra e seus colegas no primeiro momento.
Naquele mesmo ano, o Brasil havia fechado um contrato com a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) – um órgão ligado à Organização das Nações Unidas – para explorar uma área de 3 mil quilômetros quadrados na Elevação do Rio Grande com potencial de ocorrência de crostas. O contrato tem prazo de quinze anos e é executado sob um plano de trabalho sigiloso. Caso as pesquisas demonstrem viabilidade econômica e segurança ambiental, o país poderá, a partir de 2030, reivindicar direitos exclusivos sobre 150 blocos de 20 quilômetros quadrados cada e minerar metais raros naquela área internacional. As pesquisas são executadas pela Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) – uma autarquia vinculada ao Ministério de Minas e Energia –, que desde 2009 vem realizando missões na elevação, no programa chamado Proárea.
A presença de uma potência estrangeira na zona de crostas, mesmo que pesquisando em locais fora da área do contrato, era problemática para a Marinha e para a CPRM. O governo brasileiro não quer compartilhar dados ou amostras geológicas com outros países, por medo de concorrência. Embora Rio Grande esteja em águas internacionais – e, portanto, pesquisa ali quem quiser, quando bem entender –, o Brasil não gostaria de ver informações sobre os recursos da região estampadas em periódicos internacionais para qualquer nação rica com mais tecnologia avaliar e eventualmente se aboletar ali. Especialmente quando a nação rica em questão é o Reino Unido.
A política externa brasileira tem sentimentos ambivalentes sobre o país europeu. Embora o Reino Unido seja um grande parceiro, o Brasil enxerga como uma ameaça estratégica a presença britânica no Atlântico Sul, em ilhas como as Malvinas/Falkland, as Sandwich do Sul e a Geórgia do Sul, perto da Antártida. A chamada “linha de ilhas” dos britânicos é um lembrete constante da incompletude da soberania sul-americana sobre o oceano que o Brasil e os países vizinhos consideram seu quintal. A Elevação do Rio Grande é considerada um ponto crucial nessa disputa.
“A chamada SoS Minerals é um plano estratégico do Reino Unido para avançar no conhecimento do oceano profundo e desenvolver a indústria mineral inglesa”, diz o oceanógrafo Ivo Pessanha, que até maio era chefe da Divisão de Geologia Marinha da CPRM e coordenador do Proárea. “Não podemos nos dar o privilégio da inocência científica, de achar que o interesse científico está descolado dos interesses estratégicos dos Estados.”
O diretor científico da Fapesp, Carlos Henrique de Brito Cruz, minimiza as rusgas com o governo. Diz que a chamada SoS Minerals foi uma ideia rigorosamente bilateral, que integra uma série de acordos que a fundação tem com outros países e que já resultou em 52 projetos temáticos – os financiamentos mais caros e de maior longo prazo concedidos pelo órgão de fomento paulista. “São projetos concebidos, escritos e realizados em conjunto pelas instituições dos dois países”, afirma.
Murton diz que seu grupo não está agindo em nome de nenhum objetivo estratégico do governo britânico para com a Elevação do Rio Grande. “Não estamos interessados em minerar as crostas ou tentar descobrir qual é o valor delas como recurso ou commodity. Queremos entender como elas se formam, quais podem ser os impactos ambientais de sua mineração, não se trata de um interesse comercial.”
Ele conta que trabalhou num outro projeto, da União Europeia, numa área onde a França tem um contrato com a isa. “Os franceses não eram parte do programa, mas ficaram muito felizes em ter os nossos dados, que evidentemente nós demos a eles, por cortesia. Porque eles não vão publicar os resultados da pesquisa, vão usá-la para ajudá-los com a licença de exploração”, afirma o pesquisador de Southampton. “Então achamos que a CPRM fosse ficar feliz em ter milhões de libras em dados a custo zero. Mas outra coisa parece ter entrado no caminho.”
O que entrou no caminho e ajudou a alimentar a preocupação do comandante Carlos Leite naquele coffee break em Brasília foi, com o perdão do poeta, uma pedra.
Luigi Jovane a retira de uma caixa de amostras geológicas em seu laboratório no Instituto Oceanográfico e me entrega. Ela foi coletada em fevereiro deste ano pelo Alpha Crucis na Elevação do Rio Grande. Tem o diâmetro de um limão-cravo e é cinza-claro com faixas pretas no meio. Diferentemente dos elementos de terras raras, você vê rochas desse mesmo tipo todos os dias, em qualquer lugar de qualquer cidade brasileira, e seria capaz de reconhecê-la instantaneamente, embora talvez não saiba seu nome. “É um gnaisse”, diz Jovane, sem empolgação.
Os gnaisses são rochas metamórficas, formadas a partir de granitos submetidos à ação do tempo, das altas temperaturas e da pressão no interior da Terra. São muito antigos e tão comuns no território brasileiro que frequentemente são usados como piso em calçadas ou como brita na construção civil. Não havia nada extraordinário sobre aquele gnaisse coletado no fundo do mar, exceto uma coisa: “Ele não deveria estar ali”, afirma o geólogo, um romano de 41 anos precocemente grisalho em cuja sala uma profusão de amostras de rocha divide espaço com uma foto do papa.
Se os pesquisadores da CPRM estiverem certos, pedras como aquela, que vêm sendo encontradas por vários cruzeiros de pesquisa na Elevação do Rio Grande, são partes do continente submerso da Atlântida. Ou, para sermos mais justos: de um minicontinente submerso que, à falta de algo mais criativo, vem sendo apelidado de Atlântida. Embora não haja ali nenhum vestígio de uma civilização perdida, as implicações potenciais do achado são amplas o bastante para merecer o zelo das autoridades. Para entendê-las, porém, convém dar um passo atrás, até o século xix, quando um erro cometido por um amigo de Charles Darwin em sua busca pela origem da vida ajudou a abrir os portões de Netuno para a mineração.
Em 1868, o naturalista Thomas Henry Huxley, conhecido como o “buldogue de Darwin” por sua defesa aguerrida da teoria da evolução, publicou um artigo científico que sacudiu a academia britânica. Nele afirmava ter identificado em amostras de lama coletadas no fundo do mar dez anos antes uma substância gelatinosa com grânulos contendo “protoplasma” em estado primitivo de organização.
Parecia ser uma evidência em favor de uma descoberta, anunciada pouco tempo antes por outro amigo de Darwin, o alemão Ernst Haeckel, de um grupo de microrganismos muito primitivos que aparentemente evoluíram a partir de matéria inorgânica. Haeckel teorizou que essa matéria inorgânica seria uma “geleca” no fundo do mar, que ele chamou de Urschleim, ou “gosma primordial”.
Huxley achou que tivesse identificado em suas amostras uma criatura que provinha diretamente de tal gosma. Chamou-a de Bathybius haeckelii, ou “coisa viva das profundezas de Haeckel”. A descoberta amarrava as duas pontas da teoria darwinista: a vida surgira a partir de matéria inorgânica – no caso, a gelatina marinha – e evoluíra por seleção natural. Caso encerrado. Ou não.
Em 1872, o almirantado britânico lançou uma grande expedição a bordo do navio Challenger para investigar três bacias oceânicas. Um dos objetivos da pesquisa era coletar amostras frescas da gosma primordial e saber quão disseminada ela era nos mares do planeta. Para vergonha de Huxley, porém, o químico a bordo descobriu que o Bathybius nada mais era do que a reação entre o lodo marinho e o álcool usado para preservar as amostras. Mas não foi só meleca que o Challenger dragou do fundo do mar: também caíram no convés vários pedregulhos escuros mais ou menos do tamanho de batatas, que a análise revelou serem feitos de óxido de manganês puro. Estudos posteriores identificaram nesses nódulos outros metais, como cobre, níquel e cobalto.
Os chamados nódulos polimetálicos recobrem o assoalho marinho em muitos lugares do mundo, por áreas de vários quilômetros quadrados. São parecidos com as crostas na composição e, possivelmente, na formação, que também pode envolver bactérias magnéticas. Eles permaneceram praticamente uma curiosidade acadêmica até 1965, quando pesquisadores americanos identificaram seu potencial comercial e previram que sua mineração seria viável em vinte anos.
A possibilidade de uma corrida do ouro no fundo do mar acendeu a luz amarela nas Nações Unidas. Aquela era época de várias definições sobre direitos territoriais e econômicos nos oceanos e de negociação de uma convenção internacional sobre o tema. Em 1967, o embaixador maltês na ONU Arvid Pardo fez um discurso alertando contra a apropriação dos recursos minerais marinhos por nações detentoras de tecnologia para explorá-los e qualificou o fundo do mar como “herança comum da humanidade”. Essa única frase viraria a pedra angular de todo o desenvolvimento da mineração oceânica.
Em 1982, na Jamaica, o mundo adotou a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, conhecida pela sigla inglesa Unclos. Ela classificava os oceanos globais em três zonas distintas: o mar territorial, que compreende as 12 milhas náuticas (em torno de 22 quilômetros) além do litoral de um país; a zona econômica exclusiva, ou ZEE, que se estende por 200 milhas náuticas (aproximadamente 370 quilômetros); e o alto-mar, ou zona além da jurisdição nacional. Na ZEE, o trânsito de embarcações é livre, mas só o país detentor pode explorar recursos minerais e pesqueiros. Ela pode ser ampliada até 350 milhas náuticas (cerca de 650 quilômetros), caso o país demonstre que a área adicional integra sua plataforma continental, ou a extensão marinha do continente. Guarde esta informação.
A regulação da atividade econômica no leito oceânico sob o alto-mar – chamado no jargão diplomático de “a Área” – ficou a cargo de um organismo criado no âmbito da Unclos, a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (International Seabed Authority ou ISA). Ela funcionaria para assegurar que a Área fosse de fato uma “herança comum da humanidade” e produzisse riquezas “para o benefício da humanidade”. Distribuiria contratos de exploração (prospecção) de quinze anos mediante o cumprimento de uma série de exigências, entre elas a pesquisa científica e a preservação ambiental. Os contratos são feitos com países que podem executá-los em parcerias público-privadas ou não (no caso do contrato brasileiro, firmado em 2015, o executor é a CPRM, um órgão do próprio governo). Três tipos de depósitos minerais oceânicos podem ser objeto de contrato: além dos nódulos polimetálicos, estão sob possibilidade de mineração os sulfetos maciços de fundo do mar, produzidos por atividade vulcânica e ricos em cobre, ouro e minerais do grupo da platina; e as crostas ferromanganesíferas.
Quando foi criada, em 1994, a ISA parecia apenas um grande exercício de precaução: afinal, não havia tecnologia desenvolvida para explorar esses metais, não se conheciam bem as reservas, e ninguém tinha a menor ideia de que lei regeria uma futura eventual atividade minerária depois que os primeiros contratos de quinze anos expirassem. A preocupação constante dos países em desenvolvimento era, claro, não serem passados para trás pelos ricos, daí a importância de um marco legal muito bem traçado. Mas, no fim do século XX, o declínio do preço do cobalto e de outros metais fez despencar o interesse pela mineração oceânica.
O interesse se reacendeu sobretudo nesta década. As razões vão desde a explosão de demanda pelos produtos da revolução digital até um choque de preço causado pela China em 2010, ao cortar o fornecimento de terras raras ao Japão devido a uma rusga territorial.
Apesar do nome, terras raras não são propriamente raras: elas ocorrem em variados tipos de depósito mineral ao redor do mundo. Seu nome decorre do fato de elas existirem em concentrações baixas. Isso torna sua extração um processo muito ineficiente: para cada quilo de terras raras, cerca de 2 toneladas de rejeito são produzidas. A mineração e o refino também são altamente poluentes, e com frequência os minerais de terras raras vêm associados a elementos radioativos. A China produz hoje 95% das terras raras do mundo devido ao baixíssimo custo de operação de sua mina de Bayan Obo, a maior do planeta, e à vista grossa de Pequim em relação aos impactos ambientais. Os chineses têm usado esse trunfo para quebrar a concorrência e levar toda a indústria de alta tecnologia, dependente desses elementos, a se instalar – e gerar empregos e tributos – no país. Já o cobalto tem 64% de sua produção concentrada na instável República Democrática do Congo, onde a Anistia Internacional denunciou o uso de trabalho forçado e mão de obra infantil para produzir o minério, uma questão ética que os usuários de iPhone talvez preferissem ignorar.
A mineração no fundo do mar vem sendo apontada como uma alternativa ao controle chinês quase absoluto sobre as terras raras e aos problemas políticos do Congo. Mas o oceano também é visto como uma boia de salvação por causa do declínio do teor de minerais raros nos depósitos terrestres. “A maior parte das jazidas em terra que podem ser exploradas com vantagens econômicas estão esgotadas ou com seu teor reduzido”, diz Jim Hein, pesquisador do USGS, o Serviço Geológico dos Estados Unidos, e um dos maiores especialistas em minérios oceânicos do mundo. “É preciso cavar mais, mais fundo e remover mais rocha estéril para chegar a veios que estão com um teor cada vez menor”, prossegue.
No mar, em compensação, as reservas são uma cornucópia. Hein estimou em 21 bilhões de toneladas o peso total dos nódulos apenas na Zona de Fratura de Clarion-Clipperton, uma planície abissal de 7 240 quilômetros de extensão entre o Havaí e o México, em águas internacionais. Uma única região de crostas no Pacífico Norte contém, ainda segundo cálculos do americano, quatro vezes mais cobalto, nove vezes mais térbio, três vezes mais ítrio e 1 700 vezes mais telúrio do que todas as reservas terrestres somadas. E o teor de terras raras pesadas, o subgrupo mais valioso da família, também é mais alto no oceano do que nas jazidas terrestres: 2500% maior nos nódulos e 1700% maior nas crostas do Pacífico. O tamanho do mercado eventual é difícil de estimar, mas um cálculo feito a pedido da ISA por um grupo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, estimou o lucro líquido anual da mineração de nódulos na zona de Clarion-Clipperton em 800 milhões de dólares por ano, por contrato. E isso considerando apenas o valor do cobre, do manganês, do níquel e do cobalto – excluindo, portanto, terras raras e outros metais, muito mais valiosos.
“Há uma grande oportunidade em explorar os 70% da superfície do planeta que ainda não foram explorados de forma significativa em vez de ficar olhando para os 30% restantes, que se esgotam cada vez mais rápido”, diz Noreen Dillane, diretora de Comunicação Corporativa da empresa Nautilus Minerals, sediada no Canadá.
A Nautilus espera tornar-se no ano que vem a primeira companhia do mundo a minerar em águas profundas, num projeto de extração de ouro e cobre a 1 600 metros de profundidade, na Papua-Nova Guiné. Segundo Dillane, o teor de ouro do projeto Solwara I é “excelente”: 6 gramas por tonelada, semelhante ao das melhores minas do mundo, na África do Sul. O de cobre é dez vezes maior que o das melhores minas em terra. O Japão também deve começar a minerar sulfetos em sua Zona Econômica Exclusiva em 2020.
Hoje há 29 contratos de exploração concedidos pela ISA na Área. A maioria deles, dezessete, é para nódulos em Clarion-Clipperton, onde a primeira exploração comercial deve ocorrer a partir de 2022. A Nautilus também tem um contrato na região e espera começar a produzir tão logo haja um arcabouço legal para isso. “Acreditamos que as regulações sejam iminentes”, diz Dillane.
Um rascunho de um código de mineração oceânica foi proposto em agosto de 2017 pelo secretário-geral da ISA, o britânico Michael Lodge, e deve entrar em vigor em 2020. Em março deste ano, o Brasil fez críticas ao texto, que permite que países com tecnologia possam “pular” a fase de quinze anos de exploração e passar direto à extração de minérios. O Itamaraty enxerga o dispositivo como uma encomenda dos países ricos.
Detentor do único contrato para crostas concedido até agora no Atlântico Sul, o Brasil pretende se valer da vantagem de ser o primeiro a avançar nesse front. Tal liderança se deve a uma dessas ocasiões raras no Brasil em que uma necessidade estratégica é identificada por pesquisadores e se transforma num programa de governo pouco tempo depois.
O país desenvolveu a capacidade de olhar para os recursos marinhos além da linha da costa nas décadas de 50 e 60. Em 1974, descobriu seu primeiro campo de petróleo offshore com volume comercial, o de Garoupa, na Bacia de Campos. Em 1997, já depois de o Brasil aderir à ISA, a Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar iniciou o primeiro grande levantamento do potencial mineral da plataforma continental brasileira.
Em 2004, o Brasil conhecia o fundo de suas águas o suficiente para propor à Comissão de Limites da Unclos – a convenção da ONU que regula o direito do mar – uma proposta de extensão de sua Zona Econômica Exclusiva para 350 milhas, com base em um levantamento que mostrava que a plataforma continental brasileira era maior. A proposta ampliava em 963 mil quilômetros quadrados – de cerca de 3,5 milhões para 4,5 milhões – o espaço marinho brasileiro, que os militares, com pendor poético característico, chamaram de “Amazônia Azul” por ter as mesmas dimensões daquele bioma. A ideia era incorporar à soberania nacional eventuais recursos minerais e jazidas de óleo e gás que se suspeitava haver na Área. O levantamento brasileiro foi questionado e parcialmente indeferido pela comissão em 2007, mesmo ano em que a descoberta do pré-sal foi anunciada. Do total solicitado, 773 mil quilômetros quadrados foram concedidos. O país ficou de voltar à prancheta e submeter uma nova proposta para os 190 mil quilômetros quadrados restantes.
No mesmo ano em que o Brasil levou o balde de água fria da Unclos, um documento trouxe os minérios do fundo do mar à análise do poder público. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma organização social criada no governo Fernando Henrique Cardoso para produzir análises estratégicas para o desenvolvimento do país – e cujas recomendações frequentemente são ignoradas pelo governo federal –, publicou um documento alertando para a necessidade de investir em pesquisa dos recursos minerais marinhos. A Elevação do Rio Grande era citada como uma das áreas prioritárias. O trabalho tinha como autor principal o geólogo Kaiser de Souza, que coordenara o levantamento do potencial mineral da plataforma continental brasileira. O governo mordeu a isca e, em 2009, criou o Proárea.
Por falta de um navio oceanográfico próprio, o Proárea só começou a fazer dragagens na Elevação em 2011, com um navio alugado da França. Só que, além das esperadas crostas, as dragagens também trouxeram para o convés objetos inesperados: granitos e gnaisses – o mesmo tipo de rocha encontrada pelo Alpha Crucis, da USP, neste ano. “Eu estava a bordo e pensei: ‘Como isso veio parar aqui?’”, recorda-se Pessanha, sobre as prospecções feitas em 2011. A razão do espanto é que aqueles tipos de rocha desafiam tudo o que o cânone científico prega sobre a formação de montes marinhos.
A crosta oceânica é formada por basalto, que nada mais é do que magma (a popular lava) que extravasa no limite entre duas placas tectônicas que se afastam e endurece rapidamente. Já o granito e seu filho degenerado, o gnaisse, formam-se apenas sobre os continentes, pelo resfriamento lento do magma na crosta terrestre. É a origem, por exemplo, do Pão de Açúcar. O basalto tem aparência uniforme; o granito possui cristais bem visíveis, de minerais que tiveram tempo de condensar e crescer no processo de resfriamento.
Achava-se que montes marinhos como a Elevação do Rio Grande tivessem sua gênese em processos semelhantes aos que formam o leito oceânico, e fossem mais espessos devido a alguma acumulação anormal de basalto ou ao surgimento de vulcões. As rochas claramente continentais que apareceram a bordo do navio do Proárea em 2011 poderiam ser pedaços de lastro de outras embarcações despejados ali, ou detritos que vieram na barriga de icebergs que coalhavam o Atlântico periodicamente durante a última Era Glacial, encerrada 12 mil anos atrás.
Estudos publicados ao longo desta década, porém, sugerem que a história pode não ser sempre essa. Em alguns casos, como nas ilhas Kerguelen, no entorno da Antártida, foram detectadas rochas continentais envoltas em basalto. Essas formações foram batizadas “microcontinentes”.
Em 2013, na missão nipo-brasileira do Yokosuka, mais rochas graníticas foram coletadas na Elevação do Rio Grande. Um dos mergulhos do Shinkai permitiu visualizar ali uma “formação estranha”, cuja dureza impediu que o braço robótico do submersível conseguisse extrair uma amostra.
O geocronólogo Roberto Ventura, antecessor de Pessanha no Proárea e participante da missão nipo-brasileira, anunciou os achados do Shinkai com pompa e circunstância à imprensa em maio daquele ano: disse que a “Atlântida brasileira” havia sido descoberta. A Elevação do Rio Grande possivelmente seria uma ilha que ficou pelo caminho entre o Brasil e a África quando o supercontinente Gondwana se partiu e o Atlântico Sul começou a se abrir, durante a era dos dinossauros.
A tese tem implicações diretas para o pedido de ampliação da Zona Econômica Exclusiva do Brasil. Se Rio Grande tem crosta continental, então pode haver uma ligação entre essa elevação e a plataforma continental brasileira. Isso permitiria ao Brasil reivindicar soberania sobre um pedaço da Elevação e todos os recursos existentes em volta. Estes incluem, além das crostas, áreas de pesca e, principalmente, reservas de óleo e gás mapeadas e ainda não exploradas. Em resumo, o país mantém um olho no peixe e outro no gato: faz um movimento em direção ao futuro (crostas) ao mesmo tempo que tenta agarrar o presente (peixe e petróleo).
O Brasil apresentará à Comissão de Limites da Unclos, a qualquer momento, uma nova proposta de levantamento da plataforma continental, para encaçapar os 190 mil quilômetros quadrados da Amazônia Azul que lhe escaparam há uma década. O novo levantamento foi fatiado em três partes: uma foi submetida em 2015, outra em fevereiro deste ano e uma terceira está sendo construída pelo governo e será, possivelmente, apresentada em breve. Esta última deverá se apoiar na hipótese do microcontinente. Questionada, a Marinha informou que “estão sendo realizados estudos para verificar a possibilidade de inclusão da Elevação do Rio Grande na última proposta a ser apresentada”.
A partir do momento em que a proposta dá entrada na Comissão de Limites, o território em questão fica “congelado” e sob a soberania do país solicitante, um ganho potencial do qual as autoridades brasileiras não querem abrir mão. Mais até do que o contrato de exploração com a ISA, este foi o grande motivo de pânico no governo quando Alexander Turra deu a notícia sobre o projeto de pesquisa com os ingleses, em 2015.
A batalha é por gestão de dados. “Qualquer informação que saia pode ser a gota d’água para os interesses brasileiros”, afirmou uma fonte governamental, já prevendo questionamentos sobre os critérios da incorporação de Rio Grande. A campanha do Alpha Crucis em fevereiro foi um momento especialmente delicado, e o governo teme publicações resultantes da missão e compartilhamento de amostras com os britânicos que possam jogar areia na reivindicação brasileira.
“O governo está muito preocupado com informações sensíveis, mas a universidade tem de publicar”, afirma Turra, encarregado de fazer a intermediação com Brasília. “Não dá para não interagir com os colegas ingleses e não publicar, mas podemos achar o melhor arranjo entre essas duas contingências. Nossa postura nunca foi de pirata, vilão ou espião.”
As duas instituições sabem que precisam trabalhar em conjunto. A CPRM tem poucos recursos humanos para fazer pesquisas nos 3 mil quilômetros quadrados da Elevação que estão sob contrato, uma área duas vezes maior que a da cidade de São Paulo. E, se não justificar anualmente à ISA que faz pesquisas nos blocos contratados, perde os direitos. O Proárea tampouco foi poupado dos cortes orçamentários impostos à ciência a partir de 2015: segundo informações da CPRM, o orçamento para levantamentos geológicos marinhos, que incluem o Proárea, caiu de 26,8 milhões de reais em 2012, para 5,2 milhões de reais em 2018.
O grupo do Instituto Oceanográfico e da Universidade de Southampton também gostaria de poder contar com os dados já obtidos pela equipe da CPRM e com o navio oceanográfico Vital de Oliveira, comprado pelo governo em 2011 e que fez sua estreia na Elevação do Rio Grande em abril deste ano. “Não dá para considerar que só com o nosso navio e o nosso pessoal nós vamos conseguir conhecer a Elevação. O governo também não vai”, diz Turra. “A gente não está necessariamente no caminho de perde-ganha.”
Enquanto a corrida por minérios e soberania ocupa os governos do Brasil e de outros países, pessoas como o americano Matthew Gianni têm uma recomendação simples a dar sobre mineração nos abismos marinhos: não façam.
Gianni é um nativo da Pensilvânia de 60 anos, dez deles trabalhando em navios pesqueiros na Costa Oeste dos Estados Unidos. Em 1989, juntou-se ao Greenpeace para salvar seu ganha-pão – o mar – de abusos cometidos por seus antigos colegas. Em 2004, ele fundou a Deep Sea Conservation Coalition, uma rede de ONGs sediada em Amsterdã, que se dedica a proteger o lar da horrorosa enguia-pelicano, da lula-vampira-do-inferno, dos vermes tubulares e de milhares de outras espécies que estão, como eles dizem, “longe dos olhos e longe do coração” da sociedade.
Nos últimos cinco anos, o ex-pescador vem acompanhando de perto as movimentações dos países detentores de contratos com a ISA e, ao mesmo tempo, o trabalho de cientistas que estudam os ambientes abissais que poderão receber mineração, como a zona de Clarion-Clipperton. Gianni afirma que um número cada vez maior de estudos vem mostrando que talvez o melhor a fazer para assegurar a “herança comum da humanidade” seja deixar o fundo do mar quieto.
Ele diz que, nos anos 70, quando os diplomatas iniciaram as negociações para a criação do que seria a ISA, achava-se que as planícies abissais não contivessem nada além de lama e rochas. “Agora nós sabemos muito mais sobre a zona de Clarion-Clipperton e muitas outras áreas de interesse para a mineração profunda”, comenta. “Essas não são zonas mortas. São zonas fantasticamente biodiversas, que nós só estamos descobrindo agora. E descobrindo que elas já estão sob estresse por mudança climática, plásticos e poluentes orgânicos persistentes”, afirma.
Embora uma das exigências da isa para os contratos de exploração seja a proteção ambiental e a definição de critérios para avaliar e mitigar o impacto da atividade, Gianni diz que mineração oceânica e proteção ambiental podem não ser compatíveis.
A extração de nódulos, por exemplo, será feita por equipamentos robóticos que “varrem” o fundo do mar, jogando jatos de água que levantam os pedregulhos, separando-os da lama. Isso deve obliterar completamente organismos como esponjas que aderem aos nódulos, mas também levantar uma pluma de sedimento que se espalhará por até 20 mil quilômetros quadrados além dos locais de mineração, sufocando espécies que vivem no fundo. “Estamos abrindo uma nova fronteira do planeta a uma atividade industrial sem saber quais serão as consequências”, afirma Gianni.
Na Elevação do Rio Grande, a situação é ainda mais grave porque não se conhece virtualmente nada sobre o ambiente do local, nem sobre o método que será usado para minerar as crostas.
Os pesquisadores da USP fazem um prognóstico devastador dos impactos ambientais de uma eventual mineração nessa chapada submersa. Para começar, a quantidade de material a ser minerado e a área afetada são enormes: seria necessário retirar 1 milhão de toneladas de material por ano, de uma área total de 600 quilômetros quadrados. A biodiversidade do fundo do mar será arrasada no local de mineração e afugentada dos arredores, prejudicando o funcionamento do ecossistema por décadas – ou séculos. “Como no mar profundo os organismos têm metabolismo mais lento, a recolonização de áreas impactadas é menor, se é que vai ocorrer”, diz Paulo Sumida.
Um segundo problema são os metais extraídos, que serão liberados em concentrações tóxicas na água durante o processo de enxágue das crostas. Por fim, há a questão das escórias. Embora não seja preciso construir barragens para abrigá-las, o grupo da USP estima que 60% de todo o material, ou 600 mil toneladas por ano, vá ser depositado no fundo do mar como rejeito da mineração, impedindo a recuperação da fauna. “O ideal seria não explorar, mas, se isso não for possível, é melhor salvaguardar áreas grandes e impedir a mineração nelas, para salvar hábitats que são únicos”, afirma o oceanógrafo.
Esse cabo de guerra traduz um paradoxo do nosso tempo. O século XXI nasceu sob a ameaça das mudanças climáticas causadas pelo uso de recursos minerais (os combustíveis fósseis) cujo impacto sobre a atmosfera só ficou claro cem anos depois da Revolução Industrial. Agora, vê-se na iminência de ter de recorrer a mais recursos minerais para resolver o problema.
Muita água vai rolar nessa discussão nos próximos cinco anos. Mas, quanto antes as perguntas forem feitas, menor é a chance de mais uma crise ambiental se abater sobre a humanidade. Suas proporções seriam abissais – em mais de um sentido.