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Heráclito poderia ter escrito Como uma onda

Heráclito é um dos filósofos mais misteriosos de que se tem notícia. Restam apenas fragmentos que, de tão simples e opacos, lhe renderam a alcunha de “o obscuro”.

Paulo da Costa e Silva | 28 out 2015_12h25
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Heráclito é um dos filósofos mais misteriosos de que se tem notícia. Pouco se sabe de sua vida, além de que nasceu por volta do ano 500 a.C., em Éfeso, na Grécia. De seus escritos e ideias restam apenas fragmentos que, de tão simples e opacos, lhe renderam a alcunha de “o obscuro”. Heráclito é considerado o último dos filósofos jônios – o herdeiro e grande realizador de uma linha de pensamento que enfocava a difícil ideia de transformação universal. Como pensar a própria mudança? Como pensar o que não é fixo nem definido, o que não cessa de se transformar? Os jônios fizeram da mudança radical a própria essência das coisas. Apoiaram-se antes nos sentidos, na experiência imediata, do que nas abstrações frias e estáticas do pensamento. Para Heráclito, a mudança não era apenas contínua, mas era a própria vida de tudo o que existe. Ele foi tão fundo nessa ideia de mudança radical e eterna que chegou a pôr a contradição no fundo das coisas. Criou um sistema radicalmente dinâmico, que admite a transformação a todo instante das coisas umas nas outras.  Não se é banhado duas vezes pelo mesmo rio, diz a sua mais célebre proposição. Outras existem, igualmente poéticas, igualmente sugestivas: o dia e a noite são a mesma coisa, o mesmo ser: ora mais luminoso, ora obscuro. O caminho que sobe e o caminho que desce são um só e mesmo caminho. O vivo e o morto, o adormecido e o acordado são a mesma coisa, pois um troca-se no outro. Como se nota, o pensamento de Heráclito é marcado pela noção de fluxo universal de tudo o que existe.

 

Nas anotações para o seu curso de filosofia grega, o filósofo Bergson escreveu que “essa ideia de movimento, de mudança é de todas a mais obscura para nosso espírito. Não é a mudança o estado de uma coisa que é e que não é, que já não é o que era, que ainda não é aquilo que será, ideia fugidia para nosso espírito, o qual só se pode fixar sobre aquilo que é fixo e imobiliza as coisas pelo simples fato de pensar nelas?” No fim, a noção de fluxo e mudança talvez sejam melhores contempladas pela poesia, pela música, pelas artes. No século XIX, o poeta romântico Novalis se apropria da imagem de Heráclito para nos definir como “rios incorporados” – nossos corpos são, por assim dizer, rios que fluem. Nosso Drummond captaria em poesia o mesmo sentido de transitoriedade corporal, nos versos “pré-socráticos” de seu Canto esponjoso: “Bela / a passagem do corpo / sua fusão no corpo geral do mundo”. Mas é difícil pensar em algo que evoque com maior precisão a ideia de base da doutrina de Heráclito do que os versos de Nelson Motta sobre a canção de Lulu Santos (“Nada do que foi será / de novo do jeito que já foi um dia”; “tudo muda o tempo todo / no mundo”), em sua forma ondulante, meio havaiana, “num indo e vindo infinito”… Como uma onda bem poderia ter sido escrita pelo obscuro filósofo de Éfeso.

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