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O desaparecimento do Brasil

Paulo da Costa e Silva | 30 set 2015_19h21
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O breve artigo de Nuno Ramos na última Piauí me causou a um só tempo satisfação e mal-estar. O texto faz um paralelo entre a montagem de uma mesma obra artística de intervenção urbana nas cidades de Frankfurt e Salvador. Do agudo contraste entre a vida nas duas metrópoles, Ramos procede a uma duríssima, ou mesmo tenebrosa, reflexão sobre os destinos do Brasil. Há muitos pontos interessantes no artigo, mas, de modo geral, as principais ideias giram em torno da tônica dada pelo célebre comentário de Lévi-Strauss sobre a América: “uma terra que passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização”. Ramos pondera que dessa reflexão podem ter vindo os versos de Caetano Veloso, dizendo que “aqui tudo parece que ainda é construção e já é ruína”. A partir deste mote o autor prepara seu gran finale. Depois de descrever a traumática experiência de se aventurar noite adentro pelos terrenos baldios dos arredores de Salvador – cercado por paisagens desoladoras em seu abandono, mosquitos ferozes, por um ar pegajoso e calorento, e, acima de tudo, pela presença do fantasma da violência – no intento de montar e registrar sua instalação, Ramos conclui de modo lapidar: “já não havia natureza nem mistério antropológico do outro lado da escuridão. Apenas os cacos de um capitalismo confuso, pouco regrado, ao mesmo tempo tedioso e espontâneo, com seus assomos de simpatia e grandeza humana, mas também seus espasmos recorrentes de crueldade e anomia”.

A citação do texto de Ramos poderia servir como divisa dantesca dos portões do Inferno-Brasil: “deixai toda esperança, ó vós que entrais”. Mas será que podemos abrir mão dessa esperança antropológica? Ela está na base do pensamento modernista, que emana de Oswald de Andrade a Villa-Lobos, de Glauber Rocha a Caetano Veloso. É a ideia oswaldiana de que por trás da precária camada de civilização, macaqueada dos europeus, persiste uma magnífica “floresta de mitos” esperando por ser libertada. A ideia de um “bárbaro tecnizado” – roubada do visionário prussiano Keyserling – que se apropria da tecnologia sem consultar os “tutoriais” do mundo civilizado, criando novas e inesperadas conexões, moldando a própria tecnologia de outras formas, ao invés de ser moldado por ela. Era a divisa de Villa-Lobos, que Tom Jobim repetia sem parar, de que “o Brasil é uma floresta encantada sobre a qual os europeus lançaram um tapete velho e mofado”. É o mito sebastianista que grita no fundo dos filmes de Glauber. São as vertigens visionárias de Caetano, vendo “uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Jorge Mautner e Gilberto Gil cantando que “a humanidade vem renascer no Brasil”. Enfim, o mito de uma realização singular, positiva e humana, do que aqui existe e existiu, e que poderia, inclusive, servir como referência para o resto do mundo.

Mas será que o nosso fatídico cotidiano ainda permite crer nesse mito? Será que sobraram apenas os “cacos” descritos por Ramos? Será que a “floresta de mitos” de Oswald, e aquela força atávica, sincrética, especialmente única em sua configuração antropológica – será que tudo isso não vai aos poucos sendo substituído por uma cultura que se forma diariamente na precariedade de nossa condição? Tenho a desagradável impressão de que a cultura brasileira vem sendo redefinida por cada engarrafamento, cada ato de violência, cada apelo desesperado ao consumo, cada lixo midiático, cada esvaziamento de rio, cada novo shopping construído, cada sucateamento dos serviços públicos, cada grade de condomínio, cada notícia do extermínio de índios e florestas… Será que a “floresta de mitos” resiste? Será que podemos dizer, como Nietzsche disse dos europeus no século XIX, que “já não somos material para uma sociedade”?

No fim das contas, o artigo de Nuno Ramos indica a falência do mito-Brasil. O mito é um jeito de criar sentido em um mundo sem sentido. São narrativas pelas quais a nossa sociedade é unificada. Uma sociedade sem mito não sabe mais como se relacionar com o passado ou com o futuro. Tem pouco sentido do presente. Não possui crenças capazes de sustentar a vida, sendo sem objetivo e sem trilha para a ação efetiva. O mito carrega os valores da sociedade. Aponta na direção da totalidade antes do que da especificidade. Peter Berger escreveu que “é através dos mitos que os homens são alçados além da prisão no ordinário, atingem poderosas visões do futuro, e realizam tais visões”. Nietzsche dizia que nossa ânsia por mitos é, no fundo, uma ânsia por comunidade.

A música popular é um dos grandes reservatórios do mito-Brasil. Nasceu junto com ele. Tornou-se sua maior mensageira. A música, com seu “universo mítico e potente”, nas palavras de Ramos. Única força capaz de nos fazer recobrar as esperanças.

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