Janelas para o infinito em Paulinho da Viola
Numa de minhas canções favoritas de Paulinho da Viola, o narrador descreve sua separação da mulher focalizando a cena na figura algo desajeitada de “um velho caminhão de mudança”. Leva algum tempo até que possamos compreender que se trata de uma separação.
Numa de minhas canções favoritas de Paulinho da Viola, o narrador descreve sua separação da mulher focalizando a cena na figura algo desajeitada de “um velho caminhão de mudança”. Leva algum tempo até que possamos compreender que se trata de uma separação. O primeiro verso fala de alguém que “passa dissipada na fumaça do seu orgulho”, e continua com a constatação dura de que os “dias móveis carregam o móvel laqueado”. A letra de José Carlos Capinam é a um só tempo visual e esquiva; alterna momentos de definição concreta com momentos de puro simbolismo – como no fabuloso último verso, “o tempo é um pássaro de natureza vaga”. A música de Paulinho da Viola evoca perfeitamente o clima algo difuso, de neblina e fumaça, dos versos. Os índices do rompimento amoroso, todos associados à transitoriedade, e agrupados numa pequena sequência linear – a mulher passando dissipada, dias móveis carregando móveis laqueados, o velho caminhão de mudança que vai embora – são pontuados por momentos de reflexão recuada sobre temas amplos e impessoais como a natureza do tempo, o destino das coisas que estão mundo. Isso traz para o narrador a condição ambígua de estar ao mesmo tempo dentro e fora da situação e do sofrimento a ela inerente. Em outras palavras, a narrativa da separação corre em paralelo com uma dimensão atemporal de imersão reflexiva. O personagem da canção alterna continuamente entre as duas. Depois de ver o velho caminhão de mudança sumir na fumaça, a imagem que encerra definitivamente a história de seu amor frustrado, ele se pergunta: “para onde você passa?, para onde as coisas passam?”. A atmosfera é mais de perplexidade do que de tristeza ou desespero. Com grande rapidez, transitamos da concretude vulgar do mundo para a franca indagação metafísica. Em meio ao duro golpe da ruptura amorosa, abre-se uma janela para o infinito.
Orgulho pertence à família de canções que exploraram, sobretudo nos anos 1970, o potencial dramático do momento da separação amorosa. É difícil evocar tal “família” sem pensar em Chico Buarque. Com olhar de dramaturgo, certamente foi ele um dos que mais contribuiu para a “mitologia da separação” em nossa música. Canções como Atrás da porta, Trocando em miúdos e Olhos nos olhos, nos colocam diante do momento decisivo da ruptura, da partilha de bens ou do desconcertante reencontro entre ex-marido e ex-mulher. Mas, embora o “disco do Pixinguinha” e “o livro do Neruda” possam, nesse momento, estar viajando dentro do “velho caminhão de mudança”, a letra de Capinam apresenta um grau de ausência, ou uma rota de fuga, que as músicas de Chico, pelo menos nessa fase, desconhecem. Em Chico, temos a encenação teatral minuciosa, a exposição narrativa perfeita da complexa floração emocional que acompanha o momento da separação; em Capinam, esse momento logo cede a uma indagação mais ampla sobre a natureza do tempo, até ser posto numa perspectiva longínqua. Mal a pergunta “para onde as coisas passam?” é feita, e o caminhão de mudança, que ainda nem cruzou a esquina do verso, já parece tão distante, quase esquecido…
Paulinho da Viola não poderia ter sido mais feliz ao pôr música sobre a letra de Orgulho. Ela encaixa perfeitamente com o mood reflexivo, algo recuado, de algumas de suas melhores canções. A abertura contínua de janelas para o infinito é um dos traços mais fascinantes de sua poética. A impressão é de que, em Paulinho, a corporalidade do samba, seu tecido impregnado de vida cotidiana, se transubstanciou em indagação filosófica, em leve movimento reflexivo. Situações corriqueiras rapidamente se expandem em pensamentos cósmicos. É nessa passagem que se dá boa parte de sua poesia, como bem indicou Nuno Ramos – ali, na pausa de mil compassos para ver as meninas, da qual nasce, no fim das contas, o sonho de fazer um samba sobre o infinito; ou naquela singela palavra “querendo explicar em mim, a eternidade em mim”. Sua música parece sempre indicar uma possibilidade de fuga, de um retorno ao mais essencial, da absorção do homem a sós com seus pensamentos. Como na letra de Não quero você assim, “não importa mais o que foi perdido, importa apenas o seu sorriso. E nada mais”.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí