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O Canto XXII da Odisseia

Os últimos momentos da Odisseia são marcados por um verdadeiro banho de sangue. É no Canto XXII que Ulisses finalmente se vinga daqueles que faziam a corte à sua mulher, a manhosa Penélope. Depois de uma ausência de vinte anos, o herói encontra seu palácio em Ítaca infestado de parasitas que lhe desonram o nome (o bem mais valioso para os gregos) e dilapidam suas posses em meio a banquetes e jogos.

Paulo da Costa e Silva | 28 nov 2014_15h23
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Os últimos momentos da Odisseia são marcados por um verdadeiro banho de sangue. É no Canto XXII que Ulisses finalmente se vinga daqueles que faziam a corte à sua mulher, a manhosa Penélope. Depois de uma ausência de vinte anos, o herói encontra seu palácio em Ítaca infestado de parasitas que lhe desonram o nome (o bem mais valioso para os gregos) e dilapidam suas posses em meio a banquetes e jogos. A ira do herói é incentivada pela deusa Atena, através de pequenas interferências que têm por objetivo manter acesa a chama do ódio.

Homero constrói as cenas de modo a ampliar paulatinamente o sentido de humilhação e desrespeito sofridos por Ulisses. Ficamos sabendo que os pretendentes planejam o assassinato de seu filho (Telêmaco), e que se esbaldam em amores espúrios (muitas vezes não consentidos) com as servas do palácio. Metamorfoseado em mendigo, Ulisses pode testemunhar com os próprios olhos o ocaso do seu lar. Além disso, uma vez que é tomado por um estranho, torna-se ele próprio alvo da zombaria e do temperamento sórdido dos pretendentes. Com a aparência de um velho, vestido com trapos imundos, o orgulhoso herói é escorraçado pelos jovens aristocratas que cobiçam sua mulher.

Mas Ulisses não perde a calma; ao contrário de Aquiles, não se deixa dominar pela ira. Acumula pacientemente o seu ódio; com auxílio de sua protetora divina, Atena, planeja meticulosamente o assassinato de todos os pretendentes. Pelos cálculos do helenista Bernard Knox, Ulisses chacina de uma só vez 108 homens. Eles estão encurralados no interior do palácio, as possíveis saídas foram bloqueadas, as armas que ficavam expostas – e que poderiam ser usadas num possível contra-ataque – foram astuciosamente recolhidas. Com poderes ampliados pelos deuses, Ulisses persegue as vítimas como se fossem ratos.

Homero folga nas descrições da matança: o primeiro assassinado é morto por uma flecha “cuja ponta lhe atravessou por completo o pescoço macio”; o cadáver inclinou-se para o lado “e logo das narinas jorrou um jato másculo de sangue”. Quase no fim da festa, Ulisses nega o perdão a uma das vítimas, decepando-a sem misericórdia; Homero complementa: “e a cabeça de Liodes proferia ainda sons ao bater na terra”. O acerto de contas com as servas desleais – que se amancebaram com os pretendentes e insultaram a família de Ulisses – é de uma crueldade ímpar: Telêmaco nega-lhes uma “morte limpa”, optando pelo enforcamento (“Espernearam um pouco, mas não durante muito tempo”).

Ainda pior é a morte que encerra o famigerado Canto XXII: a morte do personagem Melântio, o pastor infiel que havia ofendido Ulisses. Os criados o mutilam e matam barbaramente: “cortaram-lhe as narinas e as orelhas com o bronze impiedoso e arrancaram-lhe os membros genitais para os cães comerem, crus”; “na sua fúria deceparam-lhe ainda as mãos e os pés”. Uma vez posta em movimento, não havia freios para a roda da vingança. Todas as dívidas devem ser pagas. Agindo nesse código moral, aos gregos era permitido gozar na crueldade – dar, em determinadas circunstâncias, livre vazão a esse instinto vil. “…mas os homens se alegram de ver a matança”: é o desconcertante comentário feito por Homero, enquanto Ulisses chacina um por um aqueles que ofenderam sua honra.

Em meio ao banho de sangue do Canto XXII, contudo, um ocorrido chama a atenção: Fêmio, o aedo que acompanhava as farras no palácio, tem sua vida poupada. Agarra-se aos joelhos de Ulisses e lhe pede perdão, dizendo ter sido conduzido à força à companhia dos pretendentes. A versão parece ser verdadeira, e Telêmaco a confirma ao pai. No entanto, esse episódio ressoa o estatuto especial dos aedos na Odisseia e, consequentemente, no mundo grego.

São fascinantes as passagens (Canto VIII) em que o excelente Demódoco é reverenciado no Palácio de Alcino. Sendo cego, o aedo é continuamente cercado de cuidados. Homero chega a descrever o modo como lhe indicam a localização de sua lira, quando ele a abandona temporariamente para fazer uma refeição. A ele Ulisses dirige cálidas palavras – “Demódoco, a ti louvo eu mais que a qualquer outro homem” – chegando a oferecer-lhe um pedaço da própria refeição; sob o som de sua lira e as narrativas do seu canto, relembra os episódios de Tróia, e chora muitas lágrimas. Os aedos cantam para os mortais “palavras cheias de saudade”. Ao lermos a Odisseia, sentimos que eles ocupam um lugar diferenciado; que não devem ser “julgados” como os demais humanos.

No Canto XXII, Fêmio reivindica sua condição de aedo para ser poupado da morte; coloca-se, por assim dizer, acima do alcance da violência. Não é apenas a benevolência de Ulisses que o salva, nem somente sua aparente inocência. No diálogo de Fêmio com Ulisses, o pedido de misericórdia é acompanhado de uma leve ameaça, que confirma o estatuto especial dos aedos: “Para ti próprio virá a desventura, se matares o aedo: eu mesmo, que canto para os deuses e para os homens”.

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