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Dire Straits

Fui ouvir o novo CD do Eric Clapton, homenageando J.J. Cale, e topei com uma participação de Mark Knopfler.

Paulo da Costa e Silva | 17 nov 2014_15h19
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Fui ouvir o novo CD do Eric Clapton, homenageando J.J. Cale, e topei com uma participação de Mark Knopfler. Fazia muito tempo que não ouvia a voz e a guitarra do líder do extinto Dire Straits. Na verdade, o Dire Straits foi, junto com o The Police, minha primeira grande paixão musical, nos idos anos 1980. Estávamos ainda nos “tempos do vinil” e eu me lembro de pedi-los como presente nas datas especiais. Perto da casa do meu avô, no Largo do Machado, tinha uma loja de LPs na qual eu sempre passava. Eu devia ter por volta de dez anos de idade, e comecei a colecionar os álbuns das duas bandas que faziam a minha cabeça naquela época.

Quem me apresentou ao Dire Straits, e também ao Police, foi meu primo. Um ano mais velho do que eu, ele estava sempre na vanguarda das tendências – foi ele quem me ensinou a jogar futebol de botão, que me inspirou a lutar tae-kwon-do e a aprender a surfar, que me apresentou às “roupas de marca” – a gente curtia muito as camisetas da Ala Moana… Meu primo lançava a tendência e eu vinha atrás, imitando. Lembro dele colocando cuidadosamente o vinil na vitrola da Gradiente. O aparelho, todo preto, reinava soberano na sala da casa do meu primo – tinha um aspecto totêmico. A agulha roçava o acetato, e vinham aqueles chiados iniciais. E a gente ali parado, esperando em silêncio ritual. Aí o som ia surgindo, uma voz aguda se insinuava, cantando numa língua indecifrável (inglês), acompanhada por uma bateria meio solta, que ia crescendo em intensidade até que estancava num silêncio, abrindo espaço para um solo apoteótico de guitarra – era o início de Money for nothing!

Aquele solo de guitarra continha a promessa de uma virilidade e potência com as quais eu, naqueles magros e escalavrados anos de molequice, podia apenas sonhar. A voz grave de Knopfler, conectada com a tradição do blues, apenas confirmava que “o papo ali era entre adultos”. Meu primo e eu delirávamos, e minha tia, lá de dentro, pedia na hora pra baixar o som. Olhávamos com imensa superioridade para o Menudo que minhas primas mais novas escutavam – aqueles passinhos ridículos, aquelas roupas brilhantes, aquele “não se reprima, não se reprima” chatíssimo que elas ficavam cantando aos gritinhos… Menudo era um equivalente de Xuxa e Trem da Alegria: música de pirralho. Dire Straits era outra coisa.

Um dia eu comecei a desconfiar que conhecia o dono da voz aguda no início de Money for nothing. Alguém teve a brilhante ideia de olhar no encarte do LP: lá estava o nome de Sting. Quer dizer então que o Dire Straits era amigo do The Police? Que incrível… As pessoas bacanas se atraem entre si, criam algum tipo de conexão, pensei eu. Agora só faltava descobrir o que é que o Sting cantava no início da música. Por sorte, meu primo vinha fazendo aulas de inglês. Disse que o Sting ficava repetindo “eu quero minha MTV”. E que diabos era “MTV”? Ficaríamos muitos anos ainda sem saber…

Não me lembro de ter visto nessa época qualquer imagem em movimento das minhas duas bandas favoritas. A única informação visual que eu tinha sobre o Dire Straits e o Police era aquela que vinha no encarte dos LPs. No caso da primeira banda, isso complicava consideravelmente o trabalho da imaginação, pois os músicos não apareciam nas capas dos discos. Dire Straits era um som desprovido de imagem. Me lembro de quando comprei o álbum Making movies: a capa era inteiramente vermelha, com uma pequena faixa azul no canto. E só. Eu ficava olhando aquilo entre desapontado e surpreso. Não entendia muito bem o conceito minimalista, mas achava bacana; aquilo era elegante, tinha um lance naquele quadrado vermelho. A primeira faixa era Tunnel of love, obra-prima com mais de seis minutos de duração, andamento elástico, diversos climas, e um solo antológico do Mark Knopfler no fim. Eu intuía que a canção falava de uma paquera que se desenrolava num parque de diversão. Ah, como deve ser bom ir com uma garota (namorada) ao Tivoli Park da Lagoa! – era como eu concebia a felicidade humana quando tinha dez anos de idade, embalado pela música de Knopfler.

Certa vez, durante o recreio da escola, ouvi espantado um amigo tocando o início de Sultans of swing no violão: “caraca, igualzinho!” Era a glória: a música escapava do negro vinil para a vida concreta de um colégio no Rio Comprido. A molecada se aglomerou em volta do violão para ouvir repetidas vezes aquela introdução rítmica – cantar ninguém se atreveu (ainda mais em inglês). O autor do prodígio era um rapazola estiloso, com gestos estudados e ar blasé, que além de tocar um violão redondo e desenhar muito bem, era admirado pelo extraordinário êxito no terreno das conquistas amorosas. Até o nome era diferente (Uirá), e, naquela época, era certamente o mais evoluído entre nós – o único que conseguia namorar meninas de séries mais adiantadas, beldades que ocupavam um lugar mítico em nosso imaginário…

O tempo passou e minha fase Straits/Police cedeu lugar a uma fase Bob Marley – só depois é que fui levado à música brasileira. Mas nunca deixei de ouvir essas duas bandas. De tempo em tempo retorno a elas com interesse renovado, entre nostálgico e espantado. Ouvir Knopfler no disco de Clapton me levou a revisitar o universo do Dire Straits – junto, acabei revisitando meu passado. Durante duas ou três semanas fiquei ouvindo repetidamente uma série de canções extraordinárias, mais ou menos conhecidas, que iam de Down to the waterline – do primeiro disco – a Your latest trick – uma das melhores canções românticas de todos os tempos, com um motivo de sax que redime toda a cafonice saxofônica dos anos 1980.

Muitas canções lado B do Dire Straits são excepcionais, sofisticadas, mas foram praticamente esquecidas – me vêm à cabeça Ride across the river e The man’s too strong. De outras, nem eu me lembrava – é o caso de Water of love, uma canção especial, atmosférica, na qual a guitarra de Knopfler ora soa com a suavidade do toque de pelúcia, ora com a agudeza perfunctória da picada do escorpião. Aliás, sei de minha parcialidade, mas estou inclinado a considerar Knopfler como um dos grandes gênios da guitarra na música popular: seus fraseados em geral são simples, enxutos, mas com uma expressividade que contagia o organismo da canção de tal modo que é impossível imaginá-la sem eles – um pouco como acontece com as composições de George Harrison. Além disso, Knopfler é também um virtuoso. Toca de um jeito próprio, sem palheta, ferindo as cordas diretamente com os dedos. Exibe uma intimidade sem reservas com o instrumento. Canta com o despojamento de um bluesman. Parece vir da linhagem de Jimi Hendrix: a guitarra é um desdobramento natural do ser; um duplo da voz; e a canção se equilibra com perfeição entre o cantado e o instrumental.

Seja como for, depois dessas semanas revisitando as músicas do passado, constatei com alegria que minha intuição infantil não me enganou: Dire Straits é maravilhoso. Como é bom continuar achando bom, hoje, o que eu achava bom quando era moleque; sentir que a memória afetiva ficou entrelaçada com coisas que não são descartáveis, coisas que vão seguir encantando as pessoas… Pobre de quem perdeu a infância ouvindo Menudo.

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