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Lupicínio faz 100 anos

Tanto quanto Nelson Rodrigues na dramaturgia, Lupicínio explorou com maestria o que há de violento, de monstruoso no universo das paixões.

Paulo da Costa e Silva | 19 set 2014_14h10
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Conta-se que, durante uma viagem a Porto Alegre nos anos 1930, Noel Rosa foi apresentado a um jovem compositor. Ouviu suas músicas e disparou: “esse garoto leva jeito”. O garoto, evidentemente, era Lupicínio Rodrigues, um raro mulato gaúcho, de cabeça oval, bigodinho e olhos tristes. Conta-se também que seu primeiro sucesso de rádio – o samba sacudido Se acaso você chegasse – tornou-se primeiramente famoso nas rodas de boemia da noite de Porto Alegre, na zona portuária, e de lá viajou espontaneamente, na boca dos marinheiros, para o Rio de Janeiro. Lupicínio tomou um susto ao ouvir sua música num programa de rádio. Outra história impressionante diz que Vingança ganhou uma versão em forma de tango, em espanhol, fazendo grande sucesso na Argentina. Até aí tudo bem. O problema é que a história continua, dizendo que a terrível canção teve como efeito colateral induzir uma respeitável senhora portenha a cometer suicídio – se não me engano, com gás. O caso ganhou destaque sensacionalista na imprensa argentina, gerando polêmica. Aliás, nessa canção está um dos versos que mais aprecio na música brasileira: “e a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou” – vergonha, herança, pai, toda a rígida ambiência moral dos anos 1940, seu vínculo estreito com a tradição e o passado, seu conservadorismo, está tudo concentrado em um único verso de Vingança.

Na vida cotidiana, Lupicínio parece ter sido um homem manso. Falava baixo e pausado, com a lentidão daqueles que cultivam um estado de espírito triste e irônico. Toda a virulência ficava reservada para as composições. Nelas, não era raro que o desengano amoroso se convertesse em intenso ódio, em incontrolável sede de vingança; a dor, no mais brutal desespero. Até hoje fico espantado com a violência de títulos como Judiaria, Nervos de aço ou Caixa de ódio. Está ausente da obra de Lupicínio o moderno distanciamento do cool, que foi sendo progressivamente incorporado no samba-canção dos anos 1950, até que ele se transformasse na bossa-nova. Seus personagens ainda são inteiramente vulneráveis aos fluxos e refluxos das emoções, e gozam nelas de forma canhestramente intensa. São pobres diabos que transmitem a um só tempo a sensação de miséria e glória. Augusto de Campos chamou a atenção para o parentesco da poética de Lupicínio com a de outro Rodrigues fundamental: Nelson. Ambos dispensariam o intelectualismo sofisticado, a elaboração virtuosa, em favor de obras que avançam a partir do “uso explosivo do óbvio, da vulgaridade, do lugar-comum”: “Enquanto outros compositores de música popular buscam e rebuscam a letra, Lupicínio ataca de mãos nuas, com todos os clichês da nossa língua, e chega ao insólito pelo repelido, à informação nova pela redundância, deslocada do seu contexto”, escreveu Campos. O que dizer de um verso como “e só por dinheiro, sabe o que fez esta ingrata mulher?, fugiu com o doutor que eu mesmo chamei, e paguei pra curar os seus bichos-de-pé”? Não há qualquer nota de ironia na melodia. É lúgubre, terrível.

Tanto quanto Nelson na dramaturgia, Lupicínio explorou com maestria o que há de violento, de monstruoso no universo das paixões. Sua música servia a uma sensibilidade de época, muito diferente da nossa. Nessa semana ele teria feito 100 anos. Nunca pareceu, contudo, tão distante no tempo – anterior, talvez, ao próprio Noel. Perdido no passado.

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