Dos canibais de Montaigne à Waly e Caetano
Fui ler o famoso ensaio de Michel de Montaigne sobre os canibais. É admirável a forma como o escritor francês refletiu sobre os hábitos dos índios brasileiros no calor da hora, em pleno século das grandes navegações.
Fui ler o famoso ensaio de Michel de Montaigne sobre os canibais. É admirável a forma como o escritor francês refletiu sobre os hábitos dos índios brasileiros no calor da hora, em pleno século das grandes navegações. Montaigne recolheu relatos junto a compatriotas que haviam participado do episódio da França Antártica – quando os franceses tentaram implantar uma colônia na Baía de Guanabara, em 1555 – e chegou a encontrar pessoalmente com três índios brasileiros no porto de Rouen, em 1562. Com a ajuda de um intérprete, pôde conversar com eles. Teceu, a partir disso, uma reflexão surpreendentemente livre, isenta de julgamentos morais, fascinada e ávida pela diferença, pela diversidade da experiência humana, uma reflexão bem ao gosto da abertura de espírito que permeou o humanismo Renascentista do século XVI. Com a cabeça sintonizada com a Grécia clássica e o universo latino, Montaigne chega a lamentar que Platão e Licurgo não tivessem conhecido esses homens dos trópicos, pois poderiam, talvez, saber melhor apreciá-los do que ele próprio. É tamanha a “pureza” desses índios, observa ele, que a nova experiência daquelas nações “ultrapassa não somente todas as pinturas com que a poesia embelezou a Idade de Ouro, e todas as suas invenções para imaginar uma feliz condição humana, como também a concepção e o próprio desejo da filosofia”. Não há a mais remota sombra de superioridade no olhar de Montaigne. Mas tampouco há uma idealização romântica do “bom selvagem”. Depois de descrever de modo bastante objetivo um ritual antropofágico, ele comenta o seguinte: “Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato, mas sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os nossos”. Os índios permitiam melhor enxergar o absurdo de certos hábitos e crenças da sociedade na qual Montaigne vivia, a tornar mais nítidas suas misérias, a pôr em xeque sua presunção: “em qualquer lugar onde sua pureza (do índio) reluz ela envergonha esplendidamente nossos vãos e frívolos empreendimentos”. O ensaio de Montaigne exala uma sábia modéstia em relação a qualquer tipo de certeza ou verdade, um respeito pelas possibilidades racionais que caminha junto com um sentido delicado dos limites da experiência humana. Temas escandalosos para a época – nudez, canibalismo, poligamia – são incorporados com naturalidade à sua rede de reflexões pessoais, que têm por objetivo pensar os temas essenciais da condição humana – como gozar uma boa vida, como lidar com a solidão, como envelhecer, como se preparar para a morte.
Quase no fim do ensaio fui surpreendido pela transcrição de duas canções recolhidas por Montaigne junto aos índios brasileiros. Uma delas soava estranhamente familiar, e dizia assim: “Cobra, para, para, cobra, a fim de que minha irmã tire do molde da tua pintura a forma e o feitio de um rico cordão que darei à minha amada; assim, sejam para sempre tua beleza e teu porte preferidos aos de todas as outras serpentes”. A beleza da imagem indígena – o amante que pretende transformar a beleza de uma serpente em um presente para a amada – é prontamente confirmada pelo escritor renascentista: “Ora, tenho bastante trato com a poesia para julgar: não só não há nada de barbárie nessa imaginação como ela é totalmente anacreôntica”. (O que é belo é belo em qualquer época, em qualquer cultura – pouco importa o que a tonelada de discurso relativista tenha dito sobre isso.) O que eu até então não sabia é que Waly Salomão havia se inspirado nos versos recolhidos por Montaigne para criar o poema Cobra coral, publicado no seu último livro, em 2000, e que seria novamente vertido em canção por Caetano Veloso. Ou seja, depois de ser cristalizada na escrita, a ideia poética atravessou quase 500 anos, serpenteando, até ser recriada no poema de Waly e escorregar novamente para a forma musical – fechando um ciclo perfeito que religa o Brasil ao seu próprio passado, reconduzindo do crivo letrado de sua matriz renascentista à sabedoria e ao ímpeto de beleza de seus índios. A canção de Caetano sobre os versos de Waly traz a essencialidade, a sofisticação natural, a alegria que Montaigne deve ter sentido diante daqueles “selvagens” em Rouen (“passam o dia dançando”, escreveu ele). A percepção de que o langor, a elegância e a beleza é que devem ser os verdadeiros critérios de avaliação das sociedades humanas.
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