O pop e o dinheiro
O que espanta no clipe musical de Rihanna é o seu altíssimo grau de redundância. Ele forma um sistema fechado, dominado por uma única entidade que remete o tempo todo a si mesma. O dinheiro não é mais o meio, que equilibra-se com outros objetos do mundo, mas é a um só tempo o sujeito e o objeto do discurso. Não há nada além disso.
Um clipe da Rihanna
Parecia os últimos momentos do império romano, quando, com a consciência do fim iminente, cria-se o apelo hedonista do carpe diem. Ou então uma daquelas cenas dos bordéis berlinenses no fim da Segunda Guerra, com a euforia triste de soldados bêbados que apenas esperavam o anúncio oficial do que já sabiam: que a Alemanha nazista havia sido derrotada. A sensação de decadência era a mesma. O mesmo descaso do futuro, a mesma ausência de esperança. Mas era apenas um clipe da Rihanna, que eu acompanhava sem ouvir o som, enquanto fazia exercícios na academia, num desses programas nos quais a letra da música aparece traduzida nas legendas. Somente dois personagens despontavam sobre o fundo infinito: mulheres semi-nuas e dinheiro. Muito dinheiro. Dinheiro sendo jogado para o alto; dinheiro preso nos elásticos da lingerie, como parte do figurino; dinheiro sendo cultuado como um verdadeiro deus. Rihanna só faltava falar com as notas de dólar. Muitas poses e movimentos sexuais – alguns pareciam imitados diretamente do funk carioca. Dei uma espiada nas legendas: “Jogue-o, jogue-o / veja-o cair / derrame tudo, derrame tudo / é assim que nos resolvemos”. Ou seja, a letra seguia o tom apologético e reiterava a imagem. Rihanna olha para as câmeras e tenta, com seus atributos físicos, seduzir o espectador: “Quatro da manhã e ainda não fomos para a casa / o dinheiro faz o mundo girar / mãos fazem sua garota descer”. Na cultura da ostentação todas as mulheres parecem à venda, todas parecem prostitutas. Rihanna exibe mais notas de dólar e arremata, com o olhar de um traficante que alicia um menor: “Ainda tem muito mais de onde veio / olho nos seus olhos e sei que você quer um pouco”
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O pop sempre manteve uma ótima relação com o dinheiro. Uma relação franca, talvez até positiva. Sabia que, na nova sociedade do consumo de massa, o dinheiro se tornaria cada vez mais onipresente, como inevitável meio de troca por trás da rápida circulação de mercadorias. Desde o início o pop voltou-se para o que havia de vulgar no centro do capitalismo avançado, os Estados Unidos. E o dinheiro certamente era uma parte fundamental desse vulgar. Há algo aparentemente democrático na indiferença brejeira do dinheiro, que pode sair de uma carteira rica para cair nas mãos de um mendigo. O dinheiro circula pelas ruas, é sujo. Não havia mais porque devotar-lhe um “nojinho aristocrático”. Conta-se que, quando começou a pintar nos anos 1960, Andy Warhol não sabia exatamente o que retratar. Foi consultar um amigo, e este lhe disse: “pinte aquilo que você mais ama”. Warhol pintou notas de dólar – que algum tempo depois, tendo se tornado a moeda reserva internacional, transformou-se no “dinheiro dos dinheiros”.
Andy Warhol, One dollar bill, 1962
Toda a mitologia da grande era da música pop – seus escândalos, mansões, excentricidades, jatos – continha cifras por trás. Os anos 1980 assistiram à expansão dessa tendência. No Brasil, o produtor Nelson Motta os anunciou como “a década do mercado”. Sem mais delongas a música era reconhecida como “negócio”. Um imaginário de imensas fortunas passou a pairar sobre o show business, tornando quase equivalentes e cambiáveis termos como “rico” e “famoso”. Há uma linha que leva daí até o pop ostentação de Rihanna. Mas, no meio do caminho, alguma coisa parece ter mudado.
O corredor de espelhos
O que espanta no clipe musical de Rihanna é o seu altíssimo grau de redundância. Ele forma um sistema fechado, dominado por uma única entidade que remete o tempo todo a si mesma. O dinheiro não é mais o meio, que equilibra-se com outros objetos do mundo, mas é a um só tempo o sujeito e o objeto do discurso. Não há nada além disso. Rihanna, Jay Z ou Mc Guimê (atirando notas no seu Plaquê de cem) são apenas emissários – apenas ligam a máquina autorreferente. Para usar uma manobra pós-estruturalista, eles não falam o discurso do dinheiro, mas são falados por ele. O incomodo vem do fato de que, como acontece com outros sistemas fechados, perde-se o contato com o real (com o que existe fora); o sistema passa a funcionar no vazio, em looping infinito (como a voz de fundo, repetindo incessantemente em contraponto “eu ainda tenho dinheiro, eu ainda tenho dinheiro”). Neutraliza, desse modo, todos os outros possíveis valores. “Tudo o que vejo são cifrões / tudo o que vejo são cifrões de dólar (dollar signs) / dinheiro, dinheiro na minha mente / dinheiro, dinheiro na minha mente”, repete compulsivamente o refrão. Aqui, me parece, entramos no campo da patologia psíquica. Não se trata mais de uma simples questão de princípios ou valores; há algo mais poderoso nessa obsessão totalizante. O vulto do dinheiro já não pode mais ser domado pela ironia de um Warhol.
O dinheiro é homogêneo, e desse modo homogeniza seus objetos e usuários. Ao tornar-se um objetivo universal, ameaça os outros valores à medida que os transcende e substitui; abre espaço para, e até alimenta, uma ganância ilimitada. Muitos autores falaram do poder de dissolução do dinheiro não apenas sobre a vida social, mas sobre nossas concepções mentais e morais do mundo. Em plena Grande Depressão dos anos 1930, o economista John Maynard Keynes escreveu um texto famoso no qual diz que “o amor do dinheiro enquanto uma posse – distinto do amor do dinheiro enquanto um meio para os prazeres e realidades da vida – será reconhecido pelo o que é, uma morbidez nojenta, uma daquelas propensões semi-criminosas e semi-patológicas que alguém encaminha com um estremecimento para o especialista em doenças mentais”.
E não estamos falando apenas de uma vertente da música pop (a da ostentação), nem do espaço restrito de um videoclipe, mas de uma tendência cultural mais ampla, de alcance global – como se estruturas congênitas do ser humano fossem hiper-estimuladas e tomassem a frente de todas as outras, passando, cada vez mais, a construir o mundo à sua imagem. Pouco tempo depois de assistir por acaso ao clipe de Pour it up, vi outro vídeo de Rihanna, no qual ela aparecia nos bastidores de um evento de moda, em Nova York. Metida em um vestido de cristais que deixava seu corpo praticamente nu, a diva fazia uma dança explicitamente sexual, feliz da vida por ter sido agraciada com o prêmio de “ícone fashion”. O mais curioso, contudo, era a decoração na parede ao lado: uma escultura de uma nota de cem dólares agigantada. “Tudo o que vejo são cifrões, dinheiro, dinheiro na minha mente”.
Assim como a escrita, o dinheiro substitui coisas (materiais e imateriais) por sinais ou símbolos, ou seja, por representações. Mas, como acontece com todas as formas de representação (mapas, por exemplo), há um abismo entre a representação e a realidade social que ela pretende representar. E é sempre fácil confundir a representação pela realidade. Notas, moedas e dinheiros eletrônicos são apenas símbolos. Nesse contexto, o desejo por dinheiro como uma forma de poder social se tornou um fim em si. Diante dos mais de 120 milhões de acessos ao clipe de Rihanna, das imagens de Guimê jogando notas de cem para o ar, do colar em forma de cifrão usado pelo ídolo midiático Naldo, me pergunto: poderia uma cultura inteira ser conduzida na direção da mistificação auto-celebratória do dinheiro?
O dinheiro infinito
Parece que desde que o dinheiro tomou vulto na história da humanidade, paira sobre ela a sombra de uma redução total do mundo aos desígnios do “vil metal”. Mas o que parece realmente ter sido um fato novo do nosso tempo, ocorrido na virada do século XX para o XXI, foi o incrível afastamento do dinheiro em relação ao mundo concreto – como se pudesse habitar um universo à parte; provavelmente numa bolha.
Antes, para cada nota emitida era necessário que houvesse, no tesouro nacional, uma reserva equivalente em ouro. Ainda que falível, havia uma restrição material para a infinita criação de dinheiro. Quando a base metálica das moedas globais foi totalmente abandonada nos anos 1970, passamos a nos encontrar em um mundo potencialmente sem limites para a criação e acumulação de dinheiro. A partir dos anos 1980, inicia-se um processo de desregulação do setor financeiro. Subitamente, Wall Street começa a produzir milionários em série. A desregulação avança nos anos 1990, associada com desenvolvimentos na tecnologia da informação. Com o fim da Guerra Fria, físicos e matemáticos que trabalhavam na indústria bélica migram para a área de inovação financeira, criando, como disse Warren Buffet, “novas armas de destruição em massa”: os derivativos. Produtos financeiros complexos, com um grau de abstração incompreensível para a maioria dos mortais, os derivativos permitiram que se especulasse sobre praticamente tudo o que existe sob o sol (e até sobre o que não existe). Representaram um passo gigantesco na invasão da vida social pelas forças do mercado financeiro. Tudo, absolutamente tudo, passou a carregar uma etiqueta virtual de preço. O mundo tornou-se um grande videogame especulativo, a realidade sendo vista como um ativo à espera de valorização. É nessa altura que surgem as primeiras manifestações da cultura da ostentação na música pop americana.
No fim dos anos 90, os derivativos movimentavam cerca de 50 trilhões de dólares (nessa mesma época, o PIB da economia americana ficava por volta de 11 trilhões). Lobistas do mercado financeiro impediram qualquer medida regulatória. Os anos 2000 assistiram a uma verdadeira “corrida do ouro”, um frenesi financeiro marcado por uma explosão do uso de derivativos e de outros recursos da inovação financeira. O dinheiro multiplicava-se magicamente, como no clipe da Rihanna, mas não era lucro nem renda: era apenas algo artificialmente criado pelo sistema, e contabilizado como renda; mas que, existindo como tal, poderia ser usado para comprar coisas concretas; para concentrar mais poder. Depois de anos de euforia, a crise de 2008 veio mostrar ao mundo o quanto o sistema financeiro havia se afastado da economia real, e o quanto estava (está) em vias de destruí-la. Mostrou também que mais vantajoso do que usar o dinheiro para produzir coisas reais (passando por todas as implicações de uma cadeia produtiva), é usar o dinheiro para, simplesmente, gerar mais dinheiro… financistas e acionistas extraindo dinheiro (valor social) de todas as sortes de atividades não-produtivas (que não produzem valor). Mas o real costuma reagir à redução de tudo a cifrões luminosos em telas de computador. Sempre haverá algo do lado de “fora” do “corredor de espelhos”, algo além das abstrações do sistema auto-referente, de dinheiro que remete a mais dinheiro.
Ostentação Vs Elegância
Não sei se é mera coincidência que a cultura da ostentação na música pop tenha ocorrido em paralelo com a hipertrofia do setor financeiro, com a multiplicação infinita de dinheiro fictício, com a invasão especulativa de todas as esferas da vida. Parece ter havido, no universo pop, uma mudança de tom, revelada no caminho que leva da exaltação do individualismo (e da liberdade econômica) numa canção como Freedom (George Michael), que abre os anos 1990, até as faixas de um disco como Get rich or die trying, feito por um rapper com nome de dinheiro (50 cent), no início dos anos 2000, a fase áurea da especulação financeira, que preparava a grande crise. Passamos de versos como “algumas vezes as roupas não fazem o homem” para “estou concentrado, meu dinheiro na mente, recebi um milhão e estou agitando”. O que a cultura da ostentação de fato mostra, é que a acumulação de riqueza (e poder) se tornou não apenas tolerada, mas bem-vinda, como algo a ser admirado. Em outras palavras, tornou-se um ideal cultural do nosso tempo. O dinheiro tornou-se a um só tempo mais volátil e mais onipresente; perdeu sua materialidade para sublimar-se no próprio espírito do tempo: “tudo o que vejo são cifrões, dinheiro, dinheiro na minha mente”. Ao que tudo indica, passamos a cultuar abertamente qualidades associadas com a ascensão do dinheiro, que, durante muito tempo, foram vistas com verdadeiro horror. A música pop não é apenas um espelho, mas um agente divulgador dessa tendência. Ela nos faz lembrar que a música não é inocente, e pode desempenhar um papel social regressivo – pode contribuir para piorar o mundo. Sim, a música pode ser perigosa.
A incorporação da cultura da ostentação no Brasil é complexa, traz grandes contradições. Mas não deveria ser subestimada, e tampouco tratada com complacência populista. Seu aspecto positivo (o aumento do poder aquisitivo de amplos setores da população) não deve eclipsar um olhar mais atento e crítico sobre outros aspectos. Sua ambigüidade de base foi indicada com precisão por um comentário de André Singer acerca do funk ostentação. Singer notou “a autenticidade da manifestação”, pois, “tal como no rap, são vozes da comunidade falando para a comunidade”; mas fez a importante ressalva de que “os valores expressos são justamente os que emanam da publicidade”, o que representa “uma extraordinária vitória do capitalismo”.
Quando me vejo embarcando nesse mundo, sinto saudade de uma época em que os artistas, longe de se ajoelharem aos pés do dinheiro, exibiam imenso prazer em desprezá-lo, em afirmar valores que escapam à sua lógica redutora. Candeia exigindo que o “Ouro desça do seu trono” para “ver o abandono de milhões de almas aflitas”. Elomar demarcando um espaço vital no qual o dinheiro não deve, não pode entrar: “viola, amor, furria, dinheiro não”. Caetano retomando o mote de Elomar para exaltar o mistério, a beleza pura… a elegância – o avesso da ostentação. Elegância, sim. Dinheiro, não.
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