Esta dona prosódia
Você pode considerar “incorreto” quando ouve João Gilberto cantando “pois há milhões de abraços apertado assim, colado assim, calado assim...” (em Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes). Ora, se é de abraços que ele fala, então o “correto” seria dizer “apertados” e não “apertado”. Mas, na sua expertise de letrista coloquial (e cheio de pecadinhos prosódicos), Vinícius sacou que ficaria formal demais, além de “incabível” no verso. Também roubaria o efeito de ritmo e rima que se completa com a sequência “colado assim, calado assim”.
Prosódia, segundo dicionários, quer dizer: “parte da gramática normativa que trata da correta acentuação dos vocábulos e, ainda, dos fenômenos de entoação; estudo da pronúncia e acentuação correta das palavras, de acordo com a norma culta”.
Trocando em miúdos, seria a forma como as palavras são encaixadas rítmica e melodicamente num texto (ou fala), seja ele a frase de um romance ou o verso de um poema ou canção. Sim, há a prosódia musical, relação entre a acentuação silábica das palavras e os acentos da estrutura musical. Pois é sobre esta prosódia, a das canções, que me interessa falar aqui. Conheço compositores, alguns dos quais amigos e/ou parceiros, que têm verdadeira obsessão com a “correção” da prosódia. Eu não. Me agrada a barafunda infinita das palavras de nosso idioma inesgotável e gosto de me perder em suas mil e uma possibilidades de entonação e divisão. Em meu favor, uso o argumento de que a prosódia da canção é próxima à da fala (semelhante, não igual), e assim como esta, é imperfeita, torta e sem regras muito claras. Portanto, não acho que se possa falar em “correção” quando o assunto é língua falada, e a canção é, grosso modo, uma extensão da coloquialidade da fala. Poderia mesmo dizer que um dos grandes baratos da canção é poder ouvir palavras às vezes ressignificadas pelo ritmo proposto pelo compositor.
Você pode considerar “incorreto” quando ouve João Gilberto cantando “pois há milhões de abraços apertado assim, colado assim, calado assim…” (em Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes). Ora, se é de abraços que ele fala, então o “correto” seria dizer “apertados” e não “apertado”. Mas, na sua expertise de letrista coloquial (e cheio de pecadinhos prosódicos), Vinícius sacou que ficaria formal demais, além de “incabível” no verso. Também roubaria o efeito de ritmo e rima que se completa com a sequência “colado assim, calado assim”.
Se o sertanejo é antes de tudo um forte, como cunhou Euclides, o compositor brasileiro é antes de tudo um malandro. Malandragem foi o que fez o novo baiano Moraes Moreira acentuar sílaba em que não havia acento, em Lá vem o Brasil descendo a Ladeira – “e toda cidade que andava quieta, naquela ma-drú-ga-da acordou mais cedo”. Também o bardo Belchior subverteu a acentuação em Divina Comédia Humana, criando belo efeito rítmico ao cantar: “deixando a pro-fun-dí-da-de de lado…”. Em Kriptônia, Zé Ramalho também abusa da “reacentuação” quando canta “um asteróide pequeno que todos chamam de Ter-rá”.
O cantor Nilton César, ídolo popular nos anos 70, cantava a plenos pulmões seu grande sucesso radiofônico: “À Índia fui em férias passear, tornar realidade um sonho meu”. Aos meus ouvidos de menino, aquilo soava como historinha infantil, do tipo: “a índia foi em férias passear…”, embora agora entenda não parecer nada razoável uma índia que se dava ao luxo burguês de passear nas férias (férias de quê, cara pálida?). O maior sucesso do inglês carioca Ritchie foi a indefectível Menina Veneno (música dele com letra de Bernardo Vilhena), que varreu as rádios brasileiras no início dos 80. Até duas semanas atrás eu a cantei por mil vezes errada e convictamente (eu e o Brasil inteiro): “Um abajur cor de carne”, verso polêmico desde a origem, pois um abajur cor de carne é um tanto inimaginável, especialmente no contexto algo sensual da dita canção. Pois bem, fui alertado por um amigo músico: o abajur da menina veneno nunca teve a surreal cor de carne, mas sim “cor de carmim” (cantada “cor de cár-mim”), muito mais palatável e digerível, até porque carmim é cor “rodada” em canções – de bocas a lençóis, não faltam elementos carmins no nosso cancioneiro.
“Ideologia, eu queruma pra viver”. Assim soava um dos grandes hits do Cazuza, já em carreira solo. Fosse ele articular cuidadosamente a frase, ela não teria o mesmo impacto e a força de refrão rock’n’roll que pretendia ter (e tinha). Experimente cantar “corretamente” e verá. Djavan é um dos compositores mais contestados em termos de prosódia. O que pra muitos, como eu, é sinal de genialidade e personalidade artística, pra outros é mero desleixo com a língua-mãe. Acontece que a sua poesia é calcada no ritmo das palavras e este está acima de tudo em sua música. É isso que justifica certos aparentes absurdos, como “fez a via-láctea, fez os di-nos-sau-rôs” (em Eu te Devoro), ou “mais fácil a-prên-der japonês em braille” (em Se). Não à toa, suas músicas são das mais parodiadas (“aprender japonês hebraico” e “ao sair do avião, zum de besouro, um limão, branco é às três da manhã” são piadas usuais em rodas de músicos). Essa mesma falta de medo das palavras e sons, típico dos bons poetas, gerou versos primorosos, como: “Marelou, candomblé, Oxum, zamburar pra tirar egum, o que não se vê tá aí como tudo que há” (em Luz) ou “místico clã de sereia”, (na parodiável Açaí).
Considero este recurso (trapacear nas acentuações silábicas em prol do ritmo ou simplesmente da mágica de inventar um novo som) algo bem inteligente, embora vez ou outra possa ser só fruto de desatenção ou mesmo falta de engenho. Esses casos ficam para outra empreita.
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