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O elo perdido de Proust

A carta mostrada nesta página foi considerada durante muito tempo um elo perdido na abundante correspondência de Marcel Proust. A carta diz respeito a um momento chave de sua vida literária: a primeira publicação do primeiro volume de sua obra máxima “Em busca do tempo perdido”, intitulado “No Caminho de Swann”.

| 04 out 2011_19h02
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A carta mostrada nesta página foi considerada durante muito tempo um elo perdido na abundante correspondência de Marcel Proust. Diz respeito a um momento chave de sua vida literária: a primeira publicação do primeiro volume de sua obra máxima , intitulado No Caminho de Swann. O episódio é um dos mais famosos da história editorial da França.

Em 1912, seu manuscrito foi recusado por todos os editores, entre os quais, a Nouvelle Revue Française (NRF). Proust recorre, então, a um jovem editor iniciante (que depois se tornaria famoso) Bernard Grasset e propõe assumir todos os custos. Grasset, que nesses termos nada tinha a perder, mal leu a obra e aceitou imediatamente publicá-la. A primeira edição saiu em 1913 e foi bem distribuída pelas livrarias de Paris. Um colaborador da NRF, Jean Schlumberger leu o volume, entusiasmou-se com sua qualidade extraordinária e emprestou-o a seu colega, André Gide. Este, grande escritor francês que ganharia mais tarde o premio Nobel, conhecia Proust dos salões parisienses e o desprezava como mundano inconsequente. Gide fora o responsável pela primeira recusa do manuscrito, que alguns alegam nunca chegou a abrir por pura antipatia pelo autor. Desta vez, Gide leu o volume impresso de um só fôlego e deu-se conta da monumental burrada de que cometera (“o erro mais pungente da minha vida”, escreverá ele mais tarde a Proust). Resolveu, então, publicar os dois volumes seguintes de (acabaram sendo oito).

Proust, apesar de encantado por este mea culpa ? e pela perspectiva de ser agora publicado pela editora que mais respeitava, ? encontrou-se diante de um dilema que hoje chamaríamos de proustiano: publicar a continuação da sua obra no editor dos seus sonhos, abandonando a jovem editora que lhe servira de trampolim, ou ser fiel ao gesto de Grasset (que sem dúvida havia sido mais sensível ao dinheiro de Proust do que ao seu talento) e renunciar ao prestígio da NRF.

Por pessoa interposta, como era seu hábito, Proust consulta primeiro Grasset. A resposta deste o decepciona, pois o editor de forma inábil invoca um contrato anterior frágil e bastante vago.

Proust reage mal e Grasset compreende que trilhou um caminho errado e estava arriscado a perder esse autor de tão inesperado êxito. Manda-lhe então nova carta, de tom bem diverso, desvinculando Proust de qualquer obrigação com sua editora e sugerindo-lhe que só permanecesse por espontânea vontade. Se conhecesse bem Proust, Grasset saberia que tinha acertado na mosca. Ao receber sua carta, Proust escreveu imediatamente a Gide para informá-lo que Grasset utilizara com ele a única arma contra a qual não tinha defesa: a gentileza.

É a esta carta de Grasset que Proust responde com a carta aqui reproduzida. O escritor escolhia cuidadosamente a forma de se dirigir aos seus correspondentes, e a saudação “Caro amigo” que utiliza com Grasset revela muito sobre o seu novo estado de espírito. A primeira frase é explícita: “Sua segunda carta (encantadora, e pela qual agradeço mil vezes) retificando a interpretação certamente errada que eu tinha dado a primeira…”. Proust, dissimulando a indignação que sentira face à primeira reação de Grasset, aborda rapidamente o âmago da questão: “Perguntei-lhe se iria contra o seu desejo (perante o qual antecipadamente me inclinava) se entregasse à NRF a tarefa de publicar os 2ª e 3ª volumes. Você me comunicou que fazia questão de que elas fossem publicadas na sua editora. Fica então assim, pelo menos para a primeira edição”. Em seguida Proust confirma a “reconciliação”. “De quem são aqueles encantadores versos de pé quebrado. ‘Uma palavra provocara, uma palavra acalmara a tempestade, e no final o amor sempre acaba por vencer’. Deixe-me crer que essas linhas possam aplicar-se às nossas relações…” Mas Proust é cuidadoso em deixar claro que o acordo só é válido para a primeira edição: “Você me dirá o que pensa da forma pela qual as edições posteriores poderiam ser entregues à NRF”.


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Proust resolveu com esta carta um dos maiores dilemas de sua vida e encerrou provisoriamente um capitulo decisivo desta questão sempre evocada de forma emblemática na história literária da França no século XX. A 1ª guerra mundial mudou o curso desta história, Grasset foi mobilizado para servir no exército e tanto ele quanto Proust sentiram-se desobrigados do compromisso assumido antes dela. O segundo volume, intitulado À sombra das raparigas em flor, foi publicado pela NRF em 1918, apenas finda a guerra, e valeu a Proust o mais prestigioso premio literário da França, o Goncourt.

Esta carta fascinante deve ter sido muito rapidamente adquirida por uma coleção privada para que tenha escapado ao crivo de Philip Kolb, um universitário americano que dedicou sua vida a pesquisar e publicar a correspondência completa de Marcel Proust. Reapareceu num catalogo de livreiro em 1978 nos Estados Unidos, quando foi adquirida pelo seu atual detentor. Seu texto só foi finalmente publicado na França em 1993.

A maior parte dos manuscritos que a família de Proust herdou foi vendida à Biblioteca Nacional de França. Apesar de tudo, Proust é talvez, entre os maiores escritores do século XX, aquele de quem se encontraram mais autógrafos importantes durante os últimos trinta anos. Mas as peças essenciais tem sido adquiridas por instituições e não voltarão a aparecer no mercado.
 

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