ILUSTRAÇÃO_ANDRÉS SANDOVAL_2018
Encantadora de bois
Por dentro da psiquê dos animais
Mônica Manir | Edição 144, Setembro 2018
Temple Grandin empacou diante da porteira. Alguns parafusos cravados na madeira lhe saltaram aos olhos. “Tem que limar a cabeça desses parafusos, senão o gado pode se machucar”, aconselhou à dona da fazenda, Carmen Perez, que ao lembrar a cena comentou: “Sempre passo no curral antes do manejo, observo tudo, dizem que tenho olho biônico, e ela notou uma coisa que eu não tinha visto.”
Grandin tem um parafuso a mais quando se trata do bem-estar dos bichos. Professora de ciência animal, ela é autista e, como tal, dona de uma hipersensibilidade visual e auditiva. Tocada pelas angústias do gado desde a juventude, ela compreendia por que a rês recuava na hora da vacinação, por que atacava um vaqueiro, por que tropeçava, por que mugia. Grandin traduziu esse entendimento em projetos que propunham mudanças no manejo. Hoje, instalações criadas por ela são familiares a quase metade dos bovinos nos Estados Unidos. O Brasil, com seus quase 172 milhões de cabeças de gado, segundo o Censo Agropecuário de 2017, vem aos poucos fazendo ajustes alinhados com as propostas da americana.
Em julho passado, Grandin, hoje com 71 anos, veio ao Brasil pela sexta vez. À diferença das visitas anteriores, em que ficava confinada em auditórios lotados, falando sobre bem-estar animal e autismo, nessa última ela também visitou uma fazenda. Na Orvalho das Flores, localizada em Barra do Garças (MT), ela testemunhou como a equipe de Perez conduz suas 2 980 cabeças de Nelore, raça predominante no país. Os vaqueiros massageiam os bezerros, não gritam com os bois, tampouco deixam capas de chuva, correntes ou chapéus no caminho dos animais. “O gado tem uma visão lateral panorâmica e vigilante, na cabeça deles uma capa pode ser sinal de onça”, disse a engenheira agrônoma Maria Lucia Pereira Lima, que acompanhou a visita.
Lima foi aluna de pós-doutorado de Grandin na Universidade do Estado do Colorado, em Fort Collins, em 2013. Viajara aos Estados Unidos para aprender como medir o bem-estar dos bovinos e se inteirar de inovações que pudessem ser implantadas em currais brasileiros. Uma delas, por exemplo, tranquiliza o animal conduzido à vacinação: o gado em geral se via obrigado a passar espremido por espaços afunilados. Grandin projetou um acesso em curva, sem cantos, que dá à rês a ilusão de que voltará ao ponto de partida. Outra: uma lâmpada acesa na entrada do tronco de contenção – o equipamento que permite o manejo individual do boi – a indicar o trajeto reduziu em até 90% o uso de choque elétrico durante o processo.
Motivada pela mãe, Grandin, que só começou a falar aos 4 anos, aprendeu a ser independente e a se relacionar. “Quando tinha 8 anos, descobri que não podia chamar uma pessoa de ‘balofa’”, ela disse na palestra sobre autismo que deu para cerca de 400 pessoas no Teatro Gamaro, em São Paulo, no dia seguinte à visita à fazenda. Também entendeu que o choro não deve ser tolhido: “Estimulo os pais a deixar seu filho autista chorar porque garotos que choram podem trabalhar para o Google, enquanto os que quebram computadores, não.” Nas palestras que ministra nas empresas do Vale do Silício, ela costuma detectar funcionários que se enquadram nitidamente em algum ponto do espectro autista.
Uma de suas atuais preocupações são as crianças e os jovens – autistas ou não – encabrestados pelos celulares. Em entrevista à piauí no teatro, cercada por alunos de veterinária e zootecnia que não cansavam de solicitar uma foto com ela, Grandin lamentou que os pais já não ensinam mais os filhos a se relacionar: estão, eles também, com os olhos abduzidos por uma pequena tela. Outro problema das redes sociais, como se sabe, é que as pessoas não conseguem se desvencilhar das mensagens que pululam o tempo todo em seus telefones, algumas delas de bullying – “talvez sórdidas demais para serem desprezadas”.
Isso não significa que ela não reconheça vantagens nos aplicativos e na tecnologia. Uma aluna sua programou o próprio celular para acionar uma câmera no curral, filmar o gado durante a noite e checar se os bichos estão incomodados com alguma coisa. Para não se mostrarem fragilizados, bois e vacas fingem não sentir dor quando percebem que estão sendo observados, explicou Grandin, enquanto ajeitava o lenço vermelho no pescoço, no qual alfinetou um broche com suas iniciais. É famoso seu composé country: camisa de pala bordada, calça de cintura alta e cinto de couro.
No auditório da universidade, outros pesquisadores se revezavam no palco discutindo aspectos econômicos e sociais relacionados ao bem-estar animal. O tempo de manejo cai pela metade nos estabelecimentos agropecuários que seguem os manuais de Grandin. De ovos transportados com cuidado nascem pintinhos sadios. Sem falar na melhor qualidade de vida de quem lida com esses bichos. Vaqueiros bem treinados sofrem menos acidentes no trabalho e desenvolvem uma relação mais harmoniosa nos casamentos. “A melhoria do bem-estar animal melhora o bem-estar humano”, afirmou o zootecnista Mateus Paranhos da Costa, da Universidade Estadual Paulista.
Inspirada nos troncos de contenção, quando jovem Grandin criou para uso próprio uma engenhoca de madeira que batizou de Máquina do Abraço. O aparelho consistia em duas grandes placas laterais que pressionavam o corpo do usuário, deitado de bruços entre elas. A limitação imposta pelo dispositivo ajudou-a a conter os acessos de pânico, as crises de ansiedade e o incômodo com sons altos e súbitos.
A máquina quebrou em 2008, e Grandin não fez questão de consertá-la. Hoje recorre a abraços humanos, mas isso não a impede de revelar o que ainda a tira do sério. A descarga a vácuo nos banheiros de avião é um de seus maiores pavores, conforme revelou no livro O Cérebro Autista, escrito em parceria com o jornalista Richard Panek. “O prelúdio é breve como um aguaceiro, mas depois vem o trovão da sucção. Odeio aquilo.” O barulho do secador de mãos nos banheiros também parece perfurar seu cérebro – sensação, aliás, compartilhada por muitos não autistas.
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