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    Antonio Marciano carrega sua cesta de mercadorias pelas ruas de Duque de Caxias, Rio de Janeiro FOTO_ELVIRA LOBATO

colunistas

Os mascates do Rio

A periferia sem crédito mantém a tradição do vendedor de porta em porta

Elvira Lobato | 22 set 2018_06h30
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No final de 2017, sem perspectivas de emprego no interior do Ceará, o jovem Antônio Marciano da Silva, de 26 anos, partiu para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. O pai tinha migrado dois anos antes e o aguardava com um trabalho garantido em São João de Meriti, na Baixada Fluminense: o de vendedor de produtos de porta em porta, também conhecido como mascate.

Pai e filho moram em um apartamento alugado no bairro de Vilar dos Teles, que ganhou alguma notoriedade na década de 80 como polo de confecção de roupas de jeans. As confecções fecharam, e a região passou a concentrar revendedoras de carros usados.

Todos os dias, o jovem mascate passa pelas fileiras intermináveis de carros dispostos sobre as calçadas com um cesto plástico nas costas abarrotado de colchas, lençóis, toalhas, potes, panelas e outros produtos de uso doméstico. Ele tem uma clientela fiel para suas mercadorias: as famílias que estão nas listas de inadimplentes do SPC e do Serasa e, por isso, não conseguem comprar a crédito nas lojas, e as donas de casa que trabalham fora e não têm tempo para percorrer o comércio.

Chova ou faça sol, a rotina de Antônio não se altera. Sai de casa cedo para visitar os clientes, com o cesto preso às costas (do tipo que se usa para guardar roupa suja), e só retorna no fim do dia. Me deparei com ele, por acaso, em Duque de Caxias, município vizinho de São João de Meriti. Caminhava a passos acelerados, sob o sol escaldante do meio-dia. Já tinha se livrado de metade da carga, mas continuava com uns quinze quilos de mercadorias. Acostumado ao trabalho árduo na lavoura, não dava sinais de cansaço.

O jovem interrompeu a caminhada para responder às minhas indagações sobre sua surpreendente realidade. Eu, como muitos, julgava que a figura do mascate fazia parte do passado. Estava enganada. Continua mais viva do que nunca nas favelas e nas periferias das grandes cidades. O rapaz contou que chega a caminhar trinta quilômetros por dia para atender a clientela. Um detalhe me chamou a atenção: ele percorre tal distância calçado com simples chinelos de borracha, como se estivesse a caminho da praia.

Antônio definiu sua profissão atual com um termo que eu desconhecia: crediarista. ‘’Mas pode chamar de mascate. É a mesma coisa”, acrescentou. O termo crediarista define os que vendem a prazo, por conta própria, sem o respaldo de uma instituição de crédito.

Maria do Rosário Silva, de 38 anos, mora no bairro Lote XV, em Caxias, e trabalha como auxiliar de limpeza em um prédio residencial no Alto Leblon, na Zona Sul do Rio. Ela é cliente contumaz do mascate Severino, que atua há vários anos no bairro onde mora. “Só tenho um dia de folga na semana e preciso aproveitar para cuidar da minha casa. Não posso ir a lojas”, explicou. Sua última compra foram dois panelões de alumínio, por 320 reais, que vem pagando em quatro parcelas mensais. Rosário não comparou o preço do mascate com o praticado nas lojas. “Acho que o dele [Severino] deve ser mais caro, mas posso pagar aos poucos.”

Os mascates estão presentes também nas favelas da Zona Sul do Rio, como a da Rocinha, em São Conrado, e de Rio das Pedras, em Jacarepaguá, com o mesmo sistema de crediário que constatei na Baixada Fluminense. O vendedor financia o comprador sem qualquer contrato formal de confissão de dívida. A compra e os pagamentos das parcelas são registrados manualmente em dois cartões: uma cópia fica com o vendedor e outra com o comprador.

É um universo ocupado majoritariamente por nordestinos. Eles predominam em todos os elos da cadeia comercial: do grande distribuidor, que vende os produtos no atacado, aos representantes comerciais que fazem a interface entre os atacadistas e os milhares de “formiguinhas” que oferecem as mercadorias de porta em porta.

Pela internet, identifiquei várias distribuidoras que atuam no atacado e cheguei a alguns representantes delas no Rio de Janeiro, que me ajudaram a entender a rotina dos mascates. Compreendi a razão do predomínio dos nordestinos: por ser uma relação comercial baseada na confiança, só se consegue entrar neste mercado por indicação. Assim, um conterrâneo apadrinha o outro.

O aspirante precisa pagar a primeira compra à vista, ou ser indicado por um vendedor conhecido da empresa que assuma a responsabilidade de pagamento no lugar dele. O representante comercial entrega as mercadorias nas casas dos mascates e estes, dependendo da capacidade financeira, percorrem as ruas de carros, motos ou a pé. A partir da segunda compra, algumas distribuidoras admitem financiar os vendedores de rua. Outras exigem mais prazo.

Um dos intermediários na relação entre o mascate e o distribuidor, que se identifica pela internet como Mazinho, me deu uma aula, por telefone, de como se iniciar neste negócio. A orientação é começar pelos produtos de maior aceitação (toalhas e roupas de cama) e só vender para pessoas conhecidas. O mais importante, segundo ele, é colocar uma margem de 200% sobre o preço de compra. “Assim, se um cliente der o calote, os outros pagarão por ele. Infelizmente, a vida é cruel assim”, disse-me, acreditando que falava com uma mãe preocupada em encontrar um trabalho para o filho. Se o mascate for esperto e tiver tino comercial, segundo Mazinho, consegue até enriquecer.

Há exemplos que comprovam a tese dele. O casal de cearenses Luiz Ribamar e Maria Adaelta Gomes Pereira – ela nascida no Crato, e ele em Farias Brito – se conheceram no estado do Rio, no final da década de 80, quando vendiam produtos de cama, mesa e banho de porta em porta na cidade de São Gonçalo, na região metropolitana de Niterói. Hoje empregam cem funcionários como proprietários da Distribuidora Roamar.

Outra conhecida empresa atacadista é a distribuidora Arrais Almeida, com sede em São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos, e atuação em onze estados. Ela pertence ao ex-mascate Francisco Evandro Arrais de Almeida, cearense, que migrou para o Rio na adolescência e vendeu produtos de porta em porta dos 17 aos 35 anos. O pai dele, assim como o do jovem personagem Antônio, lhe ensinou os meandros do ofício.

Evandro Arrais nunca perdeu o elo com seu estado de origem. Em 2016, elegeu-se prefeito de Antonina do Norte, sua cidade natal, pelo Solidariedade. Desde então, passa vinte dias por mês na prefeitura e o restante no escritório da empresa, no estado do Rio.

A distribuidora Arrais nasceu em São Gonçalo, mas a violência urbana a empurrou para São Pedro da Aldeia. A violência do Rio também assusta o jovem mascate Antônio Marciano, que planeja voltar para o Ceará no ano que vem.

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