ILUSTRAÇÃO_ANDRÉS SANDOVAL_2018
Depois do fogo
Um museu de história natural reconstrói seu acervo
Leonardo Blecher | Edição 145, Outubro 2018
Quando Liliana Póvoas chegou ao museu, a água usada pelos bombeiros para controlar as chamas ainda escorria, quente e escura, pelas paredes. Os corredores em estilo neoclássico estavam em escombros; as salas de exposição, atulhadas de cinzas de animais empalhados. Com sua estrutura em madeira, o edifício do século XIX escondia um emaranhado de fios que testemunharam décadas de gambiarras elétricas, mas não foram contemplados por nenhum sistema de prevenção contra incêndios. “O fogo foi potencializado pelos frascos de álcool e formol que guardavam os peixes e anfíbios”, contou a geóloga. No dia seguinte, ao noticiar o acidente, a imprensa lamentou o enorme prejuízo para o patrimônio científico e cultural nacional: com o desbaratamento das coleções, o país ficava mais pobre.
Não, esse incêndio não ocorreu no Rio de Janeiro – teve lugar em Lisboa, em 1978. A instituição devastada pelas labaredas era o Museu Nacional de História Natural de Portugal, sediado nas dependências da Faculdade de Ciências de Lisboa.
O fogo havia começado na madrugada do dia 18 de março, um sábado. Póvoas, uma jovem técnica do museu, dirigiu-se ao local horas depois e deparou-se com as chamas já controladas. A funcionária juntou-se ao esforço dos colegas para salvar as peças passíveis de resgate, que foram levadas de mão em mão até o exterior do edifício.
Dali em diante, aos funcionários do museu só cabia tentar recuperar os espécimes que haviam resistido. À medida que eram pescadas dos destroços, as peças eram secas numa estufa e classificadas em suas coleções de origem. “Os dias e meses que se seguiram foram a escavar no meio da cinza, de uma forma organizada, como se fosse uma escavação arqueológica e tentando não perder nada, tabuleiro a tabuleiro, gaveta a gaveta”, disse Póvoas.
A primeira medida da geóloga foi reorganizar os 5 mil espécimes da coleção mineralógica que haviam sido salvos – outros 10 mil sucumbiram ao fogo. Quarenta anos depois, o trabalho de reestruturação do acervo ainda não acabou. Há três anos Póvoas coordena a catalogação de fósseis resgatados dos escombros – uma coleção com 7 589 espécimes pertencentes a invertebrados marinhos, incluindo amonites, um grupo de moluscos que se extinguiu junto com os dinossauros, há cerca de 65 milhões de anos.
A geóloga trabalha numa sala ampla no subsolo do edifício, num dos laboratórios de acesso restrito ao público. A classificação das peças é feita a partir de um catálogo do século XIX, encontrado num arquivo morto que se safou do fogo. Trata-se de um exercício de paciência que consiste em decifrar o que está escrito em cada etiqueta chamuscada e desbotada pela água, comparar com o antigo manuscrito e preencher uma planilha com a classificação científica do item e o local onde foi coletado. Uma especialista em papel queimado separa as etiquetas ilegíveis para posterior restauração.
Restam ainda muitas outras coleções de fósseis, rochas e minerais à espera de catalogação. “Isso é um trabalho multidisciplinar e prolongado no tempo, pois somos muito poucos e cada dia menos”, disse Póvoas, que divide a tarefa com apenas um colega. A geóloga se tornou pesquisadora da instituição nos anos 80 e se aposentou em 2013, mas continua trabalhando como curadora voluntária de geologia. Aos 70, não cogita deixar de frequentar o imponente edifício no bairro lisboeta do Príncipe Real. “Depois de 42 anos de casa, uma pessoa acaba por vestir a camisola”, brincou.
O incêndio não poupou sequer um roedor para contar a história do acervo, que antes abrigava centenas de animais capturados em Portugal e nas antigas colônias. Estavam lá, por exemplo, espécimes brasileiros enviados à metrópole em 1792 pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, em suas expedições às capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, todas registradas no livro Viagem Philosophica. Pirarucus e outros animais trazidos por Ferreira arderam no sinistro de 1978, junto com máscaras e armamentos de povos indígenas já dizimados. Em meio ao fogo, alguém teve a ideia de atirar pela janela do prédio os originais com relatos e ilustrações produzidos durante as expedições.
As chamas atingiram as seções de zoologia, antropologia, geologia e mineralogia. A tragédia só não foi maior porque os bombeiros conseguiram proteger o gabinete de química que abrigava reagentes capazes de provocar uma explosão de grandes proporções. Ainda é possível ver as marcas de labaredas superficiais que atingiram o Laboratorio Chimico anexo ao anfiteatro oitocentista, a única estrutura que permaneceu inalterada desde então.
O visitante não encontrará hoje muitos sinais do incêndio que quase levou o prédio abaixo quatro décadas atrás. O saguão de entrada é vigiado por um enorme rinoceronte africano taxidermizado, incorporado à coleção três anos atrás. Os corredores de paredes recobertas de azulejos portugueses estão repletos de estantes com rochas, minerais, plantas, sementes, fósseis e animais encontrados na Europa – depois da tragédia, o museu abriu mão de arregimentar amostras encontradas nas antigas colônias de Portugal.
Reunir coleções de história natural não é mais tão fácil quanto na época de fundação da instituição. Para construir seu novo acervo, o museu conta com doações particulares ou institucionais, ou com a sorte de algum pesquisador encontrar um animal morto em bom estado. No final de setembro, os dois taxidermistas da casa começavam a trabalhar em um golfinho coletado numa praia na freguesia de Colares. Meses antes, haviam terminado a preparação de uma baleia de 10 metros apanhada já em estado de putrefação, mas rara demais para ser desperdiçada.
Liliana Póvoas se emocionou ao ver as dramáticas imagens do Museu Nacional do Rio de Janeiro no começo de setembro. “Chorei a cada noticiário que vi naquele dia.” A geóloga se impressionou com a semelhança dos dois incêndios. Como o museu de Lisboa, a instituição carioca havia sido criada para satisfazer a avidez da família real portuguesa pelo conhecimento histórico e científico. “São dois museus nascidos dos mesmos pais”, disse a pesquisadora. “Têm qualquer coisa de irmãos.”
Póvoas tinha visitado o Museu Nacional em 1990, numa viagem ao Rio. Ela se apressou em mandar mensagens de apoio aos colegas brasileiros, além de algumas orientações para o início das buscas sob os destroços. Ressaltou a importância de técnicos qualificados para realizar a operação. “Um bombeiro que nunca viu as peças pode confundir um fóssil valioso com um escombro comum”, argumentou.
Marta Lourenço, subdiretora do Museu Nacional de História Natural de Lisboa, conjecturou que os pesquisadores brasileiros talvez tenham surpresas quando tiverem acesso ao que foi possível resgatar. “Há muita coisa que vão poder reconstituir”, afirmou. “Mas vai demorar imenso.”