Com o pensamento voltado para o futuro do Brasil uma vez eleito o novo presidente, 22 de Julho faz pensar em uma série de possíveis diferenças e semelhanças entre o atentado de 2011 na Noruega e o cenário político brasileiro
22 de Julho – lutar por democracia e para sobreviver
Filme sobre os atentados de 2011 na Noruega traz elementos equiparáveis ao cenário político brasileiro
O filme 22 de Julho, visto nestes dias que antecedem o segundo turno da eleição presidencial, deve suscitar paralelos inesperados.
Disponível há duas semanas na Netflix, o filme escrito e dirigido por Paul Greengrass, baseado no livro Um de Nós (Editora Record, 2016), da jornalista Åsne Seierstad, relata os atentados ocorridos na Noruega em 22 de julho de 2011. Nos dois ataques terroristas desse dia, 77 pessoas foram assassinadas – a maioria jovens participantes do acampamento de verão promovido pelo Partido Trabalhista Norueguês (PTN) –, e houve ainda centenas de feridos.
Com o pensamento voltado para o futuro do Brasil uma vez eleito o novo presidente, 22 de Julho faz pensar em uma série de possíveis diferenças e semelhanças entre (1) nosso ex-presidente preso em Curitiba e Jens Stoltenberg, primeiro-ministro da Noruega na época dos atentados; (2) o provável futuro presidente da República, seu agressor com uma facada e Anders Behring Breivik, autor dos ataques em Oslo e na ilha de Utøya; (3) a polícia norueguesa e a brasileira; (4) o sistema judiciário da Noruega e o do Brasil. Sem esquecer (5) as inúmeras distinções entre o filme de Greengrass e o cinema brasileiro.
O primeiro-ministro Stoltenberg assumiu a responsabilidade final pelo despreparo do país frente aos atentados terroristas, indicado nas conclusões do Relatório Gjørv elaborado pela comissão parlamentar 22 de julho. Entre outras falhas, foi considerado que o ataque ao complexo governamental, em Oslo, poderia ter sido evitado; a capacidade das autoridades de proteger as pessoas no acampamento, em Utøya, foi insuficiente; uma operação policial mais rápida teria sido possível; o agressor poderia ter sido detido antes do que foi; e deveriam ter sido implementadas, em 22 de julho, maiores medidas de preparação e segurança para impedir novos ataques e atenuar seus efeitos adversos.
Um jornal norueguês avaliou o Relatório Gjørv como sendo “o mais duro veredito contra um gabinete desde que a Comissão de 1945” considerou o então primeiro-ministro Johan Nygaardsvold responsável pela falta de preparo para enfrentar a invasão alemã e a ocupação subsequente do país.
Ao longo de sua carreira, Stoltenberg se envolveu em fatos controversos: em 2001, bateu o carro de propriedade do PTN que dirigia em outro estacionado e abandonou o local do acidente sem se identificar; em 2009, matou a tiro, durante uma caçada, uma rena do rebanho manso de propriedade de lapões e foi acusado de ter “causado sofrimento desnecessário à rena”; em 2011, depois de destinar 150 milhões de kroner (cerca de 18 milhões de dólares) à Fundação das Nações Unidas, recebeu um prêmio da mesma fundação por excelente liderança global. Nesse mesmo ano, recebeu de presente do PTN um barco de 380,000 kroner (em torno de 46 mil dólares). Os presenteadores pagaram também o imposto devido, o que suscitou críticas adicionais.
Apesar desses percalços, tendo assumido a responsabilidade final pela incapacidade do país para fazer frente aos ataques terroristas de 2011, Stoltenberg continuou primeiro-ministro da Noruega até outubro de 2013, completando oito anos no cargo que já exercera antes, por um ano e meio, entre 2000 e 2001. Preservou também seu prestígio internacional e, desde 2014, é secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), após ter sido, quando jovem, membro do grupo marxista-leninista Juventude Vermelha, além de ministro da Indústria e Energia, e das Finanças, entre 1993 e 1997.
Nosso ex-presidente, de seu lado, nunca assumiu qualquer responsabilidade pela corrupção disseminada em seus governos, nem fez autocrítica de sua própria atuação política e de seu partido. Só o tempo dirá se o futuro guarda alguma posição de destaque no cenário político internacional para Lula equivalente à de Stoltenberg.
Na essência, a matriz do ideário anti-democrático do autor dos ataques terroristas na Noruega é a mesma do nosso provável futuro presidente, baseada em concepções neonazistas, fascistas, direitistas, nacionalistas, anticomunistas, xenófobas etc. A única originalidade a reivindicar, entre nós, é o capitão reformado ter sido ele mesmo, simultaneamente, a maior vítima e o principal beneficiário de suas próprias ideias.
O braço de Adelio Bispo de Oliveira nada mais fez do que materializar a violência retórica do candidato, em nome do mesmo Deus que o provável futuro presidente invoca ao encerrar seus pronunciamentos. Ele foi ferido com ferro depois de, contínua e reiteradamente, ferir com palavras. Oliveira, versão aparentemente insana de Anders Behring Breivik, é o duplo de Bolsonaro capaz de tomar ao pé da letra as bravatas do capitão reformado.
Assistindo a 22 de Julho, é difícil ficar indiferentes ao modo civil de Breivik ser tratado quando é preso pela polícia e, depois, quando está na prisão. Como deixar de ficar surpresos diante das boas condições do cárcere onde ele é detido; do funcionamento rápido e eficaz do sistema judiciário; e, sobretudo, da maneira irretocável de serem respeitados os direitos do assassino confesso de 77 pessoas.
A violência da nossa polícia; a degradação a que detidos são submetidos, entre nós, no sistema carcerário; a lentidão e ineficiência da Justiça; e, de modo geral, o desrespeito aos direitos humanos, ficam ainda mais chocantes diante das condições que, a julgar pelo filme, prevalecem na Noruega.
A filmografia de Greengrass, como roteirista e diretor, inclui em destaque Domingo Sangrento (2002), que recebeu o Urso de Ouro, principal prêmio do 52º Festival de Berlim. O filme trata da luta por direitos civis na Irlanda do Norte e da manifestação de protesto reprimida a tiros por tropas britânicas, em 30 de janeiro de 1972, na qual houve 14 mortos e 13 feridos. Greengrass dirigiu também três filmes da série na qual Jason Bourne, ex-agente da CIA, é o protagonista.
Reconhecido por seu chamado estilo documental, com uso frequente de câmera na mão em filmes baseados em fatos reais, Greengrass veio a se tornar um midas da indústria – oito dos seus filmes, feitos entre 1998 e 2016, renderam 939.059.800 milhões de dólares (valor corrigido pela inflação), sendo cerca de 736 milhões dessa receita resultantes dos três filmes de Jason Bourne.
Essas credenciais de competência comercial não impediram 22 de Julho de estrear, em setembro passado, no 75º Festival de Veneza, onde Greengrass declarou, em entrevista ao site deadline.com, que “obviamente, esses filmes [como 22 de Julho] não são feitos para entreter. Você os faz por que é o que está acontecendo no mundo e é apropriado para mim, de tempos em tempos, levando em conta minha formação no mundo real e envolvido nele – é parte da maravilhosa missão do cinema.”
É o caso de perguntar: o que foi feito, no Brasil, dessa “maravilhosa missão do cinema”? Aonde estão nossos realizadores que acreditam, como Greengrass, que “parte de sua ampla missão é de tempos em tempos olhar e ver o que está ocorrendo e aí trata-se de saber se conseguem encontrar um momento em um mundo caleidoscópico supervoado. Se são capazes de identificar momentos que verdadeiramente podem lhes dar o DNA dos tempos e o que pensaram sobre isso. Eu senti que 22 de Julho trata de alguns desses temas cruciais que estão em jogo, sendo também uma grande história humana, por que eu não faria um filme que fosse niilista. O que eu amo no filme é ser sobre pessoas que lutam por democracia, que lutam para sobreviver e é isso que vamos precisar fazer.” (A entrevista completa de Greengrass está disponível aqui).
Lutar por democracia e para sobreviver. Olha aí outra semelhança insuspeitada entre 22 de Julho [de 2011], na Noruega, e o pós-28 de outubro [de 2018], no Brasil.
Para gratificar o espectador, Greengrass encerra o julgamento de Breivik com as palavras ditas a ele por Viljar Hanssen (Jonas Strand Gravli), uma das vítimas do atentado na ilha de Utøya. Cego de um olho, com fragmentos de bala que podem matá-lo alojados na sua cabeça e cicatrizes pelo corpo, tendo perdido seus dois melhores amigos no atentado, Hanssen diz a Breivik: “Eu ainda tenho esperança, sonhos, família e amigos. E eu escolho viver.”
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