Passados seis anos da poda, a árvore está novamente frondosa. Sempre que uma tempestade assola o Rio, algum morador publica uma foto nova do assacu no Facebook CRÉDITO: MARCOS MICHAEL_2019
No meio do caminho tinha um assacu
A longa batalha jurídica para salvar uma árvore amazônica em Copacabana
Roberto Kaz | Edição 153, Junho 2019
Luis Claudio Leivas, procurador regional da República, caminhava pela rua Pompeu Loureiro, uma via larga e algo movimentada em Copacabana, quando presenciou um tumulto seis anos atrás. No alto de um guindaste, a cerca de 20 metros do chão, funcionários da Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) mutilavam uma árvore usando serras elétricas. Em baixo, na rua coberta de folhas, flores, galhos e grossos pedaços de tronco, dezenas de moradores tentavam impedir o corte. “Eram umas onze da manhã”, lembrou o procurador, numa conversa recente em seu gabinete no Centro do Rio, repleto de processos, miniaturas de trem e soldadinhos de chumbo. “As pessoas estavam a ponto de agredir os funcionários.”
Preocupado, Leivas aproximou-se do responsável pela operação, o gerente da Comlurb Marco Antonio Marques, e pediu para ver o documento que autorizava o corte. “Ele se recusou a me mostrar. Tive que apresentar minha carteira [de procurador] e avisar: ‘Vai mostrar, sim.’” A primeira página do laudo dizia que o estado fitossanitário da árvore – um assacu de origem amazônica medindo mais de 30 metros – era “aparentemente bom”. Ainda assim, recomendava a remoção. Não era possível identificar o nome do engenheiro florestal que o havia assinado nem o motivo do corte, já que o laudo apresentado não estava completo.
“Olhei para a árvore, e ela olhou para mim”, contou o procurador. “Então pensei: ‘Preciso de alguém que nos ajude.’” Minutos depois, surgiu uma patrulha da Polícia Militar, que tentou acalmar a algazarra. “O policial perguntou se alguém gostaria de prestar queixa.” Leivas se prontificou a fazer isso e rumou para a delegacia, dentro da viatura, com mais duas pessoas. Lá explicou que a árvore havia sido tombada pela prefeitura em 2006 – o que impedia o corte –, e registrou “seu protesto contra a atividade da Comlurb e da Fundação Parques e Jardins [FPJ, a autarquia municipal responsável pela emissão do laudo] por não efetivar uma prévia conscientização da população, com absoluta transparência, para evitar conflitos”.
Às três da tarde daquele domingo, 3 de março de 2013, quando foi expedida a ordem de interrupção, metade do assacu já estava decepada. A copa, antes frondosa, dera lugar a um tronco nu, sem galhos nem folhas, que se dividia no meio, como se fosse um estilingue gigante. “Era uma visão absurda, triste demais. Parecia que tinha sido cortado um pedaço de mim”, disse o empresário Helio Hoyer Lacerda, antigo morador da Pompeu Loureiro, que seguiu para o local tão logo soube, por intermédio de uma amiga, que a árvore estava sendo retirada. “Ali mesmo já começamos a falar em processar a prefeitura.”
Uma semana depois, um pequeno grupo de moradores se reuniram num apartamento de um prédio vizinho à árvore. Decidiram levar adiante a ação, contanto que alguém se dispusesse a assumir a autoria do caso. “Um não podia porque era funcionário público, outro não podia porque não podia, e um terceiro não podia porque também não podia”, enumerou Lacerda. “Então eu encarei, meti o peito. E em nenhum momento me arrependi.” No dia 10 de março, ele escreveu um e-mail à Secretaria Municipal do Meio Ambiente e à Fundação Parques e Jardins avisando que seu grupo iria “às barras do Ministério Público para responsabilizar criminalmente as pessoas que ordenaram e executaram essa barbaridade sem precedente”. No fim daquele mês, a ação foi ajuizada, junto com um pedido de liminar contra o corte, na 9ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro.
O processo de Lacerda contra a Comlurb, a Fundação Parques e Jardins e a Prefeitura do Rio é um calhamaço de 3 mil páginas que tramita há seis anos em tribunais de primeira e segunda instância. O texto inicial explica que o assacu da Pompeu Loureiro integra o Conjunto Extraordinário de Árvores da Cidade – algo como a Academia Brasileira de Letras, em versão vegetal – e que a tentativa de removê-lo “dilacerou o meio ambiente e os patrimônios público, histórico e cultural”, além de provocar um “abalo emocional” em quem tentou salvá-lo. Enfatiza que não há “nenhum laudo – NENHUM!” que tenha atestado alguma doença na árvore, e pede, por isso, que o poder público seja impedido de cortá-la. Em abril de 2013 – uma semana após o ajuizamento da ação –, o juiz Afonso Henrique Ferreira Barbosa deferiu uma liminar proibindo a remoção. Em dezembro de 2018, a juíza Cristiana Aparecida de Souza Santos proferiu a sentença, protegendo a árvore e condenando os réus ao pagamento dos custos processuais. O caso tramita agora em segunda instância.
O assacu é uma árvore amazônica de folha leitosa que tem parentesco com a seringueira e a mandioca. Costuma crescer muito – chega a 50 metros de altura – e rápido, o que torna sua madeira pouco densa, útil apenas para a produção de palitos, caixas e compensados. Sua flor masculina, branca e um pouco carnuda, serve de alimento para morcegos, que se lambuzam de pólen durante o banquete. “Depois, quando eles voam, acabam espalhando o pólen pelas flores femininas, que têm a cor vinho”, explicou a bióloga Inês Cordeiro, do Instituto de Botânica de São Paulo. Da fertilização nasce um fruto seco e arredondado, similar a uma moranga, que explode no alto da árvore, jogando as sementes a até 100 metros de distância. “Essa explosão tem um som crepitante. Por isso Lineu deu à árvore o nome científico de Hura crepitans”, continuou Cordeiro, referindo-se ao naturalista sueco Carlos Lineu, que classificou a árvore em 1753. Já o nome popular, diz a lenda, teria surgido em função do efeito laxante da seiva – que é tóxica.
Embora seja uma árvore típica do Norte – e também do Peru, da Colômbia e de outros países por onde se espraia a floresta amazônica –, o assacu se adapta bem ao clima do Sudeste. “Ele gosta de calor e umidade”, contou Cordeiro. “Por isso não teve dificuldade em crescer no Rio de Janeiro.” Ela acredita que o exemplar de Copacabana tenha sido plantado em algum momento logo depois de 1918, quando o naturalista de origem austro-húngara Adolpho Ducke deixou o Museu Paraense de História Natural e Etnografia (hoje Museu Paraense Emilio Goeldi), onde havia trabalhado por quase vinte anos, para passar uma temporada no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Como Ducke catalogou novecentas espécies de planta na Amazônia, é de se esperar que tenha trazido sementes e mudas na bagagem (outra possibilidade é que elas tenham sido plantadas pelo agrônomo francês Auguste Glaziou, contratado por d. Pedro II em 1858 para cuidar dos jardins da cidade).
Hoje, o Rio tem exemplares de assacu no Horto Botânico da Quinta da Boa Vista – onde fica o que restou do Museu Nacional – e no Jardim Botânico. O da Pompeu Loureiro é o único a estar enfronhado na malha urbana. Seu tronco, de 1,5 metro de diâmetro, precisa de quatro pessoas para ser abraçado.
O entrevero que quase matou o assacu de Copacabana começou dezesseis anos atrás, em 25 de fevereiro de 2003, quando o então síndico do edifício Bandeirante João do Prado, Roberto Weissman, enviou uma carta à Fundação Parques e Jardins avisando que as raízes estavam “forçando toda a frente da garagem, entortando vidros que podem, a qualquer hora, quebrar”. A fundação pediu um laudo ao engenheiro florestal Luiz Guilherme Menescal, que fotografou a árvore e recomendou apenas uma poda.
Um ano depois, o síndico voltou a escrever, para informar que sua profecia não era infundada: “Infelizmente, no dia 20 de agosto de 2004, sexta-feira, por volta das 23 horas, aquilo que se previa ocorreu. Um dos vidros da fachada da garagem estourou. Por sorte não houve danos pessoais nem nenhum carro foi afetado.” Explicou que outros vidros estavam “na iminência de quebrar” e pediu “encarecidamente” que medidas corretivas fossem tomadas: “Não podemos ficar contando com a sorte para que nada de grave aconteça.” Não teve resposta.
Em 2006, o assacu ganhou uma chancela pública de peso, quando o então prefeito Cesar Maia assinou um decreto tombando-o, junto com 207 tamarineiras, 52 palmeiras-imperiais e 48 casuarinas. A reportagem sobre o tombamento, publicada no jornal O Globo, trazia uma imagem do assacu e informava que, a partir daquele momento, nenhuma obra de concessionária pública, como empresas de luz e gás, poderia ser feita no entorno da árvore, para não danificar as raízes.
Também naquele ano, a prefeitura e a Fundação Parques e Jardins prestaram uma homenagem aos descendentes do comerciante Otto Schuback, primeiro proprietário do terreno onde foi plantada a árvore (ao vender sua casa, em 1932, Schuback fez constar, em cartório, que o comprador – um empresário chamado Werner Krause – se comprometia a “não fazer qualquer construção” no restante do terreno, “aplicando o mesmo unicamente para jardim”). Em 2008, a prefeitura instalou uma placa ao lado da árvore que lembrava a dedicação de Schuback ao “belíssimo e imponente exemplar arbóreo, presenteando o bairro de Copacabana”.
Com a interdição do corte, o assacu e o edifício Bandeirante João do Prado atravessaram um período de armistício, que durou até setembro de 2012, quando o novo síndico, Ítalo Siqueira, escreveu mais um e-mail, dessa vez à Comlurb (a Fundação Parques e Jardins decide que árvores serão cortadas, ao passo que a Comlurb executa os cortes): “O que vem acontecendo com essa árvore nos causa muita preocupação, pois ela está com uma movimentação de solo muito rápida e vem causando alguns danos à nossa fachada.” Explicou que, além de ter rompido os vidros da garagem – que haviam sido retirados –, o assacu também abrira uma fenda numa viga de aço (não mencionou que a viga, horizontal, não servia à sustentação do edifício – era apenas um reforço na mureta de alvenaria). “Chegamos a pensar que a árvore possa estar se inclinando em direção à rua, com sérios riscos à população.”
A Comlurb realizou uma poda emergencial e contatou a Fundação Parques e Jardins, pedindo que o assacu fosse mais uma vez vistoriado – responsabilidade delegada, novamente, a Menescal, que havia votado pela preservação nove anos antes. Num relatório de cinco páginas, o engenheiro florestal afirmou que a árvore estava de fato mais inclinada, “por ocasião de fortes ventos e chuvas”; que a mureta do canteiro que a circunda apresentava “deslocamento de 10 centímetros em relação ao piso da calçada”; e que a altura “inviabilizava alternativa de redução da copa”. Escreveu que o estado de saúde da planta era “aparentemente bom”, mas, ainda assim, achou prudente sugerir o corte total: “Salvo melhor juízo, opino pela remoção do exemplar de Hura crepitans, como medida preventiva, face o grande potencial de risco já instalado.”
Num e-mail enviado cinco dias depois ao síndico do prédio, o então diretor de Arborização da Fundação Parques e Jardins, Flávio Telles, explicou que, pela beleza, pela antiguidade e pelo status da árvore, precisaria propor uma solução que contemplasse tanto os moradores do edifício quanto os da cidade: “Já ouvi, inclusive de moradores, que a prefeitura deveria escorar o vegetal por conta de ele ser histórico no bairro.” O caso foi cozido em fogo baixo por mais cinco meses, até 26 de fevereiro de 2013, quando Telles anunciou, em um novo e-mail, que a árvore seria cortada:
Prezados,
Após pesquisa e intensa conversa entre os técnicos da FPJ que estiveram no local, consideramos: a antiguidade do vegetal, a importância dele em si e para o bairro, as várias intervenções que passaram pela Secretaria de Conservação neste trecho da rua, as alternativas de engenharia para manter vegetais existentes em outras partes do mundo, a possibilidade de realização de uma poda drástica que descaracterizaria o mesmo, os danos ao prédio e por fim os possíveis riscos sobre pessoas, veículos e outros prédios que pudessem ser afetados caso o vegetal viesse a cair. Após toda essa análise não podemos afirmar com a experiência que possuímos se o vegetal está seguro ou não, até porque o mesmo forneceu indícios de que se moveu. Por tudo isso exposto é que o grupo fez a opção pela remoção.
Ao saber da decisão, Siqueira achou por bem pensar no futuro. “Sei que ouviremos várias reclamações, mas, infelizmente, o vegetal está nos trazendo mais preocupações do que alegrias”, respondeu por e-mail à Fundação Parque e Jardins, antes de perguntar: “Seria já a hora de pensarmos em plantar outra espécie no mesmo local?” Em seguida, avisou aos condôminos que haveria uma grande poda – ou seja, não contou que a árvore seria totalmente retirada. “Até a última hora eu não aceitava que esses caras iam cortar esse troço”, justificou, ao jornal O Globo, numa entrevista dada logo após o corte, em 2013. “Com a árvore, o condomínio ganha muito mais do que sem ela.” Apesar de o assacu viver no passeio público, nenhum outro morador da rua Pompeu Loureiro foi avisado.
Helio Hoyer de Lacerda é um homem de 62 anos, de fala firme, que não tinha um histórico de ativismo até defender judicialmente o assacu. “Eu nasci e fui criado na Pompeu Loureiro”, afirmou o empresário. “É o prédio ao lado da árvore. Naquela época, ela ficava dentro do muro de uma casa, que tinha uns cachorros bravos, mas já fazia sombra pra todo mundo. Minha avó, que também morava na rua, declamava poesia pra ela.” Em 1963, a prefeitura inaugurou o túnel Major Rubens Vaz, que transformou a Pompeu Loureiro – até então bucólica e sem saída – numa via de ligação com a Lagoa Rodrigo de Freitas (antes disso, a rua terminava no sopé de um morro; quando criança, Lacerda jogava futebol no meio da via).
O fluxo de carros modificou a paisagem urbana: o jogo de bola deu lugar a carros e ônibus, e as casas foram trocadas por edifícios altos. Em 1972, o Jornal do Brasil noticiou que os bombeiros precisaram podar o assacu porque “os galhos começaram a invadir os apartamentos” de três prédios erguidos na quadra em frente (o texto dizia que alguns moradores chegaram a reclamar, sem sucesso, e que, “em nome do progresso, a árvore foi ficando fininha e inofensiva”). Em 1975, a casa de Werner Krause – onde residia a árvore – foi derrubada, junto com o muro, para dar lugar a um prédio de dezessete andares.
De início, a construção do edifício Bandeirante João do Prado representou certa “alforria” do assacu, que deixou a vida intramuros do jardim para viver de forma pública, na calçada, pois o projeto de alinhamento aprovado pela prefeitura impôs que o prédio fosse mais recuado que a casa. A árvore perdeu o verde que a circundava, mas ganhou o olhar vigilante dos moradores do bairro. “Naquela época não havia essa consciência ambiental que existe hoje”, disse o arquiteto do edifício, Henrique Farhi. “E, mesmo assim, já tinha morador defendendo aquela árvore, tanto que a prefeitura obrigou a modificar o projeto.” Em setembro de 1977, o jornal O Globo publicou uma nota na coluna Carlos Swann sobre o salvamento “da árvore mais antiga” de Copacabana (ali chamada, erroneamente, de pau-d’alho): “A árvore seria sacrificada em favor de um edifício de apartamentos, ora em fase de conclusão, mas decidiu-se recuar de muitos metros o alinhamento do prédio, com o projeto já aprovado. A árvore ficou um tanto espremida, mas ficou de pé. Já é alguma coisa.”
Com o passar dos anos, a vizinhança com o edifício acabou gerando um efeito colateral. Como as plantas buscam o sol, a árvore deixou de crescer de forma reta – qual ocorria quando era cercada de casas –, curvando-se na direção da rua, onde a luz incidia por mais tempo. A raiz precisou se fortalecer para servir de contrapeso, o que acabou por elevar o piso de uma parte pequena da garagem e produziu a fenda na viga – um “processo natural e necessário na convivência do homem com a natureza”, como escreveu Lacerda.
“Com certeza já gastei dinheiro meu nesse processo”, disse o empresário, que hoje divide um apartamento com a mãe no Recreio dos Bandeirantes, bairro que, de carro, fica a uma hora de Copacabana. “Mas deve ter sido pouca coisa. Os advogados não estão cobrando. E a gente faz festa e passeata pra arrecadar fundos pra árvore.” Todo dia 3 de março – data da tentativa de remoção –, Lacerda e um grupo de pessoas se reúnem diante do assacu para homenageá-lo. Colocam faixas ao redor do tronco (“Salve o assacu”), vestem a mesma camiseta (“Pimenta no assacu dos outros”, diz a frase estampada) e fazem um batuque, acompanhados de músicos e passistas da Portela. “Essa árvore passou incólume pelas mudanças na cidade e pela construção da casa e do prédio”, defendeu (na foto mais antiga do assacu, de 1930, a esposa e uma filha de Otto Schuback estão sentadas perto da árvore, numa cadeira de balanço). “Ela merece continuar lá.”
Em termos gerais, a ação em defesa do assacu pode ser resumida da seguinte forma: a árvore estava saudável; se estava saudável, qual era a chance real de provocar um desastre? “Ninguém é contra remover uma árvore que corre risco de cair, mas isso nunca foi provado tecnicamente”, afirmou a zoóloga Débora Pires, de 61 anos, pesquisadora do Museu Nacional. “A questão é que a cidade foi crescendo, e as árvores viraram um estorvo para os prédios, porque soltam folhas e atrapalham as garagens.”
Pires morou na Pompeu Loureiro por quase três décadas. Ao saber do corte, naquela manhã de 2013, dirigiu por meia hora de sua casa, no Alto da Boa Vista, até a rua em Copacabana. Também ligou para a filha, que estava mais próxima do local. “Mandei ela correr para lá e entrar debaixo da árvore, pra ver se os caras paravam.” Em paralelo, seu marido foi à delegacia junto com Luis Claudio Leivas, o procurador que conseguiu a ordem de interrupção (meses depois Leivas ainda faria o Ministério Público Federal ingressar no caso como amicus curiae – “amigo da corte”, em latim, expressão para descrever uma instituição ou pessoa que fornece dados adicionais ao juiz sobre o caso).
Hoje, Pires está sempre com um anel de prata gravado com a imagem do assacu. “É o anel da irmandade”, explicou. Sua irmã Danusa, que ainda mora na rua, tatuou a árvore no ombro direito. “E ela tem uma muda de assacu em casa.” As duas fazem parte do grupo de dez pessoas que apoia Lacerda no andamento do processo. Em abril de 2013 – duas semanas após a interposição da ação –, o grupo encomendou um laudo à Associação Profissional dos Engenheiros Florestais do Estado do Rio de Janeiro, para poder se contrapor aos argumentos apresentados pela Fundação Parques e Jardins. O documento, assinado por seis engenheiros, constatou que a altura da árvore passara de 35 metros antes do corte – o equivalente a um prédio de quase onze andares – para 14 metros na parte mais atingida; que havia sinais de infecção, possivelmente causadas por descaso em podas anteriores; que as raízes deveriam estar prejudicadas pelas tubulações subterrâneas; e que a invasão na garagem não decorria necessariamente da inclinação do assacu, e sim “da capacidade deste extraordinário vegetal, pouco a pouco, em um processo longo, lento e permanente, romper as barreiras que o mantém encurralado”. Os engenheiros atestaram que a árvore estava em boas condições fitossanitárias e que a decisão de cortá-la tinha sido “precipitada”, além de ilegal, dado que o tombamento obrigava a Fundação Parques e Jardins a avisar o Conselho Municipal do Meio Ambiente, o que não fora feito.
Começou então uma guerra de laudos. Em agosto, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente enviou para vistoriar a árvore um engenheiro agrônomo, que elogiou o trabalho de poda e disse que “não houve dano ambiental”. Em outubro, foi a vez da Comlurb produzir o próprio laudo, que defendeu a remoção, dado “o risco potencial de queda, principalmente em dias de chuvas com ventos fortes”. Houve também avaliações da Defesa Civil e do Instituto de Criminalística Carlos Éboli – órgão de perícia subordinado ao governo do estado. Ambos defenderam a permanência da árvore.
Com opiniões tão diferentes, o juiz Claudio Augusto Annuza Ferreira agendou uma audiência entre as partes, que só veio a ocorrer dali a um ano, em setembro de 2014. “Após debates sobre o caso, tornou-se inviável a conciliação”, escreveu Ferreira, num documento sucinto sobre o encontro – que serviu, ao menos, para que Lacerda e a prefeitura concordassem com a nomeação de um perito independente, que seria escolhido pelo próprio juiz.
A primeira perita a ser chamada, em novembro de 2014, foi a engenheira florestal Lais Sonkin – que recusou o convite, pois participara, no ano anterior, do grupo que emitira um laudo em favor da árvore a convite dos moradores da Pompeu Loureiro. Em abril de 2015 foi nomeado o perito Carlos Alberto Guedes da Silva – que também declinou, alegando “motivos de foro íntimo”. Em maio, foi a vez da engenheira florestal Regina Menescal Pereira da Silva, que orçou o serviço em 45 mil reais, a serem pagos pelos réus. A prefeitura fez uma contraproposta, oferecendo 20 mil reais, mas a perita considerou o valor baixo.
Em 2016, o perito Moysés Alberto Mizrahi aceitou fazer o laudo por 20 mil reais. Meses depois, avisou ao juiz que haveria um custo adicional de 16 mil reais – o que gerou nova reclamação por parte dos réus. Como houve demora na resolução, enviou uma nova carta à corte, alegando que problemas de saúde o obrigavam a desistir “de tão honroso encargo”. O perito seguinte, Fernando Cruz, nunca foi encontrado pelo oficial de Justiça. Nomeou-se então o engenheiro civil Guilherme Dias, que pediu dispensa por considerar o trabalho fora de sua alçada – motivo também alegado pelo perito Alexandre Penalber, escolhido em seguida.
A tentativa de encontrar um especialista durou quatro anos, até fevereiro de 2018, quando o juiz pediu que o Instituto Estadual do Ambiente – órgão subordinado ao governo do estado – indicasse algum perito. O engenheiro florestal José Maria Soares Filho visitou a árvore e emitiu um laudo baseado apenas em observação, atestando que não havia “risco iminente de queda do vegetal”. Lacerda tentou explicar ao juiz que um laudo consistente só poderia ser feito com a ajuda de um aparelho de tomografia, que emitiria imagens do tronco e das raízes. Flávio Telles, da Fundação Parques e Jardins, também reclamou, lembrando que uma única visita não poderia equivaler às mais de duzentas vistorias feitas por sua equipe ao longo de cinco anos.
A sentença foi proferida em dezembro último pela juíza Cristiana Aparecida de Souza Santos. No texto, de cinco páginas, ela descartou a hipótese de má-fé, mas argumentou que o caso não poderia “se eternizar nesta serventia aguardando a boa vontade das partes em realizarem o pagamento dos custos necessários à realização do estudo”. Não multou a Fundação Parques e Jardins por danos ambientais, mas a obrigou a pagar 50 mil reais de custos processuais e a zelar pela manutenção da árvore. A prefeitura recorreu da sentença.
A Fundação Parques e Jardins fica localizada numa casa de dois andares dentro do Campo de Santana – um parque tombado no Centro do Rio, repleto de gatos, cotias, pavões e espécies de figueira (ao todo, são mais de setecentas árvores). Estive lá em abril para conversar com os engenheiros florestais Flávio Telles e Alamir Baratta Junior, que passou a ocupar a Diretoria de Arborização desde o ano passado. “Já houve casos em que as pessoas abraçaram a árvore para impedir o corte, mas dessa envergadura eu nunca tinha visto”, afirmou Telles, que trabalha na fundação há mais de três décadas. Ele disse que, no espaço urbano, as raízes costumam crescer até 80 centímetros abaixo da calçada, mas tendem a ficar confinadas para os lados, em função dos limites impostos pelas várias tubulações. “Esse foi um dos principais motivos que nos deixou preocupados com o assacu.”
Telles contou que, em fevereiro de 2013 – ou seja, um mês antes da tentativa de remoção –, uma ventania derrubou várias árvores na cidade. “Uma Ficus religiosa gigantesca caiu no Largo do Machado e levou junto na queda um flamboyant e uma palmeira-imperial.” Admitiu que, ao emitir o laudo de derrubada do assacu, a Fundação Parques e Jardins não tinha (e continua a não ter) equipamento para saber se as raízes estavam bem ancoradas, tampouco um protocolo para medir o risco. “Lançamos isso dois anos atrás.” Disse ter sofrido ao chancelar a remoção. “Foi muito duro. Eu tinha participado do grupo que a tornou imune ao corte.” A entrevista foi interrompida quinze minutos depois do início pela assessora de imprensa, que acabara de receber um telefonema do atual presidente da Fundação Parques e Jardins, Roberto Rodrigues de Oliveira – um funcionário da prefeitura nomeado há pouco mais de um ano pelo prefeito Marcelo Crivella para ocupar o cargo no FPJ –, dizendo que só ele estava autorizado a ser entrevistado. “É que ele adora a revista piauí”, justificou a assessora.
Assim como a prefeitura, Lacerda não gostou da sentença de Souza Santos. Em março deste ano, impetrou um recurso pedindo que a Comlurb também fosse responsabilizada: “A derrubada de uma árvore tombada através de uma recomendação não é cumprir ordem, e sim uma tomada de decisão.” Pediu também que a Fundação Parques e Jardins fosse multada por dano ambiental, mesmo não havendo dolo: “Em não estando caracterizada a má-fé, resta ao menos a atitude culposa com previsão de punição.” Lembrou que, após o incidente, “várias tempestades, algumas com ventos de mais de 100 quilômetros por hora, assolaram a nossa cidade, derrubando centenas de árvores, mas o assacu se manteve incólume”.
Mas a queixa principal de Lacerda no recurso não é contra a prefeitura, e sim contra o edifício Bandeirante João do Prado – mais especificamente, a garagem do edifício, que ele alega ter sido construída de forma ilegal, sobre um espaço antes voltado à calçada (e, por tabela, à árvore).
O empresário recorreu a dois argumentos. O primeiro refere-se ao fato de que as pedras portuguesas da calçada avançam cerca de 1 metro para dentro da garagem. O segundo, de que o bueiro que dá acesso a uma estação subterrânea de energia da Light – a concessionária de luz do Rio – fica exatamente sob o portão, metade dentro da garagem e metade fora, na calçada (e o protocolo da Light prega que tais bueiros devem estar sempre em áreas públicas). A empresa chegou a escrever uma carta, em resposta ao procurador Leivas, dizendo que “não deu autorização à colocação de mobiliário ou qualquer construção” sobre o bueiro – o que endossa a acusação feita por Lacerda.
O argumento é contestado pela engenheira civil Regina Araújo Lauria, da Secretaria Municipal de Urbanismo, que escreveu um ofício no ano passado explicando que a garagem foi licenciada junto com o prédio – e que foi construída dentro dos limites legais. “A Light fez o bueiro depois que o prédio estava pronto”, contou-me o síndico Ítalo Siqueira, numa conversa ocorrida em maio, diante da árvore. “Eles até me enviaram uma carta pedindo desculpas pelo mal-entendido.” Ele disse que a história do assacu ainda o chateia. “Acho uma afronta quando esse pessoal vem batucar na frente do edifício, como se os moradores fossem inimigos da árvore. Nesses dias eu até saio de casa.” Depois me levou a uma área de lazer nos fundos do prédio para mostrar um abacateiro, um pau-ferro e um sapoti, todos bem cuidados. “Eu nunca pedi que o assacu fosse derrubado”, continuou. “Só estava preocupado com a segurança. Ele podia cair sobre o prédio da frente.”
Passados seis anos, a árvore está novamente frondosa, com galhos finos brotando das partes serradas. A incidência desigual do sol deixou o tronco metade com musgo, metade pelado. Na parte lisa, alguém gravou as letras A e R (um casal apaixonado?). Sempre que uma tempestade assola o Rio de Janeiro, algum morador faz questão de publicar uma foto nova, num grupo de Facebook dedicado ao assacu. A última imagem, em 6 de maio, deixou Lacerda emocionado. “Como está linda!!!”, escreveu, nos comentários.
Enquanto o recurso não é julgado, a árvore segue firme, testemunhando tudo que acontece na rua Pompeu Loureiro: o rapaz que fala ao telefone, a senhora que anda apressada com o guarda-chuva, as duas mulheres que conversam sobre licença-maternidade, a menina de cabelo louro que caminha olhando para o chão. Um cachorro da raça weimaraner tentou cheirar o tronco (mas foi impedido pelo dono). Um ônibus da linha 415 furou o sinal. Uma van estacionou em fila dupla para buscar a dona Célia, que ia ao teatro.
A viga de aço na garagem que motivou toda a história continua rachada.