CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Museu das saudades
Um espaço para a memória banal
Samária Andrade | Edição 162, Março 2020
Ao ver os visitantes se aproximando, Evonaldo Andrade corre até a vitrola três em um dos anos 1970, marca Sony, e coloca um vinil de 1983. A voz de Ney Matogrosso na música Calúnias – que fez sucesso com o verso Telma, eu não sou gay – toma conta do Museu Profª Rita Cerqueira de Andrade, em Piripiri, no interior do Piauí.
Apaixonado pelo passado, Andrade, 52 anos, se interessa em juntar coisas desde a infância. Diz que aprendeu com a mãe, professora a quem ele homenageou, dando seu nome ao local. “Ela não jogava nada no mato.” Ele também não – e segue há décadas reunindo coisas nos intervalos de seu trabalho de oficial de Justiça.
Uma parte da história de Piripiri, cidade nascida em 1910 e hoje com pouco mais de 63 mil habitantes, pode ser encontrada ali, no museu instalado em um galpão de 180 m2, com cerca de 4 mil peças, a maioria delas relacionada à vida dos moradores – das máquinas de costura aos penicos, dos fardamentos escolares às máquinas de datilografia da antiga escola profissionalizante, que preparava os alunos com o que havia de mais moderno.
No local que nasceu para guardar memórias, anônimos e famosos têm a mesma importância. Andrade chama os visitantes para olharem uma bicicleta Monark 1958 em bom estado. “Pertenceu ao seu Emídio”, conta. E completa: “Foi um pedreiro da cidade.”
Com o mesmo entusiasmo, o museólogo amador guia os curiosos entre outras relíquias, quase todas de moradores já falecidos, como a enorme banheira verde usada por um dos homens mais ricos da região, Mércio Andrade, comerciante, agropecuarista e produtor de cera de carnaúba. Os parentes estiveram prestes a jogá-la fora durante uma reforma, mas Andrade conseguiu conquistar a raridade para o seu museu.
Lá também está a única sanfona que seu Raimundo Custódio teve na vida: uma Scandalli vermelha de oitenta baixos. Foi com ela que o mais conhecido sanfoneiro das redondezas criou a banda musical RC-6 (com as suas iniciais) e sustentou a família.
Outra curiosidade são os alicates de um dentista prático (não diplomado) que andou pela cidade na década de 1980. O homem estava a serviço de um candidato a prefeito, que ofereceu o serviço de extração de dentes para tentar amealhar votos. Todo o equipamento foi apreendido pela polícia e ficou sob guarda da Justiça Eleitoral. Quando a instituição mudou de prédio, considerou que não precisaria mais preservar aquelas “provas do crime”. Já Andrade achou que o material merecia um lugar em suas estantes.
O museu foi criado em 2014, quando Andrade recebeu um ultimato de sua mulher, Doriana: não havia mais espaço em casa para tanta coisa. Ele, então, juntou todas as economias, fez um empréstimo no banco e construiu o galpão. “Eu não sou um amontoador”, ele explica. “Sou um cuidador do passado.”
Grande parte do acervo provém de doações – de gente que já não sabe o que fazer com um objeto e confia na dedicação do criador do museu de quase tudo. Outra parte ele compra ou vai recolhendo em suas andanças pelas ruas da cidade, investigando até o lixo.
Todos os objetos foram recuperados por ele, que nunca fez curso de restauração (é formado em letras), mas gosta de assistir a aulas sobre o assunto na internet. “Eu peguei quase tudo baqueado”, diz. O museu exibe as peças de maneira misturada, como se imitasse o jeito desordenado e imprevisível com que a saudade se manifesta na gente. Mas as peças estão cuidadosamente classificadas, com pequenas placas descrevendo a procedência, como em um pote de cerâmica para armazenar água: “Pertenceu ao coronel Estevão Rabelo, presidente da Câmara Municipal da Vila de Piripiri, nascido em 1845, antes de o local tornar-se cidade.” De olho em visitantes de mais longe, Andrade não se esqueceu de espalhar pelo local o aviso: Do not touch these pieces, please.
Por tudo isso, erra brutalmente aquele que, ao avistar o galpão no número 130 da Rua Dom Pedro II, pensa estar diante de uma loja de antiguidades e coisas usadas.
Andrade não tem outra pretensão que contribuir com os que desejam acessar a memória coletiva de uma cidade e de outros tempos. Assim, os objetos valem menos por si e mais como documentos do passado e estimulantes da nostalgia.
Como lembranças também não respeitam separações geográficas, ele se dá o direito de avançar a coleção para objetos encontrados em outras localidades, mas que fizeram parte das experiências de quem viveu em Piripiri entre os anos 1950 e 1980, foco temporal dominante do museu: álbuns de figurinhas Mundo Animal e Personagens da TV, tampinhas de refrigerante com personagens da Disney e com jogadores da Seleção Brasileira, coleções de embalagens de cigarro, de selos, de cartões telefônicos.
Há um bom acervo de jornalismo no museu, que abriga desde exemplares do jornal Cometa, publicado na cidade nos anos 1970, até publicações de outras partes do país, lidas com avidez pelos piripirienses, como O Cruzeiro, Fon-Fon e Manchete (não sendo um museólogo ortodoxo, Andrade permitiu-se incluir, entre as revistas antigas, uma mais recente: um exemplar da edição nº 1 da piauí, de outubro de 2006).
O museu não tem financiamento público nem cobra entrada. O próprio dono costuma receber os visitantes. Para isso, é preciso fazer um contato prévio e combinar o horário. Nos momentos em que se faz de guia, Andrade repete, com orgulho, o ritual de apresentar os objetos, esclarecer as dúvidas e trocar o vinil em algum dos aparelhos de som que funcionam perfeitamente. Assim, afasta o medo de que, no futuro, ninguém mais se importe com o passado. As relíquias, que ele diz pertencerem a todos, são seu mundo – e não o deixam em paz nem mesmo quando dorme. “Eu até sonho com esses objetos. Outro dia sonhei com uma geladeira antiga.”