ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Estamos esperando por você
Se eu chegar à terceira idade, poderei dizer: eu vi Veneza vazia
Ginevra Lamberti | Edição 163, Abril 2020
De Veneza
Tradução de Davi Pessoa
Eu o observo há anos, e ele jamais me decepcionou. Mora no prédio do outro lado do canal, e posso vê-lo de uma das janelas do meu apartamento. É um senhor idoso, que usa chapéu e fuma charuto, a quem costumo chamar de velho do terraço.
O velho do terraço é como um barômetro dos fenômenos naturais que nos cercam. Nos dias em que a temperatura está mais amena, senta-se do lado de fora para ler o jornal por horas. Quando chega o inverno, ele fica recluso, e não o vejo por meses. Foi assim que percebi como se agravou nos últimos sete anos o aquecimento global, pois o tenho visto na sacada durante nove meses, exceto quando chove. Tudo isso para dizer que a boa notícia, em termos de mudanças climáticas, é que começou a primavera no Hemisfério Norte, e o velho está no terraço. A má notícia é que ele folheia o jornal com luvas de látex.
Hoje é 22 de março, anteontem ocorreu o equinócio, e o velho saiu para celebrá-lo. Anteontem foi também o décimo dia da quarentena na Itália.
Tanto eu como o velho do terraço moramos numa cidade chamada Veneza.
Veneza não é exatamente uma cidade, é muito mais uma loucura da engenharia erguida sobre uma laguna. Moro aqui há muito tempo, e para viver (ou seja, para comer, ter um teto, não me odiar quando me olho no espelho) tenho dois trabalhos: escrevo e alugo para turistas os dois quartos extras da minha casa. O único senão é que essa não é minha casa, estou aqui de aluguel, nesse lindo apartamento que só posso pagar caso eu compartilhe o banheiro e a cozinha com 3/4 do mundo conhecido.
Aqui na cidade nunca faltaram turistas, e eles foram aumentando até atingir a cota de 30 milhões por ano, em média. A ilha é pequena, multiplicada infinitamente por ser um labirinto sem pé nem cabeça, mas, ainda assim, pequena. Os turistas eram um magma onipresente, destrutivo e, ao mesmo tempo, uma salvação para a economia de milhares de famílias.
Há sete anos que eu não passava um dia sequer sem tropeçar em algum turista na rua, nas lojas, nas pontes. Até dentro de minha casa eles me perseguiam, pedindo informações, não é preciso pagar para saber como chegar a Murano e à Praça San Marco.
Ao cabo de onze dias, os turistas se tornaram seres mitológicos, dos quais não sabemos se veremos o retorno. Dizemos a nós mesmos que sim, que tudo ficará bem, como escrevem as crianças em cartazes com um arco-íris que penduram nas janelas, e estão certas, porque esse é o tempo delas, é o arco-íris delas.
Se eu chegar à terceira idade, haverá pelo menos uma coisa que poderei dizer: eu vi Veneza vazia.
Nesses dias, acumulam-se os decretos-leis que ampliam o controle sobre nossos hábitos cotidianos. Sabemos que a economia está afundando e que muitos decretarão falência, e ainda assim, nesta cidade, a fila para entrar no supermercado exala privilégio. O acesso é regulado. Esperamos uma hora sob o sol quente na Fondamenta delle Zattere,[1] a 1 metro de distância uns dos outros, um pouco ofegantes, e por vezes viramos para observar o esplendor do Canal da Giudecca, vazio de barcos. A água imóvel reflete a imagem de um dos hotéis mais luxuosos da ilha, o Hilton Molino Stucky, agora fechado e espectral, apesar de toda sua iluminação.
Às vezes, sente-se uma tensão no ar, um homem idoso com roupas esportivas passa por nós andando velozmente. Ele sussurra que somos estúpidos por permanecer na fila daquele jeito, que nossas cabeças não servem nem de alimento para porcos. Sua mulher diz para ele ficar calado, pois podemos ouvi-lo, e eu, na verdade, não consigo mais me conter e grito com ele, mandando ele se foder.
Até o momento, os idosos são os únicos que realmente seguem andando pelas ruas. Parece impossível fazê-los parar, são os mais frágeis e, no entanto, tomam a cidade como fazem as gaivotas, os peixes e os pombos.
Por falar nisso, gostaria de dizer duas outras coisas: uma sobre minha mãe e outra sobre os pombos. Minha mãe se parece muito comigo e vive em Vittorio Veneto, uma pequena cidade em outra província. Vittorio Veneto não é como Veneza, não tem muitos motivos para ser famosa, mas é cidade-irmã de Criciúma, em Santa Catarina, por causa do grande número de imigrantes italianos, cujos descendentes ainda falam o dialeto vêneto sem jamais terem visitado a Itália. Foi o que me disseram, e achei isso muito bonito e também um pouco comovente.
Eu e minha mãe nos vemos e nos falamos com frequência. Nos últimos tempos, por razões óbvias, podemos apenas nos falar. Outro dia, por telefone, ela me contou que transformaram o hospital de Vittorio Veneto num lugar dedicado exclusivamente às pessoas com Covid-19. Se tivesse que dar uma definição de impotência, diria que sou eu sobre meu tapetinho de borracha, sobre o qual de manhã levanto peso usando dois pacotes de arroz.
A quarentena também tem o efeito de me fazer sentir uma criminosa. Não posso pagar o aluguel porque trabalhar está proibido por lei, tampouco posso ser punida, pois, como ninguém está autorizado a se mover, ninguém pode me despejar do apartamento. Não posso nem punir a mim mesma, tomar a decisão de me mudar, jogar fora sete anos de trabalho e voltar para a casa da minha mãe, porque a mudança da minha cidade para a dela também está proibida por lei.
Pelo menos podemos nos telefonar, e minha mãe me disse que nesses dias tem colhido ervas do campo que crescem na campina em volta da casa dela. Eu disse que lamentava muito, porque, se a quarentena demorar um longo tempo, não poderei comê-las. Então ela respondeu que irá congelar algumas das ervas para fazermos um risoto quando pudermos nos encontrar novamente. Depois acrescentou que, caso ela fique gravemente doente, não quer ser internada, não quer morrer sozinha em um hospital, e que devo me lembrar que ela prefere morrer sozinha em casa.
Apenas os pombos não têm esses problemas, porque podem voar para qualquer lugar e, nesses tempos, têm optado por ficar onde encontram mais comida. Como não há mais turistas nas ruas para lhes jogar as migalhas de seus sanduíches, o único restaurante aberto é meu terraço quando bato ali a toalha de mesa.
Os pombos são como periquitos, porém mais sóbrios e com um bico mais reto. Meu companheiro está sempre de olho neles e diz que vestem umas bermudas legais. Às escondidas, ele lhes oferece uns grãos de arroz.
Os pombos não controlam sua tensão indomável em relação ao futuro.
Outro dia, vi um pombo exibindo-se para uma fêmea, com um belo peito emplumado. Segurava um grande galho seco no bico. Parecia dizer a ela, olha, quando você quiser, já estou pronto para fazer um ninho. Mas ela não estava tão convencida e se afastou, de telha em telha, até que o pombo ficou sozinho com seu lindo raminho estendido e uma confiança imprudente no amanhã. Li em algum lugar que o flerte entre pombos é muito demorado e dura uma semana inteira, por fim o pombo vomita algo no bico da pomba para mostrar a ela que é capaz de alimentar os filhotes.
Queria dizer, por último, que sei que tenho sorte, pois ainda tenho um teto, comida, um companheiro de minha confiança, uma mãe para quem telefonar, uma conexão de internet e instrumentos para me conectar ao mundo.
Por outro lado, tenho um amigo que atualmente está dormindo em uma Unidade de Terapia Intensiva. Ele tem uma voz com a qual canta coisas que fazem a vida parecer melhor, também é um cara muito engraçado. Todos os dias paro por alguns minutos para respirar fundo enquanto ouço as suas canções. Mantenho os olhos fechados e repito muitas vezes, estamos esperando por você, estamos esperando por você, estamos esperando por você.
Às seis da tarde vai acontecer uma reunião de atualização sobre as medidas de proteção civil. Hoje, disseram que houve menos mortes que ontem.
Publicado sob permissão da Agência Literária MalaTesta de Milão
[1] Rua que margeia o Canal da Giudecca, no bairro Dorsoduro. (N. da T.)
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