Ilustração de Carvall
Documentos inéditos revelam outra empresa de mãe de Aécio Neves em paraíso fiscal
Defesa de Inês Maria Neves Faria confirma que ela é beneficiária de holding em Luxemburgo desde 2018, mas não diz se a operação foi declarada à Receita Federal
Esta reportagem integra o projeto Open Lux, do Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), consórcio internacional de jornalismo investigativo. O jornal francês Le Monde obteve acesso ao banco de dados oficiais do governo de Luxemburgo com documentos sobre empresas registradas naquele país, conhecido paraíso fiscal de Luxemburgo, além dos nomes de quem se declarou beneficiário delas. O OCCRP organizou o material, analisado de modo colaborativo por jornalistas de dezessete veículos. A piauí é o único veículo brasileiro.
Além do elo com duas offshores já conhecidas pelos investigadores da Lava Jato, Inês Maria Neves Faria, mãe do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), é beneficiária no exterior de uma terceira empresa cujos ativos chegam perto de 4 milhões de reais. A existência da Domomedia Investment Holding, baseada em Luxemburgo, paraíso fiscal europeu, está documentada por um conjunto inédito de dados obtidos pelo jornal francês Le Monde e pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP), consórcio do qual a piauí é o único veículo de imprensa brasileiro a participar.
Ao contrário das outras duas offshores, sediadas em Liechtenstein e no Panamá, a empresa em Luxemburgo nunca apareceu nas apurações do Ministério Público Federal sobre Aécio, que vem sendo investigado por corrupção em um inquérito e responde a uma ação penal, também por corrupção. A Domomedia tampouco havia sido reconhecida por ele e seus familiares em um primeiro contato com a piauí, realizado na última sexta-feira, dia 5 de fevereiro, ocasião em que não responderam perguntas sobre a empresa e emitiram uma nota genérica. Mas, num vaivém de notas e manifestações até o dia 9, as versões da família mudaram.
A mãe de Aécio Neves é um dos 64 mil beneficiários de 140 mil empresas instaladas em Luxemburgo, reveladas pelo Le Monde e pelo OCCRP. Ao ter acesso a esse material, a piauí e o OCCRP descobriram que, entre os beneficiários, há pelo menos 358 brasileiros ou residentes no Brasil cujos ativos totalizam 112,6 bilhões de euros – ou 722,6 bilhões de reais, em valores corrigidos até fevereiro de 2020.
Inês Maria Neves Faria, que completará 82 anos no próximo dia 27 de fevereiro, é sócia dos filhos Aécio e Andrea Neves em empresas no Brasil. Ela foi citada lateralmente em um inquérito e uma ação penal sobre Aécio em curso no Supremo Tribunal Federal. No inquérito, sobre a estatal de energia Furnas, a mãe aparece como beneficiária final de uma offshore em Liechtenstein e de uma conta bancária ligada à offshore do Panamá. A suspeita do MPF é que as duas empresas tenham sido usadas para transferir dinheiro originário do esquema de propinas de Furnas, e, segundo documento anexado aos autos do inquérito, “é forte a possibilidade” de que, por meio delas, Inês Faria tenha colaborado com o pagamento de vantagem indevida ao filho.
Já a ação penal, que decorre da delação dos executivos da J&F (controladora da JBS), menciona um imóvel em nome de Inês Faria no Rio de Janeiro e a sociedade dela com Aécio e Andrea em uma rádio em Belo Horizonte como parte de um esquema ilegal de propinas. O deputado nega taxativamente o envolvimento de sua mãe nas acusações às quais responde na Justiça.
Fora do radar das investigações em curso, a Domomedia é mais recente que os fatos investigados no inquérito e na ação penal. A empresa foi criada em 2017 por um escritório especializado nesse tipo de negócio, como acontece com a maioria das companhias em paraísos fiscais. Seu capital inicial era de 3,2 mil euros, ou 21 mil reais, segundo os balanços financeiros disponíveis no sistema do governo de Luxemburgo. Inês Faria só passou a ser sócia da Domomedia a partir de 2018. No dia 31 de dezembro daquele ano, os ativos da empresa somavam 56 mil euros, o equivalente a 363 mil reais.
No último dia 4 de fevereiro, a piauí perguntou à assessoria de Aécio por que Inês Faria abriu uma empresa em Luxemburgo, qual a fonte dos recursos da empresa e se a operação fora declarada à Receita Federal e ao Banco Central, como manda a lei. No dia seguinte, a assessoria respondeu sem fazer menção à Domomedia. A nota dizia: “A senhora Inês Maria Neves Faria foi casada por cerca de 30 anos com o banqueiro e empresário Gilberto Faria, tendo toda sua vida econômico-financeira e patrimonial vinculada a ele, e não aos seus filhos, como amplamente documentado.”
Na segunda-feira, dia 8, porém, o advogado Fabio Tofic Simantob, que representa Inês Faria, procurou a piauí com nova versão. Desta vez, reconheceu que sua cliente é beneficiária da Domomedia e encaminhou documento segundo o qual ela passou a ser sócia da empresa em 14 de dezembro de 2018. Era a única sócia. O objetivo de sua cliente, afirmou o advogado, era transferir para a empresa um imóvel na França deixado por Gilberto Faria, morto em 2008.
Simantob, que é criminalista e não tributarista, acrescentou na ocasião que a iniciativa tinha sido orientada por “advogados, visando preparar o planejamento tributário e de sua sucessão” e sublinhou que “a Domomedia nunca possuiu conta bancária ou vida ativa”. Indagado pela piauí se a empresa havia sido informada à Receita Federal, ele respondeu apenas que “o imóvel na França se encontra devidamente declarado às autoridades brasileiras”. Sobre a Domomedia, nada.
No dia 9 de fevereiro, às 8 horas, a piauí perguntou se Inês Faria havia efetivamente transferido o imóvel na França para a empresa de Luxemburgo, como seria sua intenção. “Ainda não”, respondeu Simantob por escrito. “O procedimento foi suspenso em função da pandemia, o que impossibilitou a sra. Inês Maria de viajar e será retomado assim que ela possa se deslocar até a Europa.” A pandemia começou na China na virada de 2019 para 2020 e chegou ao Brasil entre fevereiro e março de 2020. A mãe do deputado tornou-se beneficiária da empresa em dezembro de 2018, um ano antes da eclosão da pandemia.
Na mesma manhã de 9 de fevereiro, a piauí verificou que um novo balanço da Domomedia, referente ao ano de 2019, fora incluído no sistema de dados de Luxemburgo seis dias antes. Segundo o novo documento, a empresa somava, ao final de 2019, um patrimônio de 617 mil euros, quase 4 milhões de reais. Diante disso, a revista voltou a questionar a família Neves sobre a origem dos recursos que, de um ano para outro, pularam de 56 mil euros para 617 mil euros. A piauí também voltou a perguntar se a Domomedia havia sido declarada às autoridades nacionais e, pela segunda vez, se o imóvel na França fora transferido para a empresa em Luxemburgo.
Ao meio-dia, Simantob enviou nova nota, com nova versão. Ele reafirmou que a transferência do imóvel fora interrompida “em função da pandemia”, que impediu a cliente de viajar para assiná-la presencialmente. Acrescentou que os “procedimentos para transferência da titularidade do imóvel” chegaram a ser iniciados, o que explica o aumento dos valores de 56 mil euros para 617 mil euros. Na nota, o advogado disse que “o valor contábil do imóvel foi sendo lançado em etapas a cada exercício, por decisão e critério dos responsáveis pela gestão da empresa”. “O imóvel na França (ao qual correspondem os valores contábeis mencionados) se encontra declarado ao Banco Central e à Receita Federal. Reiteramos, portanto, a informação de que não houve qualquer transação financeira feita pela empresa Domomedia, sendo os valores mencionados apenas contábeis e não financeiros. O que atesta mais uma vez a lisura de todos os atos praticados pela sra Inês Maria”, afirmou Simantob.
Na nota, o advogado usa a expressão “valores contábeis”, e não “financeiros”, para dizer que eram informações para constar no registro da empresa, mas não indicavam movimentação real. No entanto, mais uma vez não respondeu se a Domomedia foi ou não declarada às autoridades brasileiras, limitando-se a dizer que o imóvel na França, apenas o imóvel, é do conhecimento da Receita Federal brasileira. Em todos os contatos, a reportagem perguntou se a empresa foi declarada às autoridades brasileiras, como manda a lei. A família de Aécio não respondeu formalmente nem que sim nem que não. A reportagem segue aguardando demonstrativos da declaração, se eles existirem.
Um advogado tributarista consultado pela reportagem, que pediu para não ser identificado porque não conhece os pormenores do caso, disse que a Domomedia deve ser declarada à Receita Federal, quer seu balanço mencione “valor contábil”, quer mencione “valor financeiro”, mesmo que o imóvel de sua propriedade na França tenha sido declarado . Além disso, quando seus ativos passaram a somar mais que 100 mil dólares (cerca de 83 mil euros), o que aconteceu no decorrer do ano de 2019, a Domomedia também deveria prestar informações ao Banco Central, sob pena de ser enquadrada, no limite, em crimes como evasão de divisas ou sonegação.
Ter empresa num paraíso fiscal não é ilegal, desde que a operação seja declarada no Imposto de Renda. Segundo o artigo 11 da instrução normativa da Receita nº 1.924, de 19 de fevereiro de 2020, todo o patrimônio deve ser declarado, inclusive valores contábeis, salvo aqueles de valores ínfimos. Residentes no Brasil devem informar anualmente à Receita Federal os bens e direitos que detenham no exterior, exceto bens móveis abaixo de 5 mil reais, saldos de contas correntes e aplicações financeiras abaixo de 140 reais e ações e cotas de uma empresa de até 1 mil reais.
Segundo o advogado tributarista e professor da FGV Edison Fernandes, o ativo de 56 mil euros informado pela Domomedia em 2018 (quando Inês Faria ingressa na companhia) é um crédito que a empresa tinha a receber no prazo de até um ano. “Independentemente do tipo de ativo, a empresa deve ser declarada à Receita Federal no Brasil”, reafirma ele. Fernandes também concorda que “valores contábeis” não são motivos para não informar à Receita. Diz ele: “Não há como dizer que os valores são ‘meramente contábeis’. Mesmo se fossem, a empresa tinha de ser declarada.”
Por conta de citações às offshores ligadas a Inês Faria em Liechtenstein e no Panamá, os investigadores da Lava Jato tentaram esquadrinhar a vida financeira dos Neves no exterior, mas nunca chegaram à Domomedia de Luxemburgo. O ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, que chefiou o Ministério Público Federal de 2003 a 2005, afirmou que a empresa em Luxemburgo deveria ser incluída no escopo das investigações em curso sobre Aécio. “São situações semelhantes, que têm total conexão com os outros objetos de denúncia do Rodrigo [Janot]”, afirmou Fonteles. “Isso está dentro de um grande quadro fático e a medida processual adequada é o Ministério Público aditar a denúncia que já foi feita”, disse ele.
A Procuradoria-Geral da República, hoje sob o comando de Augusto Aras, não fala sobre o assunto. Questionada pela piauí, afirmou que, “pela natureza das informações solicitadas, ela integra investigação sigilosa, não sendo possível fornecer os esclarecimentos”. A Receita Federal foi na mesma linha. Disse que “não comenta casos específicos em função do sigilo fiscal, previsto no artigo 198 do Código Tributário Nacional”.
Embora a assessoria de Aécio tenha dito que “a vida econômico-financeira e patrimonial” de Inês Faria não seja vinculada a seus filhos, a parceria dela com Aécio e Andrea no mundo dos negócios é conhecida. Aécio, a irmã e a mãe figuram como sócios de uma empresa de compra, venda e aluguel de imóveis próprios, a IM Participações, cujo capital social é de 251 mil reais. Inês Faria e Andrea possuem também a Harmogim, consultoria em gestão empresarial, com capital de 2,5 milhões de reais. Há ainda a rádio Arco-Íris, afiliada da Jovem Pan em Belo Horizonte. A despeito do veto constitucional à detenção de concessões públicas de rádio e tevê por parlamentares, Aécio possuía participação na emissora desde 2010, que ele declarava no valor de 700 mil reais como uma dívida com sua mãe e sócia, assim como Andrea. Em 2016, segundo revelou a Lava Jato, ele vendeu suas cotas para Andrea por 6,6 milhões de reais, e Inês Faria perdoou a dívida – a transação atraiu a atenção dos investigadores, que pediram a quebra de sigilo dos envolvidos. Em sua colaboração premiada com o Ministério Público, Joesley Batista, sócio da J&F, disse que a rádio foi usada para o pagamento de uma mesada ilícita ao político tucano de 50 mil reais de 2015 a 2017. Até hoje a Arco-Íris está registrada em nome de Andrea e Inês Faria, com capital social de 200 mil reais.
Inês Maria Neves Faria era filha de Risoleta e Tancredo Neves, presidente eleito que morreu antes de assumir o cargo, em 1985. O seu primeiro marido, Aécio Cunha, pai de seus três filhos, foi deputado estadual e federal, membro de uma tradicional família do Norte do estado. O segundo, o banqueiro Gilberto Faria, também assumiu uma cadeira na Câmara. Ambos exerceram seus mandatos durante a ditadura militar pela Arena, o partido de sustentação do regime. O casamento com Faria, em 1984, estreitou os laços com o Rio de Janeiro. A matriarca e os filhos, ao longo dos anos, adquiriram imóveis em bairros da Zona Sul carioca como Ipanema e São Conrado. Mas nunca tiraram um dos pés de Minas. Ao longo dos dois mandatos de Aécio como governador, Andrea foi o braço direito do irmão, enquanto a mãe comparecia a solenidades filantrópicas e artísticas, sempre com discrição.
Aécio é réu por corrupção e obstrução de Justiça por causa da delação da J&F (controladora da JBS) na Lava Jato. Em 18 de fevereiro de 2017, segundo a denúncia da Procuradoria-Geral da República, Andrea Neves encontrou-se com Joesley Batista e pediu 2 milhões de reais para pagar “honorários advocatícios” da defesa de Aécio na Lava Jato. Propôs ainda que o sócio da J&F comprasse a cobertura duplex de sua mãe em São Conrado, bairro de classe média alta no Rio de Janeiro, por 40 milhões de reais – o dobro do que valia no mercado, conforme revelou na época o Fantástico, da TV Globo. No dia 24 de março, o próprio Aécio reforçou o apelo por dinheiro.
Joesley Batista recusou a oferta de compra do apartamento, mas decidiu atender o pedido dos 2 milhões de reais – e gravou a conversa por orientação dos procuradores da Lava Jato, no âmbito de um acordo de delação premiada que havia fechado. O áudio mostra a reação do então senador Aécio Neves: “Você vai me dar uma ajuda do caralho.” A investigação do Ministério Público diz que a propina de 2 milhões integrava um esquema de dezenas de milhões de reais repassados desde 2014 ao então senador, que, em contrapartida, “usou o seu mandato para beneficiar diretamente interesses do grupo”. Só na liberação de créditos de ICMS, Aécio conseguiu 24 milhões para a J&F, dona da JBS, apontaram os procuradores na denúncia.
Aécio também é investigado no inquérito que apura corrupção em Furnas Centrais Elétricas – apuração que esbarrou em negócios dos Neves no exterior. O primeiro elo entre uma offshore e os Neves veio em 2007, quando uma investigação da Polícia Federal descobriu uma “central bancária clandestina” operada no Rio de Janeiro por um doleiro octogenário chamado Norbert Muller. Segundo um procurador que colaborou com a operação, “Muller evoluiu no conceito de doleiro, era muito refinado”. Dispunha de organização minuciosa e logística profissional para abrir contas secretas no exterior para dezenas de clientes e fazer operações de dólar-cabo, em que o doleiro entrega reais no Brasil para receber dólares em offshores no exterior, ou vice-versa. Entre os clientes de Muller estava Inês Faria, que aparecia como beneficiária da fundação Bogart & Taylor, em Liechtenstein. A PF solicitou dados ao principado europeu, mas o sigilo imposto pelo governo daquele país sobre suas offshores impediu o avanço das investigações, e o inquérito acabou arquivado pelo Ministério Público.
O caso só seria retomado em 2014, quando, em seu acordo de delação com a força-tarefa da Lava Jato, o doleiro Alberto Youssef disse que tanto Aécio quanto o Partido Progressista tinham influência política em Furnas, estatal gigante, com 21 usinas hidrelétricas, 2 termelétricas e 1 complexo eólico. Segundo Youssef, desde os anos 1990, no governo do também tucano Fernando Henrique Cardoso, Aécio e o PP nomeavam a diretoria da estatal e por meio dela recebiam um percentual dos contratos assinados entre Furnas e outras empresas privadas. O relato, considerado vago pelo MPF, foi arquivado em março de 2015.
No ano seguinte, nova delação, dessa vez do então senador petista Delcídio do Amaral, trouxe detalhes sobre Furnas e sobre a offshore de Liechtenstein, como revelado pela revista Época. Delcídio disse que, quando Lula assumiu a presidência em 2003, Aécio, recém-eleito governador de Minas, pediu ao petista que mantivesse Dimas Fabiano Toledo como diretor de engenharia de Furnas, o mais poderoso cargo da estatal. Segundo o depoimento de um lobista ao MPF, cabia ao diretor operacionalizar o pagamento das propinas – um terço das propinas iria para o PT de São Paulo, um terço para o diretório nacional petista e um terço para Aécio Neves. Toledo perderia o cargo em 2005, quando Furnas foi envolvida no mensalão, ruidoso e avassalador caso de corrupção no governo Lula. Em 2012, Toledo foi denunciado pelo Ministério Público por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas o caso prescreveu antes da sentença.
Delcídio disse mais: que ouviu de José Janene, cacique do PP morto em 2010, que Aécio era beneficiário de uma fundação em Liechtenstein em nome da mãe dele. Ao pesquisarem nos arquivos do MPF, os procuradores se depararam com a investigação da fundação Bogart & Taylor pela PF e fizeram novo pedido de cooperação com o governo de Liechtenstein. Dessa vez, o principado colaborou: em 2018, enviou ao Brasil os documentos tanto da Bogart & Taylor, da mãe de Aécio, quanto de outra offshore em Liechtenstein, a Fundação Boca da Serra, controlada por Toledo – as duas empresas foram criadas pelo mesmo escritório de administração fiduciária, o Domar, sediado em Vaduz, capital do principado europeu.
Pela documentação enviada ao Brasil, os procuradores descobriram que a Bogart & Taylor foi criada em abril de 2001. Correspondências da offshore deveriam ser endereçadas ao escritório do doleiro Muller no Rio, mas “apenas em caso de extrema necessidade”. No mês seguinte, foi aberta a primeira conta bancária em nome da fundação, no banco LGT, de Liechtenstein. A beneficiária principal da conta era Inês Maria Neves Faria; em caso de morte dela, o beneficiário seria Aécio; se o político tucano também morresse, seria substituído pela filha dele Gabriela, que ficaria com 50% do dinheiro, e as irmãs de Aécio, Andrea e Ângela, que ficariam com 25% cada – o marido, que só morreria sete anos mais tarde e a quem sua vida econômico-financeira estaria ligada, não aparece entre os beneficiários. Houve pelo menos três depósitos na conta: 21,8 mil dólares da offshore panamenha Hornbeam Corporation em junho de 2001; 17,3 mil dólares em janeiro de 2002 e cuja origem não foi informada no extrato bancário; e 15 mil dólares de outra conta no LGT controlada pelo doleiro Norbert Muller, do Rio. Em 2007, a conta foi encerrada depois de descoberta pelas autoridades, e o saldo de 13,3 mil dólares transferido para a Nobilo, outra empresa de administração fiduciária em Liechtenstein. Já em relação à Boca da Serra, controlada por Dimas Toledo, os extratos da conta mantida pela offshore no banco suíço UBS mostram que o saldo chegou a 10,1 milhões de dólares em 2012 e que, nos quatro anos seguintes, foi reduzido pouco a pouco até atingir 40 mil dólares. Não há nos documentos enviados por Liechtenstein informações sobre o destino desse dinheiro.
Segundo o MPF, faltaram os extratos bancários de outras duas contas cuja beneficiária era Inês Faria, ambas no LGT de Liechtenstein: uma em nome da mesma Bogart & Taylor, que esteve ativa entre abril de 2001 e outubro do ano seguinte; e outra em nome da Hornbeam, ativa por muito mais tempo, entre 1989 e 2009. Para o MPF, essa última era a principal conta mantida no exterior por Inês Faria. O MPF considerou que os dados indicam o uso da fundação e da conta da Hornbeam por Aécio no esquema de Furnas, mas ressalvam que “a continuidade dessas diligências não cabe mais à PGR e sim ao órgão ministerial que atua perante a primeira instância”. Até o início de 2021 esses dados não haviam sido anexados ao inquérito sobre Furnas, no qual Aécio é investigado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
A partir de 2004, a Hornbeam Corporation passou a comprar ações de pelo menos outras catorze offshores sediadas em Hong Kong e nas Ilhas Virgens Britânicas, segundo mostram os documentos do que ficou conhecido como Panama Papers, escândalo revelado pelo ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, na sigla em inglês). Todas as catorze offshores foram criadas a partir de companhias instaladas em Liechtenstein, entre elas a Nobilo, justamente a que recebeu dinheiro da Bogart & Taylor, dos Neves, em 2007.
De acordo com a delação de Marcelo Odebrecht e de um dos executivos da empreiteira, entre 2008 e 2010 Aécio recebeu 65 milhões de reais em propina da Odebrecht e da Andrade Gutierrez para que influenciasse o governo federal no projeto da construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia. No caso da Odebrecht, que arcou com 30 milhões de reais, o pagamento, ainda conforme os delatores, foi feito para Dimas Toledo, agora já afastado de Furnas e atuando como operador do tucano, em 21 parcelas, em dinheiro vivo, entregues em um escritório de Ipanema, Rio, totalizando 28,2 milhões de reais. A diferença, 1,8 milhão, foi depositada em conta no UBS de Singapura, a Embercy Services Limited, controlada por Alexandre Accioly, empresário amigo de Aécio. Nesse episódio, Aécio, Toledo e Accioly foram denunciados ao STF pela Procuradoria-Geral da República por corrupção passiva, mas o STF ainda não decidiu se aceita a denúncia e não foi aberta ação penal. A defesa de Toledo não se manifestou sobre a offshore em Liechtenstein. Informou apenas que, no período em que ele foi diretor de Furnas, “jamais recebeu qualquer tipo de vantagem indevida e muito menos fez repasses de valores para quem quer que seja”.
Accioly, que já negou publicamente participação no esquema, também é beneficiário final de uma empresa em Luxemburgo, assim como Inês Faria. Os balanços obtidos pelo OCCRP e pela piauí mostram que a BTfit Overseas, da qual o empresário é beneficiário, movimentou 97 mil dólares em 2015 e 58 mil dólares em 2016. Desde então não foram prestadas contas. Sobre a BTFIT Overseas, a assessoria de Accioly afirmou que “a empresa é vinculada ao Grupo Bodytech, foi legalmente constituída em Luxemburgo para comercializar aplicativo de treinos físicos nas lojas virtuais da Apple e da Google, atende todas as regras de Luxemburgo e do Banco Central do Brasil e se encontra absolutamente regular.”
Simantob, advogado de Inês Faria, disse em nota que a vinculação do nome de sua cliente à Hornbeam “se deu única e exclusivamente em função de grosseiro erro de tradução, o que já foi comprovado por testemunho, já em posse das autoridades, apresentado pelos verdadeiros e únicos titulares da empresa, que atestaram a inexistência de qualquer vínculo da sra. Inês Maria com a mesma”. Segundo a defesa de Aécio relatou nos autos, o erro consistiu em identificar Inês Faria como beneficiária de toda a conta da Hornbeam, quando na verdade ela foi beneficiária de um depósito de 21,8 mil dólares (de recursos oriundos do patrimônio de Inês Faria) feito pela Hornbeam nessa conta, como um capital mínimo para viabilizar a abertura da Fundação Bogart & Taylor. Consultada sobre esse assunto, a PGR disse que irá se manifestar nos autos, mas no inquérito em trâmite no STF os procuradores afirmam que Inês Faria é efetivamente a beneficiária da Hornbeam e não fazem qualquer referência a um erro de tradução.
A fundação Bogart & Taylor, segundo Simantob declarada no Imposto de Renda, “foi criada com o intuito de financiar os estudos dos netos. No entanto, a fundação teve seu processo de criação interrompido em função da doença do sr. Gilberto Faria, que viria a falecer, tendo a mesma sido extinta há catorze anos, no ano de 2007. Ao longo dos seis anos de existência foram pagos 36 mil dólares, o que corresponde a uma média de 6 mil dólares anuais, usados exclusivamente para o pagamento das taxas de manutenção”.
Entre 2017 e 2018, a vida da família Neves virou de cabeça para baixo. Quando a delação da J&F veio à tona, o tucano passou de presidenciável virtualmente eleito a investigado radioativo. Em um só dia, 18 de maio, Aécio foi afastado de seu mandato no Senado pelo STF, deixou a presidência nacional do PSDB e viu sua irmã Andrea ser presa. Junto com ela foi detido Frederico Pacheco, primo por parte de mãe que também foi à JBS pedir vantagens indevidas e ajudou a operacionalizar o esquema. A Procuradoria-Geral da República solicitou que o próprio Aécio fosse preso, mas o STF negou o pedido, determinando que o senador entregasse o passaporte para não sair do país e não falasse com os demais investigados.
Quando sua mãe foi citada no noticiário devido ao apartamento no Rio de Janeiro, Aécio gravou um vídeo no qual confirmou a proposta de venda da cobertura a Joesley Batista, mas negou que o negócio fosse superfaturado. “Fiz isso porque não tinha dinheiro, não fiz dinheiro na vida pública”, defendeu-se Aécio.
A partir da delação do sócio da J&F, o Ministério Público apresentou denúncia contra Aécio, Andrea, o primo e um assessor do ex-senador Zezé Perrella no início de junho de 2017. O tucano conseguiu retomar o mandato, enquanto a irmã e o primo deixaram a prisão.
Em 2018, as investigações sobre a suposta influência de Aécio Neves em Furnas patinavam. A Polícia Federal havia descartado sua participação no esquema, e o ministro Gilmar Mendes, do STF, mandara arquivar o inquérito sem consultar o Ministério Público. Faltavam poucas semanas para o início da campanha eleitoral daquele ano, e a imagem de Aécio Neves estava na berlinda. Ele desistiu da disputa pela Presidência e não arriscou nem mesmo o Senado: acabou tentando um assento na Câmara dos Deputados, em uma campanha focada nas regiões mais pobres de Minas Gerais. Colheu votos em redutos onde a família do pai era conhecida, no Norte do estado, e se elegeu.
No mês seguinte à eleição, em novembro de 2018, por insistência do Ministério Público, o STF reabriu o inquérito de Furnas. A Polícia Federal fez duas batidas em imóveis da família Neves, a primeira em 11 de dezembro. No dia 20 de dezembro, uma semana depois de Inês Faria se tornar sócia da Domomedia, a PF fez a segunda busca e apreensão, inclusive em imóvel da mãe do deputado, atrás de documentos que corroborassem as delações de Joesley Batista e Ricardo Saud, outro executivo da J&F que denunciou o esquema da família. De 2014 a 2018, disseram os delatores, os Neves receberam 110 milhões de reais da empresa ilegalmente.
A investida do Ministério Público Federal em torno de Aécio caminha a passos lentos. A delação da J&F subsidiou uma denúncia por corrupção e obstrução de Justiça contra o deputado – o processo foi aberto, mas continua pendente de julgamento. Enquanto isso, o futuro do inquérito de Furnas segue indefinido: em maio de 2019, o STF chegou a pautar um julgamento para decidir se a investigação seria arquivada ou teria prosseguimento, mas o exame do caso foi adiado sem nova data para ocorrer. Todos os investigados respondem aos inquéritos e ações penais em liberdade.
Checagem: Plínio Lopes; revisão: Ana Martini
*
Nota: Após a publicação desta reportagem, a assessoria do deputado Aécio Neves enviou mais uma nota para a redação, que publicamos a seguir, integralmente.
“A Sra. Inês Maria foi casada por cerca de 30 anos com o banqueiro Gilberto Faria, sendo o seu patrimônio advindo desse matrimônio.
Não houve, ao contrário do que disse a matéria, mudanças de versões, mas respostas novas a novas perguntas.
Solicitamos que, devido a importância dos fatos, sejam acrescentadas a reportagem as seguintes informações repassadas pelo representante da Sra. Inês Maria:
1 – Os valores da empresa Domomedia não são financeiros, mas meramente contábeis. Portanto, não existe dinheiro, como a reportagem dá a entender, o que é, inclusive, demonstrado no balanço de posse da revista.
Ou seja, nunca houve transferência de valores financeiros, nem abertura de conta bancária, nem vida ativa. A empresa foi criada para receber, por motivos de planejamento tributário, um imóvel que existe há cerca de 35 anos na França, devidamente declarado às autoridades brasileiras.
2 – Não existe qualquer vínculo da Sra. Inês Maria com a empresa Hornbeam, como demonstraram os documentos enviados à revista. Houve apenas um erro de tradução de um documento oficial que a vinculou a essa empresa. A empresa, como atestado oficialmente pelos próprios proprietários, pertence a um escritório de advocacia, sendo utilzada por ele para negócios com todos os clientes da empresa, não tendo qualquer relação com a Sra. Inês Maria.
A falsa acusação que vincula a sra Inês Maria a essa empresa é anterior aos esclarecimentos prestados pelo real proprietário.
3 – A investigação sobre a fundação Bogart & Taylor foi arquivada pelo MP e pela Justiça após constatação de que não houve qualquer irregularidade. Extratos da mesma comprovam a regularidade dos procedimentos. A fundação foi declarada às autoridades.
Quanto ao inquérito que envolve o deputado Aécio Neves em investigações sobre a empresa Furnas, cujo arquivamento foi pedido pela Polícia Federal e pelo relator da matéria, não apontou até hoje qualquer irregularidade. Pelo contrário, após 4 anos de investigação não há qualquer relato, prova ou indício contra o deputado.
Assessoria do deputado Aécio Neves”
*
Correção: reportagem atualizada para incluir a informação de que a delação ao Ministério Público foi feita por executivos da J&F (controladora da JBS).
Correção: Versão anterior dessa reportagem afirmou erradamente que o STF ainda não havia julgado a ação penal sobre Aécio Neves, Alexandre Accioly e Dimas Toledo. Os três foram denunciados, mas o STF ainda não decidiu sobre a denúncia, portanto não foi aberta ação penal. Depois da publicação da reportagem, a assessoria de Accioly enviou à piauí nota com esclarecimentos.
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)
Foi repórter da piauí. Na Folha de S.Paulo, foi correspondente em Nova York e repórter de política em São Paulo e Brasília
Foi presidente da Abraji e co-apresentador do Foro de Teresina. É colunista de política do Uol.
Jornalista e professora da Uerj. Foi editora da piauí, editora de Política do Globo e repórter da Folha de S.Paulo. Autora de Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento (Ed.FGV, 2021).
É mestre em jornalismo de dados pela Universidade Columbia e um dos diretores da Abraji
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí