Ilustração de Paula Cardoso
Criptolavagem, um novo método para um velho crime
Polícia Federal investiga como quadrilha usou bitcoins, as moedas digitais, para lavar 110 milhões de reais do tráfico
Ao primeiro toque na campainha pela equipe da Polícia Federal, começou o alvoroço no apartamento do chinês Jiamin Zhang, na Mooca, área central de São Paulo, naquela manhã de 19 de novembro de 2018. Enquanto os policiais insistiam para entrar, ouviam gritos em mandarim, passos agitados e batidas de porta dentro do imóvel. Ao arrombarem a entrada do apartamento, os delegados e agentes encontraram cinco chineses, todos parentes de Zhang – ele seria preso instantes depois em outro endereço da capital paulista. No imóvel, enquanto um dos chineses escondia celulares na churrasqueira da sacada, uma mulher havia acabado de jogar dezenas de maços de dinheiro dentro da máquina de lavar, um total de 330 mil dólares, 10 mil euros e 57 mil reais.
A ironia da situação saltou aos olhos dos policiais, já que Jiamin Zhang era acusado justamente de operar uma gigantesca lavanderia de dinheiro do tráfico de cocaína. O chinês se valia de estratégias já conhecidas no ramo, como o uso do dólar-cabo e de empresas de fachada, mas também apostava em um método novo para o branqueamento de capitais: as criptomoedas, um dinheiro totalmente digital protegido por criptografia, com cotação própria, que oscila diariamente, como o real ou o dólar.
Investir em criptomoedas não é crime no Brasil, mas a falta de regulamentação desse mercado pelo Banco Central e pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários) tornou os criptoativos a nova coqueluche da lavagem de dinheiro no país, segundo a Polícia Federal.
Basicamente, a criptomoeda serve tanto para esconder dinheiro de origem ilícita como para movimentá-lo pelo mundo, em transações que estão sendo apelidadas de bitcoin-cabo: no Brasil, o doleiro deposita determinada quantia em reais na conta de uma corretora, que converte o valor em bitcoin (um bitcoin valia 45,6 mil dólares, na cotação de segunda-feira, 10) e fornece um código para o depositante. Com essa senha, é possível sacar o valor equivalente em dólar ou euro por meio de outra corretora no exterior. “O dinheiro é transferido sem o controle do Banco Central, muito menos o pagamento de impostos”, diz o procurador Leandro Bastos Nunes, do Ministério Público Federal, especialista na investigação de transações com criptoativos. “Trata-se de um caso claro de lavagem de dinheiro e evasão de divisas.”
Zhang nasceu e cresceu na província de Zhejiang, Leste da China. Acusado na terra natal de envolvimento com contrabando e imigração ilegal, em 2012 fugiu para a Espanha com o nome falso de Hanran Guo, um conhecido dele que havia morrido tempos antes na mesma província natal. Com o nome de Guo, ele criou duas empresas em Madri e Toledo, em sociedade com um irmão. Dois anos depois, veio para São Paulo com a mesma identidade falsa e instalou uma loja de importação de roupas no bairro do Brás. A vida de comerciante escondia a atividade mais lucrativa de Zhang: as operações de dólar-cabo cruzadas entre comerciantes do Brás e da Rua 25 de Março, em São Paulo, que precisavam pagar pelas mercadorias adquiridas na China, e narcotraficantes que queriam receber no Brasil o pagamento pela cocaína fornecida para a Europa. Assim como o também doleiro Dalton Baptista Neman, acusado de lavar dinheiro para a facção PCC (Primeiro Comando da Capital), segundo a Operação Tempestade, da PF, Zhang, de acordo com a investigação da PF, recebia os reais dos comerciantes no Brasil e entregava para os traficantes; ao mesmo tempo, recebia nas empresas dele na Espanha o pagamento em dólar ou euro dos compradores europeus da droga e enviava para a China, pagando os fornecedores de mercadoria dos lojistas da 25 de Março e do Brás.
Um dos principais clientes de Zhang era o narcotraficante gaúcho Marino Brum. Com o auxílio de um delegado aposentado da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, Brum trazia cocaína em pequenos aviões da Bolívia e do Paraguai até duas fazendas no interior gaúcho. De lá, as remessas, que variavam entre 800 kg e 1 tonelada, seguiam em caminhões até portos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, rumo à Europa, onde eram adquiridas por grupos sérvios. Brum seria preso por acaso em Tramandaí, litoral gaúcho, em agosto de 2017. Policiais da Brigada Militar suspeitaram das manobras de um automóvel BMW em frente a uma casa e decidiram abordar a motorista, mulher de Brum. Sobre o banco de passageiros, os policiais notaram dezenas de documentos falsos. Diante do flagrante, entraram no imóvel e encontraram Brum e José Paulo Vieira de Melo, o Paulo Seco, outro grande traficante do estado, escondidos debaixo de uma caminhonete. Como ambos eram foragidos da Justiça, ofereceram 1 milhão de reais aos policiais para não serem presos, o que lhes rendeu um processo por extorsão.
Mesmo preso, Brum permaneceu no comando da sua rede de tráfico de cocaína e lavagem de dinheiro por meio de celulares manuseados de dentro da cela. Para trazer os pagamentos dos compradores sérvios e lavar os recursos no Brasil, o traficante contratou os serviços de Jiamin Zhang em São Paulo. Depois de casar as operações de dólar-cabo com os lojistas do comércio popular paulistano, o chinês depositava os reais em contas de empresas de fachada, em nome de laranjas. Em seguida, transferia os valores entre empresas, para simular uma atividade comercial, e devolvia o dinheiro já limpo para Brum, que investia na compra de imóveis, automóveis de luxo e embarcações, incluindo um iate avaliado em 2 milhões de reais. Em três anos, segundo a PF, Brum movimentou 1,4 bilhão de reais.
Alvo da Operação Planum, naquele novembro de 2018, Zhang seria solto meses depois por conta de um habeas corpus, mas acabaria detido novamente em agosto de 2020, dessa vez suspeito de lavar dinheiro para outra quadrilha de narcotraficantes que exportava cocaína por meio de portos do Nordeste – nesse caso, não houve ação penal contra o chinês. Na Planum, Brum foi condenado a 33 anos de prisão por tráfico internacional, associação para o tráfico e lavagem de dinheiro; Zhang responde a ação penal por associação criminosa, crime contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, ainda não julgada pela 7ª Vara Federal de Porto Alegre, e está em prisão domiciliar. Nem a defesa do chinês nem a de Brum quiseram se manifestar.
No endereço da Avenida Cassandoca, na Mooca, batizado pela PF de “Escritório Central dos Chineses”, foram apreendidas várias agendas e planilhas de computador com boa parte dos esquemas de lavagem de Jiamin Zhang. O material serviu para a Polícia Federal abrir nova investigação, dessa vez em São Paulo, a cargo do delegado Valdemar Latance Neto. A PF montou um extenso organograma com 74 empresas, todas com laranjas ou contadores em comum, sediadas em São Paulo e em Limeira, interior paulista. Depois, Latance Neto obteve do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) relatórios de movimentações financeiras suspeitas dessas empresas entre 2015 e 2020, em um total de 33 bilhões de reais (nesse ponto, o delegado frisa que provavelmente há repetição de transações entre os relatórios). “Chamou a atenção o fato de que todas essas empresas eram de fachada, em nome de laranjas, e não havia nenhuma justificativa para uma movimentação tão grande de dinheiro”, disse Latance à piauí.
Do conjunto de empresas, três concentram a maior parte das transações atípicas: Global, WFQ e SJ Intermediação de Negócios. O endereço das três coincide com o de um hotel no Brás, em São Paulo, cujo dono também é um chinês. Latance Neto passou a analisar o caminho do dinheiro movimentado pelas três empresas com base nas transações suspeitas identificadas pelo Coaf e constatou que, apenas entre fevereiro e abril de 2019, a Global e a SJ depositaram 111,4 milhões de reais em contas da Bitseller Serviços Digitais, uma corretora de criptomoedas sediada em Aparecida de Goiânia, Goiás. “Eles terão de esclarecer essas transações com essas firmas do empresário chinês”, diz Latance Neto, que chegou a fazer um pequeno investimento em bitcoins, a fim de entender melhor como funciona esse mercado.
Para avançar na investigação da lavanderia montada por Jiamin Zhang, o delegado pediu, e a 2ª Vara Federal Criminal de São Paulo determinou a quebra de sigilo bancário e fiscal de 59 pessoas físicas e jurídicas, incluindo as três empresas do suposto esquema de Zhang. Também estão bloqueados os 111 milhões de reais depositados nas contas da Bitseller. Foram expedidos mandados de busca em quatro endereços (três em São Paulo e um em Limeira). O cumprimento dos mandados, no dia 29 de abril, marcou o início da operação Rekt, gíria utilizada para designar investimentos malfeitos em criptomoedas. Em nota, a Bitseller afirma que “possui atividade lícita e jamais se envolveu com os crimes investigados na operação” da Polícia Federal.
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