ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Mordomo das arábias
Um brasileiro a serviço das extravagâncias reais
João Batista Jr. | Edição 178, Julho 2021
Para surpreender os convidados e agradar o filho que completaria 5 anos, a integrante da família real de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, deu uma missão ao seu mordomo, o mato-grossense Vinícius Viana. Ele precisaria providenciar seis pinguins, ainda novinhos e com penugens idênticas, para compor o cenário da festa de aniversário.
Viana ligou para vários zoológicos da Europa até conseguir firmar acordo comercial com um deles. O prestimoso funcionário pediu refrigeração especial para um dos aviões cargueiro da realeza e foi à Europa buscar as aves. As crianças adoraram os bichos, que depois foram despachados de volta.
Em outra ocasião, Viana voou a Paris exclusivamente para pegar um casaco na maison de alta-costura da Chanel. Mas a peça não estava pronta, o que desencadeou uma pequena crise diplomática. A cliente real e toda a sua família gastam milhões de euros em roupas feitas sob medida e não toleram atrasos. O casaco foi finalizado na manhã seguinte.
Como head butler (mordomo-chefe) de outra família real, a da Arábia Saudita, Viana lidou com questões ainda mais extravagantes. Uma princesa apaixonada por perfumaria ficou com receio de as matérias-primas acabarem – e comprou uma fazenda de lavanda na França. A mesma princesa designou Viana para providenciar, no Mar do Japão, alguns quilos de âmbar-cinzento, nome pomposo para uma substância presente no vômito de baleias. Trata-se de um dos melhores fixadores de perfumes, cada vez mais raro. Em alguns dias, ele obteve o produto.
Viana possui os predicados perfeitos para a atividade de mordomo de uma família real, cuja premissa tem dois pilares: conseguir tudo que lhe for pedido e fazer-se totalmente invisível. Ele nunca altera o tom de voz, fala de maneira pausada e formal. “Nosso trabalho é saber atender de forma eficaz e veloz – sem jamais chamar a atenção – as pessoas que não têm limites”, explica.
Nascido em Barra do Garças (MT), Viana se mudou aos 18 anos para São Paulo a fim de cursar hotelaria na Universidade Paulista (Unip). Um ano depois, participou de um recrutamento via internet e foi trabalhar no hotel Marriott de Doha, capital do Catar. Além de aprimorar o inglês, fez cursos de francês e espanhol. E foi pulando de hotel em hotel.
Trabalhou em algumas das redes mais exclusivas do mundo, como W, St. Regis e Burj Al Arab, o famoso hotel de Dubai, nos Emirados Árabes. “Neste último, os clientes são novos wealthies e os high net worth individuals.” (Tecla SAP: novos ricos e pessoas com patrimônio líquido superior a 1 milhão de dólares.) “Um cantor sertanejo do Brasil que se hospedou no hotel me pediu para alugar uma Ferrari e fazer uma reserva no restaurante da rede Armani. Às três da manhã, meu chefe me ligou pedindo que fosse correndo à delegacia, pois o cantor, alcoolizado, tinha batido o carro. No dia seguinte, ele deixou o país.”
Em 2018, Viana se mudou de Dubai para Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes, para ser mordomo da realeza. O principal palácio onde dava expediente era o Qasr Al Watan, apelidado de Versalhes do Oriente Médio. Um dia, recebeu uma proposta de uma agência recrutadora de Londres para uma vaga de head butler. Fez todo o processo seletivo sem saber o nome do cliente, que a agência não podia informar. O salário de um head butler gravita entre 20 e 25 mil reais.
Ele só tomou conhecimento sobre seu empregador depois que foi aprovado: tratava-se da família real da Arábia Saudita. “Ao final do processo de recrutamento, me foi perguntado sobre minha orientação sexual. Eu falei a verdade e, então, fui orientado a me manter low-profile”, conta. Em outras palavras, a não ter vida sexual. Na Arábia Saudita, a prática da homossexualidade é punida com diferentes penas, inclusive a de morte.
Viana chegou a Riad para coordenar uma brigada de cem mordomos em uma das residências do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman – uma das autoridades mais sanguinárias do mundo, acusado de ter mandado matar o jornalista Jamal Khashoggi. De cara, o mordomo precisou deixar todos os pertences pessoais trancados. Ganhou um celular sem câmera, sem GPS e sem a possibilidade de baixar aplicativos. Vivia num condomínio feito para abrigar os funcionários da família real.
Tudo chamou a atenção de Viana, pela grandeza. O cardápio incluía especialidades culinárias de várias partes do mundo, inclusive ostras frescas da Noruega e Kobe beef, levados diretamente dessa cidade japonesa. “O cardápio é digital. Se fosse impresso seria mais grosso que a Enciclopédia Barsa”, diz Viana.
Constam também do cardápio as bebidas mais sofisticadas do mundo, embora o islamismo condene o consumo de álcool. “A maior adega do palácio de Riad tem 1 mil m2, com vinhos raríssimos, avaliados em 100 mil dólares.” A roupa de cama, feita sob medida com seda indiana ou algodão egípcio ou paquistanês, é trocada todos os dias. As toalhas dos lavabos e banheiros, duas vezes ao dia.
Na presença da família real e de seus convidados, os mordomos seguem a regra de não ver e não ouvir. “Um dos requisitos para obter esse emprego é não saber falar árabe, para não entender o que está sendo discutido na nossa frente”, ele conta. As regras de etiqueta – e do machismo – são rígidas. “Já vi um butler ser demitido por servir uma mulher antes do marido.” Os mordomos devem saber os nomes e hierarquias dos integrantes da família real, bem como dos ministros de Estado e amigos próximos. Os jovens nobres são festeiros. Certa vez, um jato real aterrissou em São Paulo apenas para buscar um famoso DJ brasileiro que animou uma festa no palácio de Riad. Foi Viana quem organizou o jantar oferecido a Jair Bolsonaro no palácio real em 2019. Como de praxe, ele não dirigiu a palavra ao presidente.
Com a pandemia, o palácio resolveu se desfazer de parte de sua brigada de mordomos. Viana deixou o país e foi para Londres, onde trabalha na Leweskool Consulting, empresa de consultoria de serviços domésticos e hotelaria de luxo. Neste ano, esteve em Moçambique para ajudar a estruturar a operação de um resort sofisticado. Depois veio para o Brasil, onde está desde o mês de abril, trabalhando em regime de home office. “Muita gente me pergunta sobre o preconceito contra homossexuais no Oriente Médio. Posso dizer que, durante doze anos, nunca escutei piada nem senti minha dignidade ser desrespeitada. Já no Brasil…”
Experiências extremas fazem parte da vida de Viana desde muito pequeno. Filho único de dois policiais civis, aos 3 anos ele viveu uma tragédia: o pai matou sua mãe, no desfecho da série de agressões que cometia contra ela e das quais o filho também era vítima. Ele nunca mais reencontrou o pai, que ficou preso por cinco anos. Foi criado pela avó e por uma tia materna. Viana tem hoje 31 anos. Questionado se seria capaz de perdoar o pai, responde: “Por que não? O que ele fez me marcou e deixou cicatrizes eternas, mas tenho vontade de escutar a versão dele.” Só gostaria que a iniciativa de reaproximação partisse do pai, que até agora nunca se interessou em rever o filho.
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