ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Regina Duarte, mestra da canjica
Iludida pelo presidente, a atriz dá sinais de que vai desembarcar do rabecão bolsonarista
João Batista Jr. | Edição 179, Agosto 2021
Regina Duarte está diferente – e não porque sua pele vem ganhando um viço novo com os procedimentos a laser que faz uma vez por mês para estimular a produção de colágeno. Há quase sessenta dias, ela decidiu contratar uma equipe de filmagem e edição a fim de aprimorar seu perfil no Instagram. Aos 74 anos, a ex-estrela da Rede Globo (onde trabalhou por 51 anos) e ex-titular da Secretaria Especial da Cultura (na qual atuou por dois meses e quinze dias) quer se dedicar à atividade de influenciadora digital.
Uma vez por semana, entre duas e três pessoas passam a tarde no apartamento de Regina, no bairro paulistano dos Jardins, decorado com muitos livros e obras de arte, inclusive uma tela de Di Cavalcanti. Durante essas jornadas, ela grava vídeos em que lê trechos de clássicos da literatura, como Dom Casmurro, de Machado de Assis, e Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Os vídeos vão diretamente para a rede social, em busca de likes. Ela também faz lives, nas quais conversa sobre arte com os atores Jackson Caetano e Gabriela Duarte, sua filha.
A estratégia de fidelização dos fãs vai além da literatura e da arte. Uma de suas postagens que tiveram mais sucesso foi a aula em que explicou como fazer uma boa canjica. Até 20 de julho passado, Regina havia obtido com a lição de culinária caipira 252 mil visualizações, 55 mil likes e 4,1 mil comentários no Instagram – onde é seguida por quase 2,4 milhões de pessoas.
Depois de tantos revezes no planeta bolsonarista, a atriz está colocando em prática alguns conselhos dados por familiares e amigas mais próximas, como a socialite Bete Arbaitman. “A Regina vive de arte e para a arte, acredito que logo volte a atuar. Tomando posições políticas, ela prejudicou a própria carreira e a vida privada”, diz Arbaitman.
Seguindo as dicas, a atriz tem evitado tratar de temas políticos nas redes sociais, ou pelo menos dar ênfase a eles. O seu apoio a Jair Bolsonaro, com declarações entusiasmadas e nenhuma crítica, lhe trouxe poucas alegrias e aumentou assustadoramente o seu número de haters. A passagem pela Secretaria Especial da Cultura deteriorou mais ainda o prestígio que tinha: tudo não passou de um espetáculo desastroso e humilhante.
Agora, Regina parece disposta até mesmo a desafiar as hostes bolsonaristas. Sinal disso é que cometeu a heresia de fazer postagens sobre artistas – como Gilberto Gil, Fabiula Nascimento e Anitta – tidos como “de esquerda” pelos fanáticos do presidente. Já faz quatro meses que publicou seu último post sobre Bolsonaro: em 10 de abril, compartilhou uma notícia da Rádio Jovem Pan sobre a criação de um comitê para organizar a vacinação em massa. Naquela data, o Brasil registrava 351 469 óbitos causados pela Covid-19. O comitê nunca saiu do gogó do presidente. E Regina não voltou a falar do assunto – nem de Bolsonaro.
O silêncio sobre temas políticos tem outras causas. Em maio passado, uma ordem judicial obrigou a atriz a fazer uma retratação em seu Instagram por ter divulgado uma notícia falsa sobre o patrimônio da ex-primeira-dama Marisa Letícia. Ela o fez, mas isso não foi o bastante para o advogado Cristiano Zanin, que representa o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua família. “O juiz de primeiro grau determinou que ela se retratasse, e houve o pedido de desculpas. Porém, não houve condenação para reparar danos morais. Por isso, interpusemos recurso de apelação com o pedido de indenização”, diz Zanin. Segundo ele, o valor da indenização – 130 mil reais – será destinado à paróquia do padre Júlio Lancellotti, em São Paulo.
Gabriela Duarte confidenciou aos mais próximos que sua mãe foi “traída” pelo governo Bolsonaro. Tão logo Regina foi nomeada para a pasta da Cultura, começaram os disparos contra ela, vindos dos próprios bolsonaristas. Para os mais íntimos, a atriz reconhece que sua passagem por Brasília foi ruim e frustrante, mas diz que não se arrepende de ter aceitado o convite.
Há quem diga que ela acreditava, genuinamente, que poderia ser útil à cultura brasileira atuando no governo Bolsonaro. “A Regina é de uma radical honestidade e, assim como eu, acreditou em um outsider. Nos enganamos”, desabafa o ator Carlos Vereza, amigo da atriz há cinco décadas e simpatizante de primeira hora de Bolsonaro. “Ela não recebeu um centavo para conseguir fazer projetos na pasta da Cultura. A escolha do Mario Frias para substituí-la mostra que querem apenas um fanático e não alguém que entende de arte.” O tempo mostrou ainda que de outsider da política Bolsonaro não tem nada.
Regina Duarte também tem se dedicado à sétima neta, Isabel, nascida há seis meses. Ela vai regularmente ao Rio de Janeiro para as festas de “mesversário” da filha de seu primogênito, João, com a atriz Talita Younan. Sempre se hospeda na residência do casal, pois seu apartamento na Barra da Tijuca está alugado.
A aventura política deixou sequelas na família. Dos seus três filhos, apenas André apoiou o seu desejo de participar do governo. À medida que Regina tomou distância do bolsonarismo, o filho se afastou dela. André acabou deixando o apartamento da mãe em São Paulo, no qual vivia, e se mudou para o Guarujá, no litoral paulista.
No vídeo-demissão de Regina, em 20 de maio de 2020, Bolsonaro disse que lhe daria um presente: a presidência da Cinemateca Brasileira, sediada em São Paulo. Era outra fantasia. Bolsonaro não tinha como nomear o presidente da instituição, na época gerida por uma organização social cujo contrato com o governo só foi encerrado em agosto do ano passado. Desde então, a Cinemateca está sem gestor – e acabou entregue às chamas.
No dia 29 de julho, enquanto Regina postava vídeo dentro de uma banheira de hidromassagem na gélida cidade gaúcha de Gramado, um galpão da entidade pegou fogo, na Vila Leopoldina. As labaredas consumiram 4 toneladas de documentação sobre políticas públicas de cinema, além de fotografias e cópias de filmes. A Cinemateca abriga (ou abrigava) o maior acervo audiovisual da América do Sul, com 250 mil rolos de filmes e 1 milhão de documentos. Procurada pela piauí, Regina não respondeu. Sua secretária disse que a atriz estava fora de São Paulo e não poderia falar com a revista.
Em 7 de julho passado, houve uma audiência online para definir as diretrizes do chamamento público para a nova gestão da Cinemateca. Participaram Bruno Côrtes, secretário nacional do Audiovisual, e Hélio Ferraz de Oliveira, secretário especial adjunto da Cultura. Eles disseram que a verba federal anual destinada à entidade seria de 10 milhões de reais (valor menor que os 12 milhões pagos até 2019) e que o novo gestor teria que arrecadar por outros meios pelo menos 4 milhões de reais. O cineasta Roberto Gervitz, do movimento SOS Cinemateca, já alertava que o descaso causaria danos irreversíveis. Acertou em cheio. “Foi uma tragédia anunciada”, disse, sobre o incêndio.
Desde que voltou de Brasília, Regina não foi mais contatada pelo governo para tratar da sua ida para a Cinemateca. Mas ela também perdeu o interesse no assunto e agora, além de cuidar das redes sociais, está pensando em voltar à televisão – nem que seja em uma novela bíblica da Record, disse a um fã, no Instagram. Como a Terra Santa de Edir Macedo é vizinha das catacumbas de Bolsonaro, para a atriz basta dar um passo.
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