CRÉDITO: VITO QUINTANS_2021
Dona do próprio nariz
A piauí mudou – e continua igualzinha
João Moreira Salles | Edição 181, Outubro 2021
Durante anos esta página se chamou Chegada. Fiel ao nome, tratava de qualquer novidade reluzente surgida no mês anterior. Valia tudo: um bebê (piauí_01), o folhudo implante capilar de Eike Batista, a decretação pelo Vaticano de uma atualização na sua lista de pecados ou – sinal de que passava da hora de aposentar a seção – o ingresso triunfal do inventor do bambolê no Paraíso. Em maio deste ano, rifamos a Chegada. Quem diria, então, que menos de seis meses depois, no aniversário de 15 anos da revista, ela ressuscitaria? Que o leitor não se desespere: a coisa é temporária, por este mês apenas, e somente porque a revista que está diante de seus olhos é a piauí de sempre – mas, ao mesmo tempo, não é.
Existe aqui algo novo que precisa ser explicado. Quando a piauí foi criada, em 2006, a ideia era preencher uma lacuna. Os três jornalistas que participaram de sua concepção – Mario Sergio Conti, Dorrit Harazim e Marcos Sá Corrêa – imaginaram uma publicação capaz de oferecer ao leitor o que se tornava cada vez mais raro: um jornalismo feito de histórias, com zelo narrativo e à vontade nos tempos largos – tanto para a apuração como para a escrita e, depois, para a fruição.
Nosso trabalho, desde o início, seria praticar bom jornalismo sem fugir à proposta original, cientes, contudo, de que íamos na contramão de tendências prevalentes na imprensa mundial, como o imediatismo da notícia, o texto sumário e o colunismo de opinião. Em termos de procedimento, seguiríamos (e continuamos a seguir) os veículos que admirávamos. Se havia alguma singularidade na nossa empreitada, tratava-se da invenção de forma. Ao menos, era essa a pretensão. (Voltarei a esse ponto.)
Duas dúvidas assombravam nossa aposta: existia quem soubesse escrever uma revista assim? E existia quem quisesse lê-la? Passadas 180 edições, a resposta é sim.
De lá para cá, o país transitou de uma democracia que parecia consolidada para uma democracia cotidianamente sob ataque. Se jornalismo rigoroso, independente e apartidário era importante em 2006, em 2021 ele se prova essencial. Democracy dies in darkness (A democracia morre na escuridão), lê-se no site do Washington Post, logo abaixo do nome do jornal. A frase-lema foi criada durante o governo Trump, em resposta às investidas do então presidente contra a imprensa. O fato de soar um tico dramática e autocongratulatória não dilui a verdade que expressa.
Conhecemos a fórmula do autoritarismo para a imprensa: ela é inimiga do povo. É assim na Rússia, na China, na Turquia, no Egito, na Bielorrússia, na Venezuela, na Nicarágua. Está sendo assim no Brasil.
Países em estágios mais críticos de fechamento democrático adotam dois métodos para asfixiar os meios de comunicação. No primeiro, o governo destina suas verbas de publicidade aos veículos amigos e, em paralelo, pressiona o setor privado a não anunciar nos veículos independentes. É a asfixia financeira. Empresas começam a ter dificuldade para pagar as contas e, com o tempo, acabam nas mãos de empresários ligados ao regime. É a receita da Hungria, da Polônia, da Venezuela. No segundo mecanismo, o governo acusa a imprensa de não estar a serviço dos interesses da nação. De fato, ela não está, e nesse aspecto o autocrata acerta, ainda que pelas razões erradas. A imprensa serve aos fatos, não a projetos nacionais, muito menos àqueles em que o autocrata se proclama a encarnação da pátria, numa variação da velha fórmula regressiva em que o rei se oferece como o corpo místico da nação. Quando isso acontece, é hora de levantar a guarda e se preparar para o pior: nesse estágio contam os fanáticos, não mais os cidadãos; em vez de voto, pede-se genuflexão. A imprensa que faz o que deve é tachada de traidora. É a asfixia política.
É nesse cenário que surge a nova piauí. Antes de explicar o que muda, cabe ressaltar as consequências da mudança. Em duas palavras: autonomia radical. A partir de agora, a revista se descola dos seus fundadores, passando a operar com recursos de um fundo patrimonial doado ao Instituto Artigo 220 – o artigo da Carta de 1988 que consagra a liberdade de imprensa como mandamento constitucional. O instituto é uma associação civil que acaba de ser criada com o único propósito de respaldar o jornalismo rigoroso, independente e apartidário. Significa que a revista tem compromisso apenas com seus leitores, com seus profissionais, com o seu Conselho Editorial e, em termos amplos, com o bom jornalismo.
A atual degradação político-institucional brasileira não pesou nessa mudança, que já vinha sendo discutida fazia anos. Em 2012, chegou a ser tema de conversas com Fernando de Barros e Silva, na época em que ele assumiu a direção da revista, sucedendo Mario Sergio Conti. Levamos tempo para aprimorar o modelo. Calhou de ele vir à luz num momento em que responde a uma pergunta que não existia quando começou a ser pensado: como fortalecer um veículo de informação de modo a garantir que ele continue a fazer seu trabalho mesmo em contexto autoritário?
Se não há como eliminar por completo os riscos de asfixia financeira e política, é possível, sim, no caso, tomar providências para minimizá-los. Foi o caminho adotado. Com o fundo patrimonial, somado às receitas geradas regularmente pelas assinaturas, pela venda em banca e pelos anúncios, a piauí, a partir desta data, dispõe das condições materiais para seguir trabalhando no seu ritmo – editando a revista mensal, criando conteúdos diários online, produzindo podcasts. É certo que a próxima edição sempre estará na rua.
A essa dotação patrimonial feita em caráter irrevogável corresponderam alterações na estrutura de propriedade. As ações que controlam a revista foram transferidas para o Instituto Artigo 220, ao qual caberá, daqui por diante, determinar os rumos da publicação. Fará isso por intermédio de um conselho editorial composto majoritariamente por jornalistas, mas também por acadêmicos e empresários. O diretor de redação da piauí responderá ao conselho, e só a ele. Os nomes dos conselheiros já constam do expediente da revista.
A invenção formal que sempre buscamos agora diz respeito também à configuração jurídica e funcional da revista. Essa estrutura não tem similar na imprensa brasileira e é raridade também em outras partes do mundo. A bem da verdade, até onde pudemos saber, apenas o jornal inglês The Guardian funciona nesses moldes, com um fundo patrimonial constituído em 1936. (Não custa lembrar: o orçamento do Guardian segue dependendo dos leitores e dos anunciantes. O nosso também.)
Aos 15 anos de existência, a piauí se apresenta com solidez institucional, estabilidade e independência. São graus de autonomia que tornam difícil acuá-la. Uma forma de enxergar essa mudança é tomar a revista como um bem público. Ela não é mais propriedade de ninguém. Pertence a si mesma, o que significa que pertence à sociedade. De modo que vão aqui dois pedidos: aos nossos repórteres, que façam bom uso dela; aos nossos leitores, que os apoiem comprando, assinando, lendo, ouvindo, comentando, elogiando (de preferência) e criticando (com moderação) a nova piauí de sempre.