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    A exuberância do manto tupinambá: um sacerdote informou ao Vaticano que trocou hóstias por alguns desses trajes de penas de guará, os quais enviou de Pernambuco para Roma A TERRA É VIVA_DAIARA TUKANO_2021

questões indígenas

Longe de casa

O fascínio, a dor e os equívocos em torno dos mantos tupinambás na Europa

Elisangela Roxo | Edição 182, Novembro 2021

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Esqueça o Brasil verde e amarelo. Pense num Brasil vermelho – não o vermelho dos comunistas ou do PT, mas o do guará, um pássaro de bico longo, fino e recurvado. Ele habita quase todo o litoral, da faixa que vai de Santa Catarina até o Amapá. Cerca de 4,2 mil penas rubras da ave compõem um dos onze mantos tupinambás ainda existentes no mundo. O raríssimo exemplar é do século XVII, está bem conservado e repousa à meia-luz numa vitrine do Nationalmuseet, o Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague, cidade onde moro desde 2016. Brasileiros ancestrais confeccionaram o artefato há mais de 350 anos, possivelmente em algum lugar de Pernambuco, do Sergipe ou da Paraíba. Os outros dez mantos de que se tem notícia também estão em países da Europa. Quatro se encontram igualmente no museu dinamarquês, embora não estejam à mostra. Os demais ocupam instituições públicas de Bruxelas, Florença, Milão, Basileia e Paris. No Brasil, já não há nenhum.

Cálculos imprecisos de historiadores e antropólogos indicam que os tupinambás somavam entre 189 mil e 1 milhão de indivíduos no fim do século XVI. Eles dominavam uma extensa fatia da costa, que se alongava de Iguape, em São Paulo, até o Ceará. Quando não os matavam, os colonizadores os convertiam à fé cristã e deixavam de considerá-los indígenas. Assim, por muito tempo, a historiografia ocidental acreditou que os tupinambás haviam desaparecido. Em 2001, no entanto, a Fundação Nacional do Índio (Funai) reconheceu como membros desse povo os moradores de 47 mil hectares localizados no Sul da Bahia. Hoje, a área reúne 4 631 pessoas e se divide em 23 aldeias. Batizada de Terra Indígena Tupinambá de Olivença, avança pelos municípios de Ilhéus, Buerarema e Una, mas ainda não está totalmente demarcada.

Boa parte daquela população sonha com o retorno de pelo menos um dos mantos para o Brasil. Os tupinambás remanescentes jamais se esqueceram dos trajes, que julgam sagrados e evocam em narrativas transmitidas de geração a geração. No fim do século XX, ensaiaram um movimento para trazer as peças de volta ao Brasil. A iniciativa, porém, nunca decolou. Agora, “mantos alternativos” põem novamente em debate a expropriação material e simbólica que os indígenas do país vêm sofrendo desde o período colonial. Como resposta à impossibilidade de repatriar os preciosos vestuários, as artistas Glicéria Tupinambá e Daiara Tukano decidiram recriá-los, cada uma a seu modo. As indumentárias que produziram estão, respectivamente, na Casa da Lenha, em Porto Seguro (BA), e na 34ª Bienal de São Paulo.

 

O manto exibido no museu dinamarquês mede 1,2 metro de altura por 60 cm de largura. Possui um gorro e uma capa, que constituem um único traje. As penas de guará se encaixam sobre uma base de fibra natural, parecida com uma rede de pesca. Embora a incidência de luz seja controlada para manter vivo o vermelho da plumagem, a cor desbotou um bocado e já flerta com o laranja. A temperatura média da sala onde a relíquia se encontra gira ao redor dos 21ºC, e a umidade do ar oscila bastante, entre 25% e 75%.

O rubro original das penas derivava do caroteno, pigmento disponível nos caranguejos e camarões de que o guará se alimenta. A ave, cujo nome científico é Eudocimus ruber, também se tornou conhecida como íbis-escarlate. Quando adulta, tem aproximadamente 60 cm de comprimento. Não figura na lista dos animais em perigo de extinção, mas tampouco aparece com a mesma frequência de antes, em especial no Sul e no Sudeste do país, devido à caça descontrolada, coleta dos ovos e destruição dos manguezais onde vivem os crustáceos que o pássaro come. A presença da ave inspirou o nome dos balneários de Guaratuba e Guaraqueçaba, no Paraná, e Guarapari, no Espírito Santo. Em tupi antigo, a língua dos tupinambás, “guaratuba” significa “lugar onde existem muitos guarás”, “guaraqueçaba” quer dizer “local em que os guarás dormem” ou “ninho do guará”, e “guarapari”, algo como “viveiro de  guarás”.

No museu de Copenhague, o manto faz parte da mostra permanente Jordens Folk (Povos da Terra). O acervo etnográfico da instituição agrega nada menos do que 230 mil itens, entre joias, roupas, adereços, máscaras, esculturas, pinturas e múmias, advindos de inúmeros países: Estados Unidos, Peru, Colômbia, Equador, Panamá, Gana, República Democrática do Congo, Indonésia, Nova Zelândia… Dos 1,3 mil artefatos que saíram do Brasil, dezesseis são identificados como objetos tupinambás do século XVII. Além dos cinco trajes sagrados (o exposto e os quatro que se refugiam na reserva técnica), a pequena coleção tupi inclui cocares e fitas.

O manto em exibição descansa num pedestal metálico, sob uma redoma em formato de triângulo isósceles. Como se recepcionasse os visitantes, está logo na entrada de uma sala dedicada exclusivamente a peças brasileiras. Doze telas se distribuem pelo recinto. Oito mostram personagens do Brasil seiscentista, todos pintados pelo holandês Albert Eckhout. Digamos que o artista fez as vezes de Instagram para João Maurício de Nassau, o conde e militar alemão que governou a Capitania de Pernambuco entre 1637 e 1644, durante a ocupação neerlandesa do Nordeste. Eckhout integrava a comitiva do nobre e, junto de outro pintor, Frans Post, chegou aos trópicos com a incumbência de retratar a natureza, os hábitos e os moradores locais. Cumpriu a tarefa de maneira engenhosa, ainda que o aparente realismo de suas pinturas não tenha escapado do viés colonialista.

À direita do manto, podem-se ver os óleos sobre tela Mulher Tupinambá (1641) e Homem Tupinambá (1643). “Esses quadros, os mais fiéis de que se dispõe até o advento da fotografia, encerram uma alegoria baseada no senso comum da época: a ‘domesticação’ possível dos tupis”, escrevem as antropólogas Berta G. Ribeiro e Lucia H. van Velthem no capítulo Coleções Etnográficas, do livro História dos Índios no Brasil, organizado em 1992 por Manuela Carneiro da Cunha. A nativa retratada veste somente uma saia branca. Com o braço direito, segura uma cabaça e um bebê nu, enquanto equilibra uma cesta de palha na cabeça. Ela está de pé, sob uma bananeira e diante de uma fazenda, que se divisa ao fundo, bem longe. No outro retrato, o rapaz também está de pé e usa um calção igualmente branco. Carrega arco e flechas, às margens de um rio. No solo, perto do jovem, há um caranguejo e uma grande mandioca.

O museu define o manto como um “ornamento de penas de guará”, mas comete dois erros nas placas que o identificam. Diz que os tupinambás são “amazônicos” em vez de litorâneos e naturais da Mata Atlântica. Pior: afirma que se extinguiram.

 

No dia 15 de agosto de 2021, domingo, uma menina acompanhada da mãe observa o manto por uns segundos. O que vê? Seu rosto lembra o da adolescente e ativista sueca Greta Thunberg, mas a garota de Copenhague só tem 8 ou 9 anos. Ela cobre os cabelos loiros com o capuz de uma longa capa preta, que pode ser de super-heroína ou de mágica. Durante as duas horas em que permaneço na sala, a criança é a única visitante que dá alguma atenção à indumentária dos tupinambás. Mãe e filha decoram os pulsos com braceletes nas cores do arco-íris. Lá fora, o sol brilha fraco, evidenciando o fim do verão, e a cidade recebe a Parada do Orgulho LGBTQIA+.

Um casal de 50 e poucos anos admira há dez minutos os trabalhos de Eckhout. Eles miram os oito retratos, mas também três naturezas-mortas e o quadro Dança dos Tarairiús. A pintura exibe um grupo de indígenas nus, todos homens, que bailam em roda, com flechas e tacapes nas mãos. Duas mulheres peladas cochicham enquanto assistem à performance masculina. Um tatu se esgueira no canto direito da tela. “Não fazia ideia da existência desses quadros”, confessa a enfermeira holandesa Anita Stam. “À época, os europeus consideravam a nudez algo animalesco. A intenção do artista era reportar os indígenas como bárbaros”, explica em inglês a voz feminina que narra o vídeo sobre as obras. Quando conto que sou brasileira, a enfermeira me pergunta: “O que você sente ao olhar essas imagens?”

Além das telas com o rapaz e a moça tupinambás, a sala abriga os retratos de outros dois indígenas, representantes dos tarairiús, povo que habitava a Caatinga. Ambos, a mulher e o homem, estão nus na mata, cada um em seu próprio quadro. Ela traz às costas uma cesta com um pé humano e segura a mão decepada de alguém. Um ramo de folhas cobre sua vulva. O homem, por sua vez, ostenta um cocar de penas vermelhas, brancas e azuis. Tem adereços no rosto e um tacape na mão esquerda. Uma espécie de linha envolve seu pênis.

A sala ainda expõe os retratos de dois pretos, um homem e uma mulher. Ela, com os seios nus, posa junto de um garoto. “A espiga de milho na mão do menino e as frutas na cesta da moça simbolizam fertilidade e reprodução”, prossegue a narradora no vídeo. Eckhout também retratou dois portugueses. O homem segura uma arma de fogo. Na cintura, leva uma espada. A mulher carrega um cesto de flores.

 

A chegada dos mantos tupinambás à Dinamarca no século XVII continua repleta de enigmas. “Não sabemos quem os trouxe nem por quê”, afirma Mille Gabriel, responsável pelas coleções das Américas do Norte e do Sul no Nationalmuseet. A curadora e antropóloga, que não fala português, ocupa um escritório na ala nova do palácio onde fica o museu. O local dá acesso a um corredor oculto do público, que se localiza atrás dos objetos etnográficos da Groenlândia – território até hoje sob o guarda-chuva do reino dinamarquês, assim como as Ilhas Faroë, no Atlântico Norte.

As dezesseis peças tupinambás que pertencem à instituição foram inventariadas pela primeira vez por lacaios reais em 1689. Provavelmente, engrossavam a coleção de Frederico III. O monarca a iniciou em 1650, seguindo os passos de outros soberanos da Europa, que mantinham os chamados gabinetes de curiosidades ou quartos das maravilhas, onde juntavam diversas atrações: instrumentos científicos, antiguidades, obras de arte, pedrarias, conchas, animais empalhados, fósseis, esqueletos, herbários. Quanto mais raros e valiosos os itens dos acervos, maior poder e influência se atribuíam ao rei. Foi dos gabinetes de curiosidades que se originaram vários museus nacionais europeus.

Alguns antropólogos defendem a tese de que as peças tupinambás da coleção dinamarquesa vieram para o Velho Continente em 1644, na bagagem de Nassau, quando ele deixou de governar a Capitania de Pernambuco. Depois de sete anos longe da corte, o nobre precisava recuperar o status perdido. Por isso, em 1654, como um bom parente, ofertou 26 pinturas tropicais de Eckhout para o primo Frederico III. Talvez os mantos fizessem parte do presente. Em 1656, as telas passaram a decorar as paredes do castelo real.

 

Os tupinambás usavam os mantos de penas vermelhas em ocasiões formais, como as assembleias, os enterros de pessoas queridas e os rituais antropofágicos, a celebração mais imponente promovida por eles no período colonial. Tais rituais não se limitavam ao canibalismo. Eram, na verdade, uma cerimônia festiva e de cunho espiritual, que tinha sentido dentro de uma lógica muito própria de guerra e desforra. “Convém primeiramente que se saiba que [os tupinambás] não guerreiam para conservar ou estender os limites de seu país nem para enriquecer-se com os despojos de seus inimigos, mas unicamente pela honra e pela vingança”, alertou o religioso francês Claude D’Abbeville em 1614, quando visitou os indígenas no Maranhão.

Os prisioneiros de guerra chegavam a morar na casa de quem os capturava. Os anfitriões lhes cediam uma irmã ou filha como esposa. Assim, dava-se aos derrotados o direito de gerar descendentes e ampliar as próprias famílias. Os vencidos podiam ou não ser executados. O mercenário alemão Hans Staden, por exemplo, ficou sob o jugo dos tupinambás em Itanhaém e São Vicente, no litoral de São Paulo, e acabou sobrevivendo. Os nativos preferiram trocá-lo por facas, machados, espelhos e pentes com piratas franceses. Depois de driblar a “morte gloriosa”, como diziam os indígenas, Staden escreveu o livro A Verdadeira História dos Selvagens Nus e Ferozes Devoradores de Homens, Encontrados no Novo Mundo, a América […], publicado em 1557. A narrativa fez bastante sucesso na Europa, e as ilustrações assustadoras que a acompanhavam ajudaram a consolidar o imaginário colonial em torno da antropofagia. Staden, porém, não conseguiu enriquecer, já que não existiam direitos autorais na época. O que se sabe sobre o mercenário é que, após o regresso, ele trabalhou como fabricante de pólvora e morreu possivelmente em 1576, por causa de uma peste.

Quando os indígenas resolviam matar os cativos, a festa começava alguns dias antes da execução. Os vencedores recebiam os convidados das aldeias aliadas, dançavam e organizavam uma série de cauinagens, reuniões em que se tomava o cauim, bebida alcoólica feita de mandioca ou milho. Durante os festejos, os prisioneiros encenavam a própria captura. Depois, amarrados pela cintura com uma corda de algodão, a muçurana, eles ganhavam pedras, frutos e pedaços de cerâmica, que podiam atirar contra a plateia para se vingar do que iria lhes acontecer.

Na manhã da execução, ninguém mais tomava o cauim. “Levado ao terreiro, pintado e decorado, o cativo esperava seu carrasco que, portando um diadema rubro e o manto de penas de íbis-vermelha, aproximava-se de sua presa, imitando uma ave de rapina”, descreve o antropólogo Carlos Fausto no capítulo Fragmentos de História e Cultura Tupinambá, do livro História dos Índios no Brasil. Um ancião entregava o tacape (chamado de ibirapema) para o executor, que dizia ao condenado as seguintes palavras, de acordo com D’Abbeville: “Não sabes tu que tu e os teus mataram muitos parentes nossos e muitos amigos? Vamos tirar a nossa desforra e vingar essas mortes. Nós te mataremos, assaremos e comeremos.” O capturado, então, respondia: “Pouco me importa… Tu me matarás, porém eu já matei muitos companheiros teus. Se me comeres, farás apenas o que fiz eu mesmo. Quantas vezes me enchi com a carne de tua nação! Ademais, tenho irmãos e primos que me vingarão.” O carrasco desferia, por fim, o golpe fatal na nuca do inimigo.

As mais velhas da aldeia vinham imediatamente com cabaças para recolher o sangue da vítima. “Nada deveria ser perdido, tudo precisava ser consumido e todos deviam fazê-lo… Se a comida era pouca e muitos os convivas, desfrutava-se do caldo de pés e mãos cozidos; se, ao contrário, o repasto era farto, os hóspedes levavam consigo partes moqueadas”, conta Fausto. Somente o carrasco não comia porque iniciava uma fase de resguardo logo após o ritual, em que se abstinha de certos alimentos e do convívio social. Ele ainda recebia escarificações e tatuagens, além de um novo nome.

A cerimônia outorgava honra ao executor e ao sacrificado, que deveria ser lembrado para sempre tanto por seus familiares e amigos quanto pelo carrasco. Os tupinambás consideravam melhor morrer desse jeito, como um grande homem, do que dormindo ou de outras maneiras. O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro explica que os indígenas valorizavam a morte em rituais antropofágicos não apenas por ser heroica, mas por purificar o que se julgava a porção corruptível de alguém, o corpo físico. Se devorado pelos vencedores, o cadáver do vencido acabava poupado de apodrecer.

Depois de se converterem ao cristianismo, os tupinambás abdicaram da antropofagia. Em contrapartida, preservaram a tradição de envergar o manto em contextos espirituais, agora católicos. A pesquisadora norte-americana Amy Buono, da Universidade Chapman, defende que os jesuítas se envolveram diretamente no transporte de artefatos indígenas para as coleções europeias. Em 1610, o padre Jácome Monteiro relatou que nativos vestiam mantos de penas de guará enquanto eram batizados. O sacerdote ainda informou ao Vaticano que trocou hóstias por alguns daqueles trajes, os quais enviou de Pernambuco para Roma.

Curiosamente, a nobreza ocidental também lançava mão dos mantos tupinambás em solenidades. Maria Henrietta Stuart, princesa de Orange, foi retratada com a indumentária por cima de um vestido branco num baile de máscaras, realizado provavelmente em 1655, na cidade holandesa de Haia. Já um quadro do pintor Pedro Américo exibe dom Pedro II usando um dos mantos em 1872, no Rio de Janeiro, durante a abertura da Assembleia Geral.

 

“Eu acho que o espírito tupinambá permanece nos brasileiros”, declarou Lygia Pape numa entrevista de 2000. Em parceria com o crítico Mário Pedrosa, a artista fluminense – uma das percursoras do movimento neoconcreto – cogitou trazer de volta o manto exposto no Nationalmuseet para apresentá-lo numa mostra que ocorreria no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1979. Segundo Pedrosa, quando faz uma vestimenta como aquela, “o índio demonstra as qualidades de um artista sem saber que é artista, de um homem que vive na sua comunidade e, apesar de todas as pressões de fora, mantém sua individualidade, embora histórica e socialmente esteja condenado a desaparecer”. O sonho da dupla, contudo, virou cinzas em julho de 1978, devido ao incêndio que destruiu o MAM e inviabilizou a mostra.

Restou à artista materializar suas próprias versões do manto. A primeira nasceu em 1996 para uma exposição individual no Centro Cultural São Paulo. Pape colocou, no meio de uma sala vermelha, uma corda rústica caindo sobre um espelho coberto por baratas. “A ideia é resgatar a impossibilidade do índio brasileiro, mas sem muita retórica”, disse a artista na ocasião. “Já a barata não tem retórica nenhuma. Você olha e sente aquela repulsa. É um pouco a relação que, em geral, as pessoas estabelecem com o índio.”

A segunda interpretação do traje equivale a uma lona de veleiro retangular que, estendida no chão, é coberta por esferas de poliestireno revestidas com penas vermelhas. Em algumas esferas, há réplicas de ossos humanos debaixo das penas. Em outras, baratas e escorpiões de plástico. A instalação foi criada para a Brasil +500 Mostra do Redescobrimento, que em 2000 celebrou os cinco séculos da chegada dos primeiros colonizadores portugueses à costa brasileira. A terceira e última versão da roupa consiste numa foto em preto e branco da Baía de Guanabara, parcialmente obscurecida por uma nuvem avermelhada.

 

No livro O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho, o neurocientista Sidarta Ribeiro sustenta que, “quando o repertório de vivências acumuladas é vasto e sadio, os mais velhos se tornam os melhores conselheiros e líderes que uma comunidade pode ter, cuidando da coletividade com equilíbrio, visão panorâmica e zelo pelo futuro, tanto o imediato quanto o longínquo”. Foi justamente uma mais velha baiana quem contribuiu para a Funai atestar, em 2001, que os tupinambás não estavam extintos. Ela se chamava Nivalda Amaral de Jesus, mas carregava um nome ancestral, Amotara, que significa “querer bem a todos”.

Pelo menos desde a década de 1920, habitantes da área que hoje corresponde à Terra Indígena de Olivença buscavam ser reconhecidos como tupinambás e não só como “caboclos”. Em 1985, por exemplo, dois representantes do grupo, Duca Liberato e Alício Francisco do Amaral, levaram a demanda para Brasília, onde se encontraram com o então deputado federal Mário Juruna (PDT). Mais tarde, em fevereiro de 2000, moradores daquela região leram uma carta à sociedade brasileira durante um protesto em Porto Seguro: “Não aceitamos ficar à margem dos acontecimentos dos quinhentos anos, lembrados apenas nos livros de história e excluídos do direito à existência como povo Tupinambá de Olivença.”

Também em 2000, no dia 20 de maio, Amotara voou da Bahia para a capital paulista a convite da Folha de S.Paulo. A líder comunitária de Olivença tinha 67 anos e viajou com Aloísio Cunha da Silva, um vizinho duas décadas e meia mais jovem. No dia seguinte, domingo, a dupla se encaminhou à Mostra do Redescobrimento, a fim de ver um dos pontos altos da exposição: o manto tupinambá que o Nationalmuseet havia emprestado ao Brasil pela primeira vez. A bisavó de Amotara costumava mencionar um traje sagrado que permaneceu guardado “na igreja dos jesuítas” até ser levado embora, o que “deixou a aldeia fraca”. A bisneta estava convencida de que a roupa em questão era o manto importado de Copenhague.

A Folha acompanhou o passeio à mostra. “Somos tupinambás. Queremos o manto de volta”, afirmaram os visitantes para o jornal. A líder comunitária e o vizinho choraram diante do manto. Depois, ficaram um longo tempo em silêncio. “Foi um remorso que senti”, disse Amotara, na tentativa de explicar as lágrimas. “Não conseguimos fazer mais nada assim, uma veste que cai pelas costas. Agora entendo: quando os colonizadores levaram o manto, roubaram nosso poder – e, fracos, perdemos tudo”, lamentou Aloísio da Silva. Em frente à peça, os dois cantaram juntos: Eu vi gemer lá na mata, ê./Eu vi gemer lá na mata, á./Tupinambá é índio guerreiro/que Tupã deixou na Terra/para lutar pelo ideal./Eu vim de muito longe/pegar o que me pertence./Viva nosso pai Tupã/que ama muita gente. A visita aguçou as discussões da época sobre os tesouros que os europeus tiraram dos indígenas no período colonial.

Por coincidência, Amotara e o vizinho morreram em 2018. Puderam saborear o reconhecimento como tupinambás, mas não tiveram a satisfação de presenciar o retorno definitivo da vestimenta.

O Nationalmuseet já devolveu pertences de outros povos. Enviou crânios maoris tatuados para a Nova Zelândia e cerca de 35 mil peças para a Groenlândia. “O Brasil nunca pediu formalmente a repatriação do manto tupinambá. Se pedir, o assunto será avaliado por nosso Ministério da Cultura”, esclarece Christian Sune Pedersen, diretor de pesquisa do museu dinamarquês. Ele trabalha ali há uma década e diz que pretende atualizar a exibição das coleções etnográficas. A sala que reúne as peças originárias do Brasil não muda desde 1992. Por quase trinta anos, agrega os mesmos itens, expostos e identificados da mesma maneira.

Pedersen demonstra certo constrangimento quando comento que os tupinambás não se extinguiram nem são da Amazônia, ao contrário do que informa o museu. “Obrigado por nos avisar. Acho que podemos corrigir isso o quanto antes.” O diretor está ciente de que as mostras etnográficas da instituição já não se adequam à realidade contemporânea e necessitam de novas contextualizações. “Vivemos em plena era pós-colonial. No mínimo, as pessoas que moram nos lugares de onde os objetos vieram precisam ter mais acesso às nossas coleções”, admite. Não por acaso, em junho, o Nationalmuseet fechou uma parceria com o Museu Nacional do Rio para compartilhar digitalmente o acervo de itens brasileiros, inclusive o manto de penas vermelhas.

 

Em 1559, a região de Olivença assistiu à sangrenta Batalha dos Nadadores. O conflito dos colonizadores contra tupinambás e tupiniquins se iniciou depois do assassinato de um nativo por um homem branco. O próprio Mem de Sá, governador-geral do Brasil, participou dos confrontos. No livro O Retorno da Terra, a antropóloga Daniela Fernandes Alarcon escreve que o governador-geral relatou ter avistado, na Praia do Cururupe, uma fila de indígenas mortos que se prolongava por uma légua, o equivalente na ocasião a 6,6 km.

Também em Olivença, durante a década de 1930, viveu o Caboclo Marcellino, líder local que brigou pelos direitos daquela comunidade. Perseguido como bandido, ganhou da polícia o apelido de Lampião Mirim. Em 2008, numa dissertação de mestrado apresentada na Universidade Federal da Bahia, Patrícia Navarro de Almeida Couto transcreveu uma conversa que teve com Amotara: “Meu tio Damásio mesmo, eu estava assim assentadinha na porta, eu me lembro como se fosse hoje, quando eu: ‘Ó, vovó! Meu tio Damásio vem todo cheio de sangue!’ Foi quando ele correu os dedo dele, chegava vim tudo cheio de sangue, o soldado tirou as unha dele toda com um saibro. Tirou as unha, bateu e ainda tirou as unha dele toda assim no duro, no cru. E quando acabava, disse assim: ‘É pra descobrir, caboclo, onde Marcellino está!’”

Filha de Amotara, a cacica Valdelice Tupinambá, de 59 anos, se transformou na principal guardiã das recordações maternas. Seu nome ancestral, Jamopoty, lhe foi revelado em sonho e significa “florescer”. Ela conta que a maioria dos habitantes de Olivença continua desejando o retorno do manto de Copenhague, bem como a demarcação definitiva do território indígena. Semanalmente, Jamopoty reúne os netos em casa, numa roda de conversa, para relembrar histórias. A da relíquia na Dinamarca é uma delas. A cacica planeja abrigar a peça divina no futuro Memorial aos Mártires Tupinambás, um projeto discutido pela comunidade com a Prefeitura de Ilhéus, o governo da Bahia e o deputado estadual Marcelino Galo Lula (PT). “Tem que ser um lugar onde a gente também possa vender a nossa arte. Precisamos sobreviver”, pondera Jamopoty.

 

O regresso do traje não é mais uma questão para a artista Glicéria Tupinambá, da aldeia Serra do Padeiro, em Olivença. Ela conseguiu resgatar a técnica dos antepassados e teceu suas próprias vestimentas sagradas durante a quarentena provocada pela Covid-19. Um dos dois trabalhos integra a exposição coletiva Kwá Yapé Turusú Yuriri Assojaba Tupinambá/Essa É a Grande Volta do Manto Tupinambá, que recebeu o Prêmio Funarte Artes Visuais. Inaugurada em Brasília, na Galeria Fayga Ostrower, a mostra seguiu no final de outubro para a Casa da Lenha, em Porto Seguro, onde fica até 27 de novembro.

“Usei uma ‘cosmotécnica’”, afirma Glicéria, querendo dizer que aprendeu a confeccionar os mantos por intermédio de sonhos e visões. A artista de 38 anos também se valeu de conversas com os anciãos da comunidade. Nas peças, empregou milhares de penas amarronzadas, cinza, laranja e azuis de aves que frequentam a região, como galinha, pato, sabiá-bico-de-osso, pavão, canário-da-mata, peru e arara. Os moradores de Olivença se encarregaram de recolher as plumas perdidas naturalmente pelos pássaros. No capuz de um dos mantos, Glicéria só fixou penas de gavião. Pretendia, assim, conectar a cabeça de quem vestisse o traje com a perspicácia da ave de rapina.

Uma das inspirações para criar as obras surgiu em 2018, quando a artista visitou o Museu do Quai Branly, em Paris, e viu de perto o manto tupinambá do século XVI que pertence à instituição. De tão frágil, o artefato não podia sair da reserva técnica. “Tive um instante de ‘cosmoagonia’. Senti que o manto falava comigo, que estava à minha espera. Fiquei entre o presente e o passado. Consegui vislumbrar o momento em que minhas parentes do período colonial fizeram o traje, com plumas, algodão cru, cera de abelha tiúba e agulha de tucum, uma espécie de palmeira. Ali, no museu, comecei a entender aquela antiga técnica de tecelagem.”

Glicéria lastima que a história do Brasil insista em apagar as lutas das mulheres indígenas. “Geralmente somos mostradas como exóticas e sensuais ou como as responsáveis pela comida da aldeia. Esquecem que as mulheres dos povos originários são guerreiras. Se preciso, a gente parte para cima!”

A artista paulistana Daiara Tukano, filha de indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas, teve uma epifania semelhante assim que se defrontou com um manto tupinambá em Bruxelas. Foi há dois anos, no Museu Real de Arte e História. Registrado como “anterior ao século XVII”, o traje se encontrava numa redoma, de pé. O também artista Jaider Esbell, da etnia Makuxi, acompanhava Daiara. Os dois aspiraram rapé em frente à peça e lhe pediram proteção. Foram embora sentindo “uma força”, mas não ficaram em paz. Voltaram no dia seguinte, com maracás e mais rapé, dispostos a realizar uma cerimônia diante do vestuário. “Os belgas se assustaram. Temiam que depredássemos alguma coisa”, relata Daiara. Ao longo da celebração, enquanto rezava, ela percebeu “o manto vivo”. “Meu espírito lhe perguntou: ‘Como você está? Por que continua tão longe?’ E o manto respondeu: ‘Estou aqui, fazendo o meu trabalho. Vocês têm de fazer o seu.’”

A artista, que completou 39 anos, considera “um absurdo” os trajes permanecerem na Europa. “São patrimônios do Brasil!” Em 2020, surgiu a oportunidade de Daiara participar da primeira mostra com curadoria indígena na Pinacoteca de São Paulo, a Véxoa: Nós Sabemos. Ela resolveu, então, coser seu próprio manto, que agora está na 34ª Bienal. Deu à obra o título de Espelho da Vida.

Por respeito, antes de iniciá-la, telefonou para o cacique Babau Tupinambá, irmão de Glicéria, e indagou se podia reproduzir o traje sagrado. “Ele me autorizou. Disse que não tinha problema nenhum.” Em seguida, a artista foi à Rua 25 de Março, no Centro paulistano, e comprou 2 mil reais em penas de pato tingidas de vermelho, muito utilizadas na confecção de fantasias carnavalescas. “Costurei as plumas numa base de tule para que o manto ficasse leve e bem rodado, como o que vi em Bruxelas.” Na cavidade que seria ocupada pelo rosto de quem usasse a roupa, Daiara colocou um espelho redondo.

“A arte é um espaço político de luta constante, que proporciona visibilidade para certos grupos e invisibilidade para outros”, reflete a autora do trabalho. “Por séculos, o cânone artístico desprezou a expressão dos povos originários. Não à toa, sobram imagens de índios pintados pelos colonizadores ou de óperas em que os nativos aparecem derrotados. Ainda reina a ideia equivocada de que nós, os indígenas, fomos vencidos. Se tivéssemos sido completamente destruídos, não estaríamos aqui, né?” Diante de tudo isso, quando a enfermeira que visitava o Nationalmuseet me perguntou o que eu sentia ao olhar as imagens, me faltaram palavras para responder.