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O Caso Celso Daniel – novelo embaralhado

Série perde o rumo com episódios secundários e versões mirabolantes

Eduardo Escorel | 16 fev 2022_06h00
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A série em oito episódios dedicada ao assassinato de Celso Daniel, político do Partido dos Trabalhadores (PT), estreou vinte anos após o então prefeito de Santo André, município do ABC no sudeste da Grande São Paulo, ter sido encontrado morto dois dias após ser sequestrado. Seu corpo abatido a tiros foi largado, em 20 de janeiro de 2002, no chão de terra da Estrada das Cachoeiras, próximo à Rodovia Régis Bittencourt, no município de Juquitiba.

O crime e seus desdobramentos ocorreram no início do ano em que haveria eleições presidenciais, nas quais Lula veio a ser eleito presidente da República pela primeira vez. Coincidência ou não, a série vem de ser lançada oito meses antes da próxima eleição presidencial –“Estranhamente”, disse o presidente Lula ao programa Roda Viva, em 07/11/2005, “toda vez que vai chegando perto de um ano eleitoral, esse caso volta à tona, tentando transformar a vítima em algoz […].”

Segundo o ex-ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República (2011-2015) Gilberto Carvalho afirma, no final do episódio 1 (49’36”) de O Caso Celso Daniel, “havia [em 2002] o sentimento de que o establishment não nos aceitava justamente em função do risco de Lula ganhar a eleição”. Neste mês de fevereiro, por sua vez, a pesquisa estimulada Genial/Quaest indica 46% de intenção de voto em Lula no 1º turno, e 54% no 2º turno, no cenário em que o atual presidente é o candidato adversário – índices que tornam Lula franco favorito neste momento.

Haveria da parte dos criadores de O Caso Celso Daniel a pretensão de influir no resultado da próxima eleição presidencial de outubro? Difícil responder ao certo. No entanto, faltando apenas seis meses para o início oficial da campanha, trazer a público a controvérsia em torno das motivações do assassinato de Celso Daniel no mínimo agrava a responsabilidade dos produtores e autores, dada a possibilidade de voltar a se fazer uso político de questões levantadas sobre a arrecadação de recursos para o PT em Santo André.

Imagem: Reprodução/Internet

Considerando a barafunda em que o caso foi transformado na época, seria de se esperar que O Caso Celso Daniel conseguisse fazer, passadas duas décadas, ao menos, relato circunstanciado dos fatos relacionados ao crime em si e procurasse elucidar as implicações políticas do evento para um público amplo. Mais do que mera sucessão misturada de acontecimentos, a expectativa legítima que havia era de assistir a um esforço de compreensão do que ocorreu e das motivações dos envolvidos. Não é essa, lamentavelmente, a substância do que O Caso Celso Daniel tem a oferecer.

Com base nos seis primeiros episódios, uma vez que os dois últimos só estarão disponíveis amanhã (17/2), a criação do Estúdio Escarlate, produzida por Joanna Henning e apresentada como original Globoplay, parece ter perdido o rumo ao ser detalhista, incluindo eventos pouco relevantes, episódios secundários e versões mirabolantes cuja falsidade já foi atestada. Com direção de Marcos Jorge, também autor do roteiro em parceria com Bernardo Rennó, a série resultante desse procedimento, que pretende esgotar o caso, narrada com sucessivas idas e vindas no tempo ao longo das cerca de 5 horas a que assistimos, tornou-se um novelo embaralhado árduo de acompanhar.

Carente de reflexão crítica, O Caso Celso Daniel se limita a acumular informação, constituindo um desafio para ser entendida, mesmo para quem havia alcançado a idade da razão na virada do século e tem algum conhecimento prévio dos fatos. Faz falta à série um viés propriamente documentário, na acepção hodierna do termo que pressupõe, entre outras características, empenho para compreender o que é observado nas gravações e depois estruturado na edição. Isso permitiria dar visão mais profunda das situações apresentadas e das motivações dos personagens.

Recorrendo a inúmeras entrevistas originais, além de a reportagens e programas gravados de arquivo, O Caso Celso Daniel lança mão também de encenações bem realizadas e eficazes. Tuca Andrada se destaca no papel de Sérgio Gomes da Silva, conhecido como Sombra, assessor de Daniel que dirigia o carro quando o prefeito foi sequestrado e chegou a ser indiciado depois pelo Ministério Público de São Paulo, acusado de ser o mandante do assassinato.

Dramatizações feitas com animação destoam, porém, das cenas gravadas com atores. O estilo impessoal, o tom das vozes e o esquematismo próprio dessas encenações animadas, como a do sequestro, por exemplo, chocam-se com o restante dos registros e abalam a credibilidade do que está sendo narrado.

A prioridade dada para acumular eventos e seguir adiante o mais depressa possível leva O Caso Celso Daniel a abandonar pelo caminho indicações dadas pelos entrevistados que parecem importantes e mereceriam ser investigadas a fundo. Penso, por exemplo, no que diz Marilena Nakano, ex-secretária de Educação, Cultura e Esporte de Santo André, cunhada de Daniel, no episódio 3 (aos 30’37”): “O ovo da serpente parece ter nascido na época em que Celso foi candidato a deputado federal [em 1994]. Nesse momento que a campanha dele não decolava, ele aceitou algo que, eu imagino, que dali para frente ele não conseguia mais se soltar, né? É mais ou menos como os meninos que eu trabalho na favela. Se eles entram no mundo do crime, sair do mundo do crime significa sair dentro de um caixão.”

No mesmo sentido, sobressai a declaração de Rosângela Gabrilli, filha do empresário de transporte Ângelo Gabrilli, no mesmo episódio, um pouco adiante (36’35”): (em off) “Logo no começo de [19]97 quando o Celso ganhou [Daniel foi eleito pela segunda vez para a Prefeitura de Santo André e exerceu o mandato de 1997 até 2002, tendo sido prefeito antes de 1989 a 1993], em seguida já foi feito […] chamado uma reunião com os empresários [de transportes] na qual participou o Sérgio Sombra. (in) Meu pai estava também, e quando o Sérgio disse a eles todos que a partir daquele momento haveria uma contribuição para o Partido [corte de Rosângela para a mão de uma pessoa não identificada pondo uma pistola sobre a mesa. Fica claro que se trata do Sombra]. Nessa reunião, o que mais deixou meu pai chocado foi o revólver na mesa, ostensivo, sabe?… do Sombra chegar na reunião e botar o revólver na mesa […] e o valor era estipulado por ônibus. Então, quantos ônibus cada empresa tinha ia ter que se pagar esse valor mensal, proporcional, dentro dessa empresa […] meu pai se sentiu extorquido.”

A encenação de Sérgio Sombra pondo o revólver sobre a mesa havia sido vista antes, no final do episódio 2 (aos 48’28”), acompanhada por uma entrevista da atual senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) em que ela diz: “[…] o Sérgio Sombra chegava, ele jogava o revólver em cima da mesa. Falava: ‘Cadê o dinheiro? […]’”

O plano encenado da pistola sendo posta sobre a mesa parece corroborar o relato de extorsão a mão armada, mas não é objeto de maior atenção na série em seguida. Daniel Lima, jornalista, ex-diretor de redação do Diário do Grande ABC, apenas esclarece que (39’34”) “o PT não inaugurou esse sistema de [arrecadação de fundos]. Muito pelo contrário. Apenas absorveu o que já vinha. Adaptou às suas ideias, às suas metodologias, e o aplicou.”

Declarações de Gilberto Carvalho e Bruno Daniel, irmão de Celso, no final do episódio 3, revelam a origem da divergência entre, de um lado, a tese dos procuradores do Ministério Público e, de outro, a dos delegados do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), corroborada pelo relatório final sobre o crime, feito pelo delegado Armando de Oliveira Costa Filho, do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), para explicar a motivação do assassinato – crime político para os primeiros, crime comum segundo a polícia.

Ressalte-se que o fato do sequestro de Daniel ter sido mesmo casual e seu assassinato um crime sem motivação política, não exclui a possibilidade que houvesse prática de caixa 2 e arrecadação de recursos para o PT junto aos empresários de transportes de Santo André. O que permanece dúbio é se havia e qual era o grau de envolvimento de Daniel com esse esquema.

Se houver razão para alguma correção ou acréscimo a esta coluna farei isso na próxima quarta-feira, 23 de fevereiro, após ter assistido aos dois episódios finais de O Caso Celso Daniel.

 

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