CREDITOS: ADRIANA ALVES_2022
O triângulo brasileiro
Um bairro de imigrantes perto de Washington
Paulo Lyra | Edição 186, Março 2022
O bairro de Wheaton, a trinta minutos de carro de Washington, tem um comércio dinâmico, espaços públicos modernos e prédios residenciais com fachadas coloridas. É também o único subúrbio da capital norte-americana onde se pode fazer compras, comer e rezar em português.
Não era assim quando me mudei para lá com minha família, em 1999. Wheaton era um lugar desolador. O supermercado cheirava mal. As fachadas das lojas estavam em estado deplorável. Faltavam padarias decentes e restaurantes agradáveis. Sobravam lojas de colchões e revendedoras de carros usados. Um camelô vendia calotas de carro na calçada, expondo-as na carroceria de um ônibus velho.
Wheaton faz parte da cidade de Silver Spring, no estado de Maryland. O centro do bairro é um triângulo formado pelo cruzamento de três grandes vias – Veirs Mill Road, Georgia Avenue e University Boulevard – que dão acesso aos subúrbios ajardinados da região. Fomos morar às margens desta última via, para ter acesso rápido à Universidade de Maryland, onde minha mulher fazia mestrado. De nossa casa até o centro de Wheaton era um pulo, cerca de 800 metros. Até o campus, eram 15 km, sem precisar mudar de pista.
Morávamos em uma casa geminada de arquitetura vitoriana, estilo comum nos centenários subúrbios de Londres, mas totalmente deslocado naquele lugar, tanto mais porque a construção tinha apenas dez anos. Fomos os primeiros moradores da casa: o banco havia retomado o imóvel do proprietário por falta de pagamento antes mesmo que ele se instalasse. Como nosso bairro ficava no alto de um morro, tinha três imensas caixas d’água e quatro torres de transmissão de rádio. Bem próxima de nós ficava a torre da WTOP, a emissora de rádio de Washington. A potência que emitia era tão forte que a fiação elétrica da casa captava a transmissão e era possível escutar o noticiário colocando o ouvido nas paredes de gesso.
Foi por acaso que, alguns meses depois da nossa mudança, descobri no Centro de Wheaton uma lojinha chamada Brazilian Market. Era um local simpático e bem-arrumado, em um conjunto comercial recém-construído na Grandview Avenue – que, apesar do nome pretensioso, não passava de uma ruela sem tráfego e sem atrativos visuais.
A fachada da Brazilian Market exibia um nacionalismo heterodoxo. O amarelo dominava, mas um azul-piscina substituía o verde para combinar com o restante do edifício. Uma foto gigantesca de quitutes nacionais (incluindo pizzas) cobria a janela da loja, acompanhada do slogan A little corner of Brasil (Um cantinho do Brasil). Assim mesmo, com o nome do país grafado com “s”, em vez de “z”, talvez para confundir os gringos.
A Brazilian Market emitia passagens aéreas, fazia remessas de dinheiro para o exterior e vendia produtos do país. Na mercearia, era possível encontrar todos os ingredientes para a musse de maracujá, uma sobremesa brasileira muito popular entre os norte-americanos. Em um balcão ao fundo, os brasileiros – que muitas vezes iam até lá com camisas da Seleção – podiam matar a saudade do brigadeiro e do pão de queijo. Mas o local também tinha clientes fixos norte-americanos, como os voluntários do Corpo de Bombeiros, que passavam à tarde para um cafezinho. Na sobreloja funcionava um salão de beleza.
Quem comandava a Brazilian Market era Vanessa de Freitas, mineira de Belo Horizonte que se mudara para os Estados Unidos depois que o Plano Collor, lançado em 1990, levou ao fechamento da empresa de navegação onde ela trabalhava. Após passar por vários empregos, Freitas resolveu abrir o próprio negócio e escolheu Wheaton porque o bairro ficava entre Washington e Baltimore, duas cidades onde viviam seus parentes.
Passaram-se mais alguns meses, e tive outra surpresa. Uma gigantesca bandeira do Brasil apareceu no cruzamento do University Boulevard com a Georgia Avenue, o vértice do triângulo mais perto de casa. Debaixo dela, um letreiro indicava uma nova loja, a Minas Travel. Era um estabelecimento um pouco menor que a Brazilian Market, mas localizado em uma das esquinas mais movimentadas do bairro, não em uma via transversal escondida. Sua fachada envidraçada chamava a atenção, com os produtos brasileiros expostos lá dentro. Mesmo do carro era possível avistar as garrafas de guaraná nas prateleiras, como se fossem um elixir para curar o mal do exílio. A loja contava com um pequeno estacionamento em frente, e logo os fregueses brasileiros passaram a disputar uma vaga e até a brigar por ela.
O dono da Minas Travel era Ronaldo Freitas, comerciante mineiro que vivia no estado de Nova Jersey, de onde vinha com frequência para fiscalizar o negócio. Diz a lenda que, em uma visita a Washington para tratar de assuntos pessoais, ele deu uma esticada a Wheaton para conhecer a Brazilian Market. Não gostou do atendimento e desentendeu-se com a dona. Saiu da loja dizendo que iria mostrar a Vanessa de Freitas “como se faz um negócio que sabe atender bem o cliente”.
Outro mineiro, Carlos Rocha, natural de Diamantina, esteve à frente da Minas Travel por dezenove anos, primeiro como gerente e depois como proprietário. Quando adquiriu a loja, mudou o nome para By Brazil e reorientou o foco dos negócios, sempre mantendo a mercearia e a lanchonete como âncoras. Inicialmente, a principal fonte de lucro da loja eram as remessas de dinheiro para o Brasil. O movimento era tão bom que, no aniversário da loja, Rocha sorteava um carro entre os clientes. Com o advento da internet, muitas transferências passaram a ser feitas online. Ele então começou a vender roupas e acessórios femininos, mas não deu certo – e a seção butique foi fechada. Também investiu no aluguel de fitas VHS com novelas brasileiras, porém o interesse despencou quando os imigrantes começaram a ter acesso direto às emissoras, via satélite. A mercearia e a lanchonete resistiram e prosperaram, atravessando todos os “ciclos econômicos” da By Brazil.
Com o tempo, Rocha ficou conhecido em Wheaton como uma voz amiga, disposta a ajudar com conselhos a quem precisasse. Como lidava com dinheiro, trabalhava em uma pequena sala, com a porta sempre fechada, a poucos passos do balcão da mercearia onde ficava o burburinho. Na saleta, decorada com certificados de técnico de remessas, depois de tratar com os clientes sobre valores e taxas de transferência, escutava os dramas pessoais deles: separações, dívidas, brigas de família. Rocha acabou tornando-se conselheiro de toda uma geração de brasileiros, muitos deles sem visto de trabalho. Só faltava o diploma de psicólogo na parede.
Em 2006, em outro vértice do triângulo – a interseção da Georgia Avenue com a Veirs Mill Road –, o painel na fachada da igreja batista local passou a anunciar missas bilíngues, em inglês e português. Uma congregação religiosa brasileira havia convencido a igreja do potencial que os imigrantes na região representavam. Foi nos cultos realizados ali que alguns recém-chegados começaram a aprender inglês. A iniciativa entusiasmou tanto os membros originais da igreja que alguns deles foram depois para o Brasil em missões evangelizadoras. A missa bilíngue estimulou também a amizade e até alguns casamentos entre norte-americanos e brasileiros.
Antes de a Brazilian Market e a By Brazil surgirem em Wheaton, era a um mercado português em Gaithersburg, a trinta minutos de carro dali, que os brasileiros de Washington recorriam para comprar picanha – corte incomum nos Estados Unidos – e linguiça para o churrasco. Wheaton era mais perto e passou a oferecer mais, inclusive itens de primeira necessidade, como os bombons Sonho de Valsa e perfumes do Boticário. Um cliente não se conteve de alegria ao encontrar na By Brazil o refrigerante Mate Couro, típico de Belo Horizonte. Quis comprar o estoque todo e quase brigou com o gerente, que se recusou a vender.
Além dos mercados, havia os salões de beleza brasileiros de Wheaton, onde as manicures “faziam a cutícula” (nos Estados Unidos é mais comum empurrá-las, e não as extrair). Com o tempo, os mercados passaram a fornecer comida e bebida para eventos realizados pelas representações diplomáticas e militares do Brasil – há seis escritórios delas em Washington. Brasileiros em visita à capital federal reservavam uma tarde para conhecer aquele oásis. O juiz Sergio Moro visitou o bairro em 2021, quando residia em Washington.
Em um domingo recente visitei o Brazilian Place, um restaurante inaugurado em 2017 na University Boulevard. Fica perto do supermercado Las Americas, que vende de canjiquinha a picanha, enviada por um fornecedor que corta o boi à brasileira. A fachada do restaurante, coberta com painéis de cores vibrantes – verde e amarelo –, dá a impressão de que estávamos às vésperas da Copa do Mundo. Dentro, o local lembra um restaurante de beira de estrada, exceto que não há estresse – todos chegaram ao seu destino. O bufê custa 25 dólares o quilo ou 30 dólares com churrasco, que é oferecido aos fins de semana. O balcão de aço do self-service oferece tudo o que um brasileiro exilado precisa para ser feliz, da farofa à feijoada, passando pela rabada e a banana frita.
Uma família e amigos ocupavam uma mesa comprida do Brazilian Place para celebrar um aniversário. Mais discretos, ao fundo, quatro funcionários do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) terminavam de saborear uma carne “boa e barata” (para os padrões norte-americanos). “O arroz aqui é mais soltinho”, disse-me um deles. Antes da pandemia, havia samba e pagode aos domingos na churrascaria, que ficava aberta até de madrugada, algo incomum nos subúrbios norte-americanos. Mas ainda hoje é possível passar a noite bebendo cerveja e petiscando ali, como num boteco carioca.
A “colonização” brasileira de Wheaton deve muito aos mineiros, que desde as últimas décadas do século XX começaram a ocupar áreas do nordeste dos Estados Unidos, como Boston, capital do estado de Massachusetts, e Newark, a cidade mais populosa de Nova Jersey. Para a primeira, foram principalmente imigrantes de Governador Valadares; para a segunda, gente de todo o Vale do Rio Doce, do Jequitinhonha e do Triângulo Mineiro. Wheaton recebeu a segunda onda desses fluxos a partir dos anos 1990, e isso se refletiu na rivalidade do comércio local. Ronaldo Freitas, primeiro dono da Minas Travel, foi de Governador Valadares para Newark, e em seguida abriu um negócio em Wheaton. Na Brazilian Market trabalhava uma família mineira que havia se mudado de Boston por causa das insistentes batidas policiais contra imigrantes.
Há diferenças políticas significativas entre as diásporas brasileiras para os Estados Unidos, bastando observar como os imigrantes votaram nas eleições presidenciais de 2018. Jair Bolsonaro ganhou com folga nas cidades norte-americanas, mas no segundo turno a sua porcentagem de votos em Washington, incluindo o bairro de Wheaton (69%) foi menor que em Boston (86%). Washington tem hoje 2 073 eleitores, contra 11 786 de Boston.
A outra diferença é social. Em Washington, há brasileiros de todas as classes sociais, embora predominem dois grupos. O primeiro é formado por funcionários dos organismos internacionais, muitos deles economistas de meia-idade que vivem em torno de Bethesda ou na própria cidade – a quinta com mais pessoas com doutorado per capita –, a cerca de dez minutos de carro de Wheaton. O outro grupo é constituído pelos “faz-tudo” – pedreiros, encanadores –, faxineiras e cabeleireiras, pessoas em geral mais jovens, às vezes sem visto de trabalho. Muitas moram em Silver Spring, cuja renda per capita anual é de 44 mil dólares (cerca de 224 mil reais), metade da de Bethesda.
As pessoas dos dois grupos têm contato frequente. Em muitos casos, as últimas trabalham para as primeiras. Embora não morem em Wheaton, umas e outras, quando vão fazer compras no bairro, parecem não se importar com as diferenças sociais, pois estão mais interessadas em matar saudades do Brasil.
Nos anos 1960, a proximidade de Washington e a disponibilidade de espaço tornaram Wheaton um laboratório urbano. O bairro ganhou a primeira agência postal automatizada do país e o primeiro shopping center da capital federal. Na semana de abertura, o shopping recebeu meio milhão de visitantes. Em 1963, foi inaugurado um centro de atividades juvenis, no qual, dizem, a banda britânica Led Zeppelin fez seu primeiro show nos Estados Unidos. Cinco anos mais tarde, em resposta ao racismo que ainda perdurava nos clubes locais, Wheaton foi o local escolhido para abrigar a primeira piscina pública inter-racial do condado.
Os grandes projetos dessa época não tiveram continuidade nas décadas seguintes. Outros shoppings, mais modernos e próximos dos bairros ricos, foram abertos na região, e entre os anos 1980 e 1990 Wheaton entrou em decadência. Mesmo a chegada do metrô, em 1990, que trouxe esperanças de renovação, não produziu resultados imediatos. Foi exatamente nessa época que os brasileiros começaram a chegar.
É difícil dizer quando Wheaton voltou a prosperar. Agora, prédios coloridos dominam o horizonte do bairro e o centro voltou a ser uma área residencial. Em fevereiro havia 86 apartamentos para alugar no triângulo formado pelas três avenidas. Um escritório governamental foi recentemente inaugurado ali, com novecentos funcionários.
Agentes imobiliários apregoam Wheaton como o “novo Adams Morgan”, o eclético bairro de Washington, famoso por suas casas de música ao vivo e seus restaurantes de culinária internacional. Ambos os bairros são predominantemente latinos. De acordo com um levantamento de 2019, o espanhol é a primeira língua de 41% dos moradores, e o maior número de imigrantes vem do menor país da América Latina, El Salvador. Mas Wheaton se distingue pela pegada brasileira. A atração que o bairro exerce sobre os latino-americanos não deixa de ter um lado irônico, se lembrarmos que o nome do bairro é uma homenagem ao militar Frank Wheaton (1833-1903), que tanto fez para criar as fronteiras atuais dos Estados Unidos: participou da demarcação da fronteira com o México, guerreou contra os índios e lutou ao lado da União, contra os confederados, na Guerra Civil Americana (1861-65), chegando a general.
Aqui, uma confissão: fui espectador das transformações de Wheaton, mas não um ator. Que eu saiba, minha família era a única do Brasil que morava perto do triângulo. Mas não comprei quase nada nas lojas brasileiras. Tenho aversão a paçoca e não sinto falta das guloseimas do país. Além disso, recém-chegado aos Estados Unidos, eu sentia pânico de, numa visita aos mercados, ter que abordar em português alguém que só falava inglês ou dirigir-me em inglês a um brasileiro. Medo de ofender, de parecer estúpido, sei lá. Se é verdade que todos temos uma pequena antropofobia, essa é a minha.
Em 2010, nos mudamos para Bethesda. Minha filha, nascida em Wheaton, tinha 9 anos. Uma semana antes da mudança, levei-a para almoçar na pizzaria Ledo. Era a despedida do nosso lugar. Ela adorava as pizzas retangulares servidas ali, com a massa fininha e molho de tomate adocicado. Eu gostava do ambiente familiar. Quando pedia um chope, o cozinheiro nos servia, porque as garçonetes eram menores de idade. Em Maryland, os garçons e garçonetes só podem levar cerveja à mesa a partir dos 18 anos, e uísque, a partir dos 21 anos.
Em contraste com a pudica pizzaria, a loja ao lado era um lugar de balada, com música alta, paredes pintadas de vermelho, um salão de bilhar com luz baixa e cerveja vendida à farta – seis garrafas long neck por 18 dólares. Mas o empreendimento, que não era de brasileiros, não sobreviveu à pandemia. Em 2021, o imóvel foi alugado para a Igreja Universal do Reino de Deus, que pintou as paredes de branco e transformou o salão de bilhar em um auditório com capacidade para cem pessoas. É a sexta filial da igreja na região e a primeira voltada para a comunidade de língua portuguesa. O templo fica perto do terceiro vértice do triângulo – o último a ser conquistado pelos brasileiros. Do lado de fora, há um poste no qual tremula uma bandeira verde e amarela. É o Brasil acima de tudo.