O engenheiro Louis Pouzin: em meados dos anos 1970, ele foi descartado pelo governo francês, mas seguiu em suas pesquisas, mantendo contato às escondidas com centros universitários CREDITO: FERNANDO EICHENBERG_2021
O guru do datagrama
Como a França jogou no lixo a chance de inventar a internet
Fernando Eichenberg | Edição 186, Março 2022
Em 1988, o presidente francês François Mitterrand anunciou a criação em Paris da “maior e mais moderna biblioteca do mundo”, com as “tecnologias mais avançadas de transmissão de dados”. Composta de quatro torres de vidro, a ambiciosa edificação projetada pelo arquiteto Dominique Perrault ocuparia uma área de 7,5 hectares à beira do Rio Sena, no bairro Tolbiac. Sete anos depois, no apagar das luzes de seu mandato, Mitterrand inaugurou oficialmente o local – mas sem os livros. Coube ao seu sucessor e rival, Jacques Chirac, abrir as portas da nova Biblioteca Nacional da França com os livros e documentos (atualmente, cerca de 14 milhões).
Na inauguração em 17 de dezembro de 1996, preparada com zelo e pompa, Chirac foi levado para perto de um computador, a fim de acompanhar uma demonstração sobre as funcionalidades da internet na biblioteca. Em dado momento, ele interrompeu seu interlocutor e perguntou: “Mouse? O que é mouse?” A gafe foi exibida num dos principais telejornais franceses e viralizou nos meios da época, inspirando até esquetes de programas humorísticos. Por anos, a cena ficou na memória dos franceses – e a pecha de ignorante do mundo da informática perseguiu Chirac até o fim de sua vida. “Ele ficou completamente traumatizado pelo affaire do mouse”, contou uma assessora do ex-presidente.
O episódio seria apenas anedótico se não tivesse sido precedido, duas décadas antes, por um acontecimento que levou a França a perder o bonde do mouse. Em meados dos anos 1970, o país desperdiçou a chance histórica de inventar o sistema que revolucionou o mundo contemporâneo – a internet. Decisões equivocadas do governo francês entregaram de mão beijada aos norte-americanos um dos elementos essenciais para o surgimento da rede mundial de computadores: um modelo de datagrama – pacote de transmissão de dados – desenvolvido por Louis Pouzin, um engenheiro francês com pouco mais de 40 anos na época.
Pouzin atravessou as décadas seguintes praticamente no anonimato. Conhecido apenas por alguns poucos especialistas que estudavam suas pesquisas pioneiras, passou a ser “o homem que não inventou a internet”, como o definiu o jornal Le Monde, em 2006. Somente em 2003 houve um sinal de reconhecimento tardio, quando ele foi nomeado Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra pelo governo francês. Mas a condecoração, além de ter pouca repercussão mundial, já não servia para encobrir o fato de que a França ficara para trás na história e que os Estados Unidos haviam assumido, desde os anos 1990, a dianteira da World Wide Web (WWW, rede mundial de computadores). “Nem eu nem você, nenhum de nós todos inventou a internet”, disse o historiador Andrew Russell, especialista nas origens da internet, do Instituto Politécnico Suny, em Utica e Albany, no estado de Nova York. “Mas, de todos nós que não a inventamos, Pouzin tinha todas as chances de fazê-lo.”
O reconhecimento público internacional de Pouzin ocorreu somente em 25 de junho de 2013, quando, aos 82 anos, ele recebeu das mãos da rainha Elizabeth II um prêmio britânico criado no ano anterior para recompensar inovações da engenharia de grande importância para a humanidade. A primeira edição do Prêmio Rainha Elizabeth de Engenharia laureou, além de Pouzin, outros quatro pioneiros da internet: o britânico Tim Berners-Lee, e os norte-americanos Vinton Cerf, Robert Kahn e Marc Andreessen.
Berners-Lee foi o criador da WWW, o sistema que possibilita a troca de informações entre inúmeros computadores em rede, por meio de navegadores. Cerf e Kahn inventaram os protocolos ECP (Transmission Control Protocol/Protocolo de Controle de Transmissão) e IP (Internet Protocol/Protocolo de Internet), dois padrões de comunicação que, juntos, possibilitaram que diferentes computadores pudessem se comunicar. Andreessen, o outro homenageado, participou da criação de dois navegadores: o Mosaic, o primeiro a dispor de uma interface multimídia (capaz de transmitir não só textos, mas também sons e imagens), e o Netscape, o primeiro a fazer um uso comercial desse modelo de interface. Ciente de que Pouzin era o menos conhecido dos homenageados, a revista The Economist brindou o engenheiro francês na época com uma extensa reportagem cujo título era: The Internet’s Fifth Man (O quinto homem da internet).
“Ela foi muito simpática, a rainha”, contou Pouzin à piauí, sobre a cerimônia no Palácio de Buckingham, em Londres, ressaltando que o prêmio não alterou em nada o olhar da França sobre seu pioneirismo. “Se mudou algo, foi para pior. O prêmio irritou os cientistas franceses da informática. Eles imaginavam ter inventado alguma coisa, mas nunca tiveram um reconhecimento como esse. São todos professores universitários, e eu alcancei a área científica sem ter o status de pesquisador”, disse o engenheiro, sem conter o riso, sentado no sofá de sua casa com um de seus dois gatos no colo, o pardacento Príncipe de Plourhan.
Louis Pouzin tem 90 anos e vive em Plourhan, um vilarejo de pouco mais de 2 mil habitantes aninhado na Costa da Bretanha, no noroeste da França. O jardim de sua casa, bem cuidado por sua companheira, Chantal, hospeda cinco tartarugas do Mediterrâneo (Testudo hermanni). Os indolentes inquilinos contradizem tanto o açodado cotidiano das sociedades modernas quanto a animada trajetória do anfitrião.
Filho de uma família modesta, Pouzin nasceu no vilarejo de Chantenay-Saint-Imbert, na região central. Seu pai, Fernand, era dono de uma serraria e chegou a perder dois dedos de uma das mãos no trabalho. “Era um homem da madeira. E eu poderia ter trabalhado com ele no maquinário”, diz Pouzin. Uma de suas tias, Joséphine, muito religiosa, queria que ele fosse padre, mas quem decidiu o futuro do menino foi sua mãe, Jeanne. “Ela achou melhor que eu me tornasse engenheiro e me fez entrar na Escola Politécnica, em Paris.”
Na mais famosa escola de engenharia da França, o jovem Pouzin se distinguiu também pela destreza em copiar chaves e romper fechaduras. Era uma aptidão de grande utilidade para ele e seus colegas em regime de pensionato, que podiam transgredir os horários da instituição, esticando as noitadas. Certa vez, com a ajuda de um grupo rebelde, Pouzin retirou à noite as enormes portas de madeira da administração da escola e as escondeu no porão. Foi punido com uma semana de confinamento em um dormitório destinado a estudantes “delinquentes”.
Com o diploma de engenharia em mãos, empregou-se na Compagnie Industrielle des Téléphones (CIT), em 1956. Durante uma visita à Exposição de Indústrias e de Comércio de Escritório, deparou com os computadores da multinacional IBM e da francesa Compagnie des Machines Bull (que futuramente se fundiria à General Electric e, depois, à Honeywell, ambas norte-americanas). Ficou entusiasmado com as máquinas, enfileiradas como enormes armários metálicos. Pouzin telefonou, então, para um departamento da Escola Politécnica que cuidava das carreiras dos alunos recém-formados e disse que queria trabalhar com aquelas máquinas – o conceito da “informática” só seria criado no ano seguinte, em 1957, pelo pesquisador alemão Karl Steinbuch, reunindo as palavras “informação” e “automática”. “Eles me responderam que era um setor sem futuro. Isso me convenceu de que na França eu não encontraria as boas respostas.”
Em 1957, Pouzin conseguiu empregar-se como engenheiro da Bull. De olho nas chances de pesquisa que teria fora de seu país, começou a aprender inglês na escola Berlitz. Em 1963, pediu um período sabático no emprego e embarcou com mulher e filhos para Boston, nos Estados Unidos, a fim de trabalhar no renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Lá, especializou-se em programação de sistemas computacionais e se inteirou sobre a noção de compartilhamento de tempo (time sharing), que é a possibilidade de um computador revezar a utilização do processador entre diversas tarefas distintas – o que permite a execução de múltiplos programas ao mesmo tempo e evita que o processador fique ocioso –, uma novidade na época. No MIT, Pouzin chegou a criar um programa de automatização de comandos (sem necessidade de alguém ficar controlando as longas e repetitivas tarefas), que batizou de Shell. O programa foi adotado mais tarde pelas equipes do instituto. A experiência norte-americana foi seu primeiro contato com a informática real, e não meramente teórica, e lhe acendeu a vontade de se dedicar às redes de transmissão de dados.
De volta a Paris e à Bull, em 1966, Pouzin fez várias conferências em cidades europeias sobre o novo sistema de compartilhamento de tempo. Desenvolveu também, para o serviço de meteorologia francês, um dos primeiros programas capazes de fazer previsões climatológicas em “tempo real”. Graças ao conhecimento que acumulara, ao prestígio conquistado no meio científico e à sua personalidade singular, vivaz e de humor provocativo, Pouzin foi convidado a dirigir o centro de pesquisas Cyclades, em 1972.
O Cyclades era uma das ramificações do chamado Plan Calcul (plano cálculo), lançado em 1966 pelo presidente Charles de Gaulle para assegurar a autonomia francesa em tecnologias da informação. Tratava-se de um plano estratégico para a França e, por isso, resultou na criação de vários organismos de estímulo à produção e ao uso de computadores nos setores público e privado, como o Departamento-Geral para a Informática (DGI) e uma empresa privada financiada pelo Estado, a Compagnie Internationale pour l’Informatique (CII).
Mas à nova política industrial faltava o ramo da inovação – e o governo tirou da manga, em 1967, o Instituto de Pesquisa em Informática e Automação (Iria, na sigla em francês), onde foi criado o Cyclades. O nome, copiado do arquipélago grego de cerca de 250 ilhas, no Mar Egeu, encarnava um objetivo parecido com o das embarcações que fazem as ligações insulares: inventar um sistema para conectar numerosos e distintos computadores em uma só rede.
A ideia do governo francês era realizar um projeto de ponta que respondesse às crescentes demandas por redes digitais unificadas na França e na Europa. Já havia muitos sistemas militares e de dados – como os da rede ferroviária, dos bancos e das companhias de seguros –, mas essas organizações queriam interconectar seus computadores para fazê-los trabalhar em rede. Os norte-americanos vinham tentando fazer o mesmo, por meio dos computadores fabricados pela IBM e pela Control Data Corporation. Para enfrentar o quanto antes a concorrência dos Estados Unidos, o governo De Gaulle (de 1959 a 1969) arquitetou a formação do consórcio europeu Unidata, uma aliança entre a CII francesa, a holandesa Philips e a alemã Siemens.
Os escritórios do Cyclades ficavam em Rocquencourt, nos subúrbios de Paris, num lugar que servira de quartel-general do Exército norte-americano logo após a Segunda Guerra Mundial. Em 1972, ao assumir o comando do Cyclades, Pouzin montou uma equipe escolhida a dedo – eram seus mosqueteiros da informática, que ficariam conhecidos como os cyclamen ou Pouzin’s boys. “Eu não tinha ideia do que era uma rede de computadores. Sabia que o objetivo era fazer uma rede heterogênea, intercomunicável, um conceito completamente novo”, conta o engenheiro Jean-Louis Grangé, especializado em informática e o primeiro cyclaman a ser recrutado, hoje com 77 anos. “Não imaginava o que poderia se tornar esse projeto. Quando começamos, eu nunca tinha ouvido falar de Arpanet, ao contrário de Pouzin.”
A Arpanet era uma rede experimental de conexão de computadores que começara a operar nos Estados Unidos em 1969. Havia sido criada inicialmente com objetivos militares pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (Arpa, na sigla em inglês), para o Departamento de Defesa norte-americano, mas depois passou a ser pesquisada por cientistas em centros universitários. Para a transmissão de dados, a primeira versão da Arpanet recorria a uma tecnologia chamada comutação de circuitos virtuais, que estabelece uma rede de transmissão fixa e previamente calculada, como um só caminho para cada pacote de dados chegar ao seu destino, de maneira ordenada. O próprio Pouzin explica o sistema, fazendo uma comparação imagética: seria como se os dados fossem levados por caminhões numerados, sem pressa e em ordem por uma estrada única. Embora esse processo fosse lento, era visto como bastante confiável.
Ainda antes de sua primeira demonstração pública, a Arpanet passou a utilizar outro tipo de transmissão, chamada comutação de pacotes, ou datagramas. Nesse caso, o arquivo – por exemplo, uma mensagem escrita – era dividido no momento do envio em unidades básicas de transferência de dados, os datagramas. Cada datagrama continha um endereço de destino e poderia seguir por um percurso distinto do de outro datagrama, dependendo das linhas de transmissão que estivessem menos congestionadas. Ao chegarem ao destino, os pacotes eram imediatamente reagrupados e organizados pelo receptor, graças aos protocolos de transmissão – que permitem a intercomunicação dos computadores. Como se as palavras da mensagem, enviadas fora de ordem, ao chegarem ao receptor, se juntassem para formar o texto original enviado – ou, seguindo a imagem de Pouzin, como se os caminhões fossem com os dados por diferentes estradas, evitando as congestionadas, e ao chegar se organizassem todos como na ordem da partida.
Foi nesta última direção que seguiu o engenheiro francês em sua pesquisa – em vez da comutação por circuitos virtuais, a comutação por pacotes ou datagramas.
O sistema de comutação por pacotes utilizados pela Arpanet recorria a IMPs (Interface Message Processor), computadores especializados responsáveis por fragmentar a mensagem original em datagramas e reorganizá-los novamente antes de entregá-los em ordem ao computador do destinatário.
Pouzin acreditava – e tinha razão – ser possível formatar um sistema de datagramas puros, ou seja, que não precisaria recorrer a IMPs nem a computadores intermediários. A lógica de rede (no ordenamento dos pacotes) poderia ser feita diretamente pelas máquinas finais, dos usuários, graças a protocolos especificamente criados para controlar o fluxo e corrigir erros de transmissão. No sistema por ele almejado, o computador do usuário receberia diretamente do emissor os pacotes com pedaços da mensagem e saberia por si só como formar o texto final completo. Uma das grandes vantagens do modelo proposto por Pouzin é que não seria necessário comprar novos equipamentos para conectar computadores ou redes já existentes, o que tornava o processo muito mais rápido e barato.
O conceito do datagrama havia sido alinhavado entre 1963 e 1967 por três pesquisadores, em diferentes centros de pesquisa: Paul Baran, do laboratório de ideias da Rand Corporation, em Santa Mônica (Califórnia), Leonard Kleinrock, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, ambos norte-americanos, e Donald Davies, galês que trabalhava no Laboratório Nacional de Física, do Reino Unido. O termo “datagrama”, por sua vez, fora criado pelo engenheiro de telecomunicações norueguês Halvor Bothner-By (1938-2014), a partir das palavras data, dados e telegrama. Nenhum deles, porém, havia realizado uma verdadeira etapa experimental da comutação por datagramas puros – o que Pouzin se propôs a fazer. Com os cyclamen, mergulhou de cabeça no projeto.
Em outubro de 1972, a Arpanet fez a primeira demonstração pública de sua rede experimental durante a Conferência Internacional de Comunicação de Computadores, em Washington. O engenheiro francês estava presente. Em novembro de 1973, um ano após Pouzin assumir o Cyclades, o centro de pesquisa fez para o governo da França a primeira demonstração de sua rede à base de datagramas puros, batizada de Cigale (cigarra, em francês). Três computadores foram colocados em rede, um em Rocquencourt, outro na CII, em Paris, e o terceiro na Universidade Grenoble, no sudeste do país. Dois anos depois, seguindo a mesma tecnologia, 25 computadores foram interconectados nos principais centros de pesquisa franceses, além de outros em Roma e Londres.
Para defender seu modelo de transmissão via datagrama e fazer demonstrações da Cigale em congressos e feiras internacionais, Pouzin multiplicava viagens pela Europa e pelos Estados Unidos. Compensava sua diminuta estatura – que no futuro lhe renderia o epíteto de “mestre Yoda da internet” (alusão ao sábio personagem de 66 cm de altura da saga Guerra nas Estrelas) – com uma oratória carismática e uma franqueza iconoclasta que cativavam as audiências para a sua causa, mas também somavam inimigos. “Isso sempre foi algo espontâneo em mim. Sempre dizia as verdades com uma certa mordacidade. Se não temos inimigos é porque não fizemos nada de importante”, afirma.
Um de seus principais alvos era a multinacional norte-americana IBM, que ele acusava de almejar o monopólio dos computadores em um sistema fechado, o SNA (systems network architecture), cujo padrão não permitia a compatibilidade com demais máquinas. Outro alvo eram as redes por comutação de circuitos virtuais, na sua opinião uma tecnologia que seria ultrapassada, porque não teria capacidade de suportar o enorme afluxo de transmissões de dados que estavam sendo reivindicados pelas crescentes redes digitais – do que só seria capaz a rede por comutação de pacotes de datagramas. De novo, ele tinha razão, pois a princípio a rede por comutação de circuitos virtuais não daria conta do que estava por vir.
Pouzin estava convencido de que era viável criar uma “rede das redes” por meio dos datagramas puros, capazes de interconectar sistemas heterogêneos, com linguagens de programação e tipos de computadores que não seriam forçosamente idênticos. Em maio de 1974, apresentou na Universidade Brunel, em Londres, esse conceito de rede e lhe deu um nome: “catenet” (a partir de catena, corrente em latim). Sua previsão era de que, proximamente, a catenet permitiria interconectar redes em formação nos Estados Unidos (como a Arpanet), na Europa e em outras partes do mundo. Em 1978, Vinton Cerf, um dos inventores dos protocolos ICP e IP, publicou o documento The Catenet Model for Internetworking (O modelo catenet para a interconexão de redes), no qual tratou das ideias de seu colega francês sobre o datagrama. A catenet foi uma das primeiras concepções da internet tal como a conhecemos.
Quando Cerf publicou seu texto, Pouzin já havia sido descartado pelo governo francês. A sua crescente notoriedade e da rede Cigale no meio científico fora da França fermentou tensões com engenheiros do Centro Nacional de Estudos das Telecomunicações (Cnet), laboratório estatal subordinado aos Correios, Telégrafos e Telefones (PTT, na sigla em francês), órgão de governo com status de ministério, que controlava o sistema de telecomunicações do país. O Cnet desenvolvia na época sua própria rede computacional, chamada Hermès, baseada em circuitos virtuais – que era mais lenta, com os “caminhões” andando todos por uma única estrada, mas cuja conexão ponto a ponto facilitava a faturação e, portanto, a rentabilidade.
Duas visões inconciliáveis entraram em conflito na França. Cyclades pregava a criação de uma rede heterogênea de computadores baseada na comutação de pacotes ou datagramas. E o bloco das estatais de telecomunicação na França, com o PTT à frente, condenava a aplicação desse sistema, dizendo que era inseguro, incapaz de fornecer proteção à transmissão dos dados. “Para o PTT, a ideia de comutação de pacotes era quase criminosa”, diz Pouzin. Na sua visão, a estatal temia que a tecnologia pudesse levar a uma desconfiança generalizada em seus serviços e à perda de monopólio que tinha no país.
A chegada de Valéry Giscard d’Estaing à Presidência da França, em 1974, decidiu o embate entre os campos da informática e das telecomunicações. O novo mandatário deflagrou um desmonte do Plan Calcul de Charles de Gaulle, extinguindo a DGI e criando o Departamento de Indústrias Eletrônicas e Informática. A nova política de governo enfraqueceu a pesquisa em informática, marginalizou o programa Cyclades e fortaleceu o grupo das telecomunicações.
Pouzin estava em uma feira de informática na Alemanha quando soube do golpe fatal. “Foi uma surpresa para mim”, diz. Ele conta que havia acabado de convencer os alemães a colocar um software Cyclades em um de seus computadores para provar que o programa podia ter um uso multilateral e não se limitava a uma máquina francesa. “Então, um colega nos deu a notícia do fim da DGI. Os alemães se espantaram tanto quanto eu. Fiquei enojado. Nunca vi muita gente séria na política.” Para Pouzin, os responsáveis pelo bloqueio faziam parte da “velha geração”, que a seu ver não tinha competência para levar adiante a inovação. “Eram incapazes de criar novas ideias e mudar as que estavam em curso. É um problema essencialmente francês, de mentalidade”, diz ele, sublinhando que a geração atual, em formação, é “mais aberta e crítica”.
Em 1975, o governo D’Estaing autorizou a fusão da CII – a empresa privada francesa criada no governo de Charles de Gaulle e financiada pelo Estado – com a francesa Bull e a norte-americana Honeywell. A nova companhia se chamou Honeywell Bull e tornou-se a segunda maior fabricante mundial de computadores, atrás da IBM. A operação sabotou o consórcio europeu Unidata, do qual participava a Siemens, um dos principais concorrentes da Honeywell Bull. Embora não tenha sido oficialmente suspenso, o projeto Cyclades ficou na prática sem meios para continuar operando. Pouzin viu secar os recursos para o desenvolvimento de sua rede de datagramas e desaparecer todo apoio governamental e industrial.
Na época, ele acusou publicamente os Correios, Telégrafos e Telefones de terem assinado um “pacto” contra o datagrama para conquistar o mercado e tornar os usuários reféns de seus sistemas. A declaração provocou a ira de seus próprios chefes e dos operadores de telecomunicações – e Pouzin recebeu uma ordem oficial da direção do Iria, o instituto ao qual o Cyclades estava ligado, para que interrompesse suas pesquisas.
Mas o engenheiro prosseguiu, mantendo contatos às escondidas com centros de universidades e outras instituições. Uma de suas filhas, Stéphanie, contou que, em 1976, quando tinha 6 anos, costumava espiar as experiências do pai, feitas na própria casa. “Ele fazia testes com amigos americanos. Era tarde da noite, e aquelas palavras que apareciam na tela do computador [transmitidas por um outro computador], sem que ninguém tocasse no teclado, tinham algo de mágico”, contou ela na biografia Louis Pouzin: L’Un des Pères de l’Internet (Louis Pouzin: um dos pais da internet), escrita por Chantal Lebrument e Fabien Soyez. Depois de definhar lentamente, o Cyclades foi completamente encerrado em 1978.
No mesmo ano, a Hermès, rede de circuito virtual da estatal Cnet, mudou de nome. Passou a se chamar Transpac e viria a ser utilizada, em 1980, no Minitel (sigla em francês de Meio Interativo por Digitalização de Informações Telefônicas), um inovador serviço informático de comunicação e transmissão de dados que dois anos depois se tornou acessível aos franceses em geral.
O sistema Minitel se valia, para a intercomunicação, de um aparelho ligado à rede telefônica, constituído de uma pequena tela e um teclado. Por meio dele, as pessoas podiam trocar mensagens, consultar o catálogo telefônico, acessar serviços de informação dos jornais, adquirir passagens aéreas ou de trem, fazer alguns tipos de compras e até participar de chats de namoros, entre outras atividades. O serviço era pago, e o custo mensal era calculado conforme o tempo de utilização pelo usuário. Numa época em que a internet ainda estava em estágio experimental nos laboratórios de pesquisa e os computadores pessoais eram uma raridade, o Minitel foi visto como um grande avanço nas comunicações e um emblema do avanço tecnológico da França. E conseguiu se tornar bastante popular no país, alcançando um pico de 6,5 milhões de aparelhos em 1993.
As características de base do Minitel, porém, restringiam a sua evolução. Tratava-se de um projeto com data de vencimento, o que não passou despercebido ao teórico da informação Bruno Lussato que, em 1988, alertou: “Dizem que o mundo inteiro nos inveja o Minitel. Não sei se nos inveja, senhores, mas em todo caso posso dizer com certeza uma coisa: o mundo não quer comprá-lo de nós.” Uma década depois, o então primeiro-ministro Lionel Jospin vaticinou: “O Minitel, uma rede exclusivamente nacional, é tecnologicamente limitada e corre o risco de constituir um freio ao desenvolvimento de novas e promissoras aplicações de tecnologia da informação.”
Com a popularização da internet, que permitiu aos usuários acessar um conjunto imenso de informações em termos globais, e não apenas nacionais, o aparelho francês começou a cair em desuso no país – até ser definitivamente desligado em 30 de junho de 2012. As palavras de Jospin se comprovaram na realidade: a aventura do Minitel acabou atrasando a pesquisa e a introdução da internet na França. Como herança, o aparelhou deixou a expressão “síndrome do Minitel”, que até hoje designa qualquer caso similar de desatualização tecnológica no país.
Enquanto os franceses se distraíam nos terminais do Minitel, do outro lado do Atlântico os norte-americanos pavimentavam a estrada para uma rede mundial de computadores. E, embora Pouzin não estivesse ao lado deles, o engenheiro tinha dado grande contribuição à conquista. Em 1983, a Arpanet substituiu o protocolo que vinha usando e adotou em sua rede os protocolos tcp/ip, que recorrem à comutação de pacotes utilizando datagramas puros, como os da rede Cigale. Essa mudança foi o passo fundamental para a consolidação da internet. Em um artigo publicado em maio de 1974 na revista científica ieee Transactions on Communications, os cientistas da computação Robert Kahn e Vinton Cerf, criadores dos protocolos TCP/IP, haviam citado o Cyclades e agradecido a contribuição de Pouzin, entre outros pesquisadores. Foi Cerf, aliás, quem apelidou Pouzin de “guru dos datagramas”.
No dia 25 de março de 2013, o escritor francês Éric Reinhardt leu uma pequena nota no jornal Libération que informava que o engenheiro Louis Pouzin seria condecorado pela rainha da Inglaterra por sua contribuição para o desenvolvimento da internet. A notícia deixou o escritor boquiaberto – ele nunca tinha ouvido falar de Pouzin. “Na hora, pensei: ‘Que estranho!’ Eu não sabia que um francês havia colaborado para isso”, contou Reinhardt, de 56 anos, à piauí. “Comecei, então, a me perguntar por que a França não teve nenhum papel na criação da internet e da sociedade digital. Alguma coisa deve ter acontecido, talvez uma decisão política equivocada. Houve certamente um homem, em um gabinete, que tomou a decisão errada e disse não. Foi uma intuição de escritor.”
Um dos romancistas mais celebrados da França, Reinhardt decidiu investigar, à maneira de um repórter, os detalhes da história, a fim de encontrar o momento exato em que foi dado o passo em falso e o homem preciso que influíra na decisão equivocada. E encontrou. O verdugo de Pouzin foi Ambroise Roux, industrial que dirigiu a partir de 1970 a Compagnie Générale d’Electricité (CGE), umas das mais poderosas empresas privadas da França, criada em 1898 para disputar os mercados públicos da eletrificação no país.
Roux era por si só um personagem romanesco. Amante da boa mesa e dos charutos, era um monarquista assumido que assistia todo ano à missa de aniversário de morte do rei Luís XVI, guilhotinado em 1793, durante a Revolução Francesa. “Tudo nele transpirava passado: o prenome, o terno de três peças, a calça puxada até acima do umbigo, o dedo enfiado no pequeno bolso do colete, o colarinho longo e pontudo, o vocabulário obsoleto, o monarquismo assumido, a concepção balzaquiana dos negócios” – assim Roux foi descrito pelo jornal Libération, pouco após sua morte, em 1999.
Lobista influente nos círculos palacianos, Roux temia a ameaça que os pesquisadores da informática representavam às generosas verbas que recebia do Estado pela venda de material para a infraestrutura das telecomunicações. Reinhardt não tem dúvidas de que o industrial preferia o cheque gordo e certo do Minitel do que as incertezas do datagrama de Pouzin. Com o mercado das telecomunicações no bolso, Roux passou a contar também com as demandas do Minitel para ampliar seus negócios. Na época, as perspectivas de ganhar dinheiro com redes digitais de computadores, de fato, ainda eram uma incógnita.
Além disso, um dos maiores concorrentes de Roux era o empresário Paul Richard, dono da Thomson-CSF, grupo industrial de eletrônica e informática, e um dos principais acionistas da CII e do consórcio Unidata, da época de Charles de Gaulle.
“Os grandes senhores das telecomunicações viam com maus olhos a invasão de seu território pelos recém-chegados da informática”, diz Reinhardt. “Penso que a decisão do presidente Giscard d’Estaing de descartar o datagrama foi também uma forma de arbitrar essa rivalidade em favor do velho establishment das telecomunicações, colocando-se ao lado de Ambroise Roux, que ajudou a convencer o presidente a enterrar o Plan Calcul.”
A história de Pouzin e da descoberta da intriga palaciana que tirou dos franceses a chance de inventar a internet acabaram por servir a Reinhardt como matéria ficcional. Em 2020, ele lançou pela editora Gallimard o romance Comédies Françaises (Comédias francesas), narrando em 477 páginas a saga do jovem e idealista repórter Dimitri para desvendar como um engenheiro francês, responsável pelo sistema de transmissão de dados que é a base da revolução digital, foi bruscamente interrompido em suas pesquisas pelos poderes públicos em 1974.
As cordas vocais de Reinhardt vibram com maior intensidade quando ele discorre sobre as escolhas do governo naquele ano e a oportunidade perdida com o datagrama de Pouzin. Seu raciocínio é linear: como a internet resulta da reunião do datagrama com a WWW (a rede mundial de computadores), ela poderia ter sido uma invenção europeia, uma vez que Tim Berners-Lee (o criador da WWW) era britânico e trabalhava no Conselho Europeu para a Pesquisa Nuclear (CERN), em Genebra, na Suíça. “É revoltante pensar que, pelas manipulações de um grande empresário e a falta de visão de altos funcionários e políticos franceses, a internet acabou sendo criada nos Estados Unidos.”
A epopeia leva Reinhardt a especular sobre as diferenças de comportamento entre franceses e norte-americanos – a passividade dos primeiros e o espírito de conquista e dominação dos segundos. Conforme seu raciocínio, os Estados Unidos teriam a faculdade de explorar terrenos desconhecidos e criar novos mundos, dotados de forte pragmatismo e anseio de eliminar os concorrentes. Já a França seria uma civilização muito antiga, que se contenta em ver frutificar suas velhas conquistas, comportando-se de maneira provinciana.
Pouzin disse que não leu Comédies Françaises porque prefere obras de não ficção, mas Chantal, sua companheira, leu e assegurou que é bastante fiel à realidade, no que diz respeito às disputas travadas na época do datagrama. Na França, a publicação do livro reavivou antigas rivalidades nos campos da informática e das telecomunicações, com direito a troca de farpas na imprensa, em sites e nas redes sociais. “O pessoal das telecomunicações ficou furioso e promoveu uma espécie de campanha contra o meu livro, acusando-o de ser um amontoado de mentiras e de meias-verdades”, diz Reinhardt. “Há anos que eles perseguem Pouzin com sua cólera e seu espírito de vingança. Mas é algo que me deixa completamente indiferente. Meu romance não tem nenhuma contradição. Ninguém pode negar que o datagrama foi desenvolvido por Pouzin e que foi abandonado pelos poderes públicos franceses. É um fato incontestável.”
O engenheiro nunca encontrou Ambroise Roux pessoalmente, mas afirma ter conhecimento de sua atuação nas trincheiras do poder para torpedear o Cyclades. Jean-Louis Grangé, o primeiro cyclaman contratado por Pouzin, chama a atenção para a influência do magnata nas altas instâncias da administração pública. “Roux era, certamente, uma personalidade muito poderosa e contribuiu na decisão do presidente Giscard d’Estaing, mas não fez tudo sozinho”, afirma. “O Departamento-Geral das Telecomunicações [estatal criada em 1941, durante o regime colaboracionista de Vichy, para tornar a França autônoma no setor de telecomunicações] era um Estado dentro do Estado, com o monopólio absoluto das linhas telefônicas, alugadas a preço de ouro. Parar o Cyclades de um dia para o outro causou grandes estragos. Não quero dizer que o Google e o Facebook teriam surgido na França, caso isso não tivesse ocorrido. Mas pode-se afirmar com certeza que o papel da França e da Europa teria sido outro na criação e no desenvolvimento da internet.”
Para Pouzin, o destino do Cyclades demonstra a incapacidade da França de apoiar projetos inovadores capazes de transformar o mundo e inscrever o país no futuro. Mas ele tem outros exemplos dessa inaptidão, e cita um bem recente: o desenvolvimento de vacinas contra a Covid. A França foi o único membro permanente do Conselho de Segurança da ONU a malograr na elaboração de um imunizante contra o novo coronavírus, fracasso que é atribuído à progressiva redução de recursos públicos e humanos para a pesquisa, à tradição acadêmica centralizadora, aos programas de financiamento burocráticos e a políticas que deixaram de priorizar pesquisas tecnologicamente avançadas. E o fiasco não se deu somente com as vacinas. “Tivemos um atraso estúpido com as máscaras, os respiradores, a formação de enfermeiros… Foi um cataclismo terrível, que não era inevitável”, diz o engenheiro.
Hoje, o tempo de Pouzin é medido por seu relógio de pulso Withings. Para seu desespero, o mecanismo do aparelho desregula constantemente. “Está sempre adiantando a hora. Ajusto no horário certo, mas, quando vejo, já avançou novamente”, conta. O relógio parece em sintonia com o espírito do seu dono.
O nonagenário Pouzin continua insistindo na inventividade visionária e encampou novos embates. Defensor de uma internet livre e aberta, criou em 2012 a startup Open-Root, que oferece nomes de domínio na rede de forma definitiva, por um valor mínimo, para quebrar a hegemonia norte-americana da Icann, a Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números. “Há muitas transformações pela frente”, anuncia ele. “Na governança da internet, as mudanças já são muito visíveis. A ideia de um sistema mundial dirigido pelos norte-americanos acabou. A informática no futuro será algo bem diferente. E nem será mais chamada de informática.”
A França do século XXI faz o que pode para se manter no topo das tecnologias digitais, mas nos corredores do poder ou mesmo nas conversas de café haverá sempre quem se lembre do mouse de Jacques Chirac, da síndrome do Minitel ou de como o país abriu mão do revolucionário datagrama de Louis Pouzin.