Montagem de Amanda Gorziza sobre fotos de acervo pessoal/Geovane da Silva Santos
“Ah, mãinha… mãinha”
O assassinato do menino Jonatas, que só viu a praia três vezes
A comunidade do Engenho Roncadorzinho, em Barreiros, a 110 km do Recife, é formada por 77 famílias. São 450 pessoas – entre elas, 150 crianças. O antigo engenho é um lugar bonito. Tem 694,64 hectares cobertos pelo verde vivo formado por árvores, plantação de cana e pequenas roças. Mas tem uma história enroscada. Pertenceu à Companhia Açucareira Santo André do Rio Una, chamada por todos na região apenas de Usina Santo André. Em 1966, a empresa faliu. As famílias dos agricultores que moravam e trabalhavam no engenho havia quatro décadas não receberam indenizações trabalhistas, e não tinham para onde ir. Incluídas entre os credores da massa falida, ficaram por ali, plantando suas lavouras. Há dez anos, uma outra empresa, Agroindustrial Javari Ltda., arrendou o engenho. Os camponeses, então, começaram a fazer relatos de que eram pressionados para sair, porque a nova usina queria expandir a plantação de cana também pelo terreno agora ocupado pelas pequenas roças familiares. A tensão foi aumentando. Há três anos, a Agroindustrial Javari entrou com uma ação judicial pedindo a reintegração de posse. Em outubro do ano passado, o Tribunal de Justiça de Pernambuco impediu o despejo dos agricultores, determinou um esforço de conciliação entre as partes e despachou o caso para um de seus núcleos especializado em mediações. Quando receberam a notícia, os moradores do Roncadorzinho comemoraram.
No dia 10 de fevereiro, por volta das 21 horas, sete pistoleiros encapuzados invadiram a casa de Geovane da Silva Santos, de 51 anos, que preside a Associação dos Agricultores Familiares do Engenho do Roncadorzinho. O caçula de Santos, Jonatas, um menino de 9 anos, foi assassinado quando se escondeu embaixo da cama, com a mãe. A polícia ainda apura as razões do crime. Mas a principal linha de investigação é a de que teria sido uma vingança contra Santos por ter se recusado a vender a terra onde morava para um grupo de traficantes da região, interessados em fazer ali uma criação de cavalos. O líder rural, no entanto, tem repetido que jamais recebeu qualquer proposta para vender suas terras. Pelo que tem de brutal, a morte de Jonatas se transformou em símbolo da barbárie que domina as disputas de terra no Brasil.
Por meio do Zoom, Santos falou à piauí. Estava na casa de sua mãe em Roncadorzinho. Mudou-se para lá, com a mulher, Marlene Maria de Oliveira, e a filha de 15 anos, logo depois do crime. É uma construção de taipa, como quase todas no engenho. “Se alguém tocar na parede, cai”, define Santos. Do lado de fora, policiais enviados pelo governo de Pernambuco faziam uma proteção de 24 horas e por período ainda indefinido. Santos chorou em vários pontos de conversa, especialmente quando lembrou de detalhes de sua relação com o filho. Em alguns momentos, foi ajudado de longe por Marlene Oliveira. Ela passava atrás dele, às vezes ficava um pouco, depois seguia adiante. “Não consigo falar disso por muito tempo. Alguma coisa dentro de mim dá um esmorecimento, uma fraqueza, uma tontura”, explicou ela. Coube a Santos recontar os detalhes do dia em que seu menino morreu:
Eu nasci e me criei no Engenho Roncadorzinho. Meus avós eram daqui, meus pais nasceram aqui, meus nove irmãos também. Uma irmã minha já faleceu, um irmão foi para outra área rural, os outros sete também moram aqui na comunidade. É todo mundo agricultor. Estudei até a terceira série. Com 16 anos, comecei a fazer ficha para trabalhar. Com essa idade, já tinha que cair na luta para achar um rumo. Fui logo mexer com cana-de-açúcar — cortando, limpando, aplicando herbicida, fazendo a moagem, esses serviços do campo. Todo mundo aqui trabalhava para a indústria açucareira Santo André. Quando ela parou e fechou, ficamos abandonados, sem receber nada, sem ter para onde ir. Aí a gente ficou resistindo na terra. Começamos a plantar para ter o que comer, a fazer a lavoura branca. Vamos ajeitando uns pezinhos de banana, fazendo uma covazinha de batata e cará, plantando uma macaxeira ou milho — e vamos levando. O tempo foi alargando e a gente foi permanecendo na propriedade. Às vezes apareciam algumas pessoas dizendo que era para sair, chegando para intimidar o povo. E aí a gente respondia: “Não pode, não. O caso está na Justiça, é ela que decide.”
Em engenho que foi de usina, as casas não são como uma vila, são mais espalhadas. Aqui elas ficam divididas por três cantos. Não são todas muito perto umas das outras, mas dá para ir andando. Quase todo mundo aqui é primo e todo mundo é amigo. Com o tempo, a gente abriu a Associação dos Agricultores Familiares de Roncadorzinho. Tinha um rapaz lá como presidente antes, mas acabou o mandato de quatro anos dele e, há dois anos, eu entrei. O lugar aqui é calmo, bem rural mesmo. Todo mundo tem que levantar de madrugada, pra trabalhar na roça ou na agricultura. Então todo mundo dorme cedo. A minha esposa, Marlene, também é daqui mesmo. A gente teve quatro filhos: Jerivan, Evelyn, Jeane e Jonatas. O nome Jonatas fui eu que escolhi, porque acho bonito. Os moradores daqui hoje são quase todos evangélicos, da igreja Assembleia de Deus. A minha mulher é crente também. Eu não sou. Já nem sei mais no que eu acredito.
Jonatas ia me buscar todo dia no ponto de ônibus. Eu saio às 3h30 pra trabalhar – ou com cana-de-açúcar, quando tem serviço, ou vendendo as coisas que a gente planta. Só retorno umas três ou quatro da tarde. A nossa casa fica bem perto da beira da estrada. Eu descia do ônibus e o meu filho já vinha de lá. Bulia comigo, dizia: “Tudo bem, véinho?” Ou então: “E aí, Géo?” Segurava a minha bolsa, onde guardo a roupa suja que tiro depois do serviço, as luvas, o cartão de trabalho, uma garrafa de água e uma lancheira. Quando tinha uma sobra na comida que eu levava, quem comia era ele. Já abria a lancheira e pegava o restinho que achava.
Uma coisa que ele gostava mesmo era de comida. Preferia lasanha, feita com salsicha ou mortadela. Quando era tempo de festa e ele via que tinha esse prato, oxe, ficava doidinho. Se pudesse, mandava fazer todo dia. A mãe dizia: “Ah, meu filho, infelizmente, a gente não tem condição.” Aí ele comia “fuba”, que é como a gente chama aqui o cuscuz. E gostava muito de biscoito! Se a mãe comprava uma caixa com quinze pacotes na sexta-feira, quando era na segunda já não tinha mais.
Eu sou torcedor do São Paulo, mas Jonatas virou flamenguista. Eu brincava: “Tu vai virar são-paulino, nego!” E ele: “Vou, não.” E só ria. Chegou a ganhar uma camisa do Palmeiras, mas não gostava e não usava. Vivia pedindo pra mãe comprar uma do Flamengo. Ele ficava olhando o irmão mais velho, muito bom de bola, jogar. Mas não jogava bem. Era gordinho, aí cansava logo. Aos sábados, às vezes eu ia bater uma bola fora do engenho, mas a mãe não deixava ele ir. Na igreja eles dizem que não é bom ficar muito com essas coisas de futebol. Ela dizia: “Meu filho, você não vai porque você é crente.” Mas deixava ele jogar quando era aqui dentro do engenho mesmo, com os amigos, porque se exercitar faz bem pra saúde.
Jonatas era brincalhão, vivia rindo, mas era calmo. A gente falava, ele obedecia. Não era respondão, não falava palavrão. A meninada gostava dele. Às vezes, no domingo, vinham chamar pra brincar e ele nem queria ir. Há três anos, a mãe dele fez uma cirurgia para tirar um câncer de mama. Quando ela ficava com dores nas costas, ele vinha e dava massagem. E quando ela ia pegar alguma coisa que estava pesada, dizia: “Saia daí, véia, deixa que eu faço.”
Ele era alegre, mas tinha um medo: de muita gente junta. Quando ia em um aniversário, nunca entrava lá no meio pra cantar parabéns. A mãe perguntava: “Mas por que tu tem medo?” Ele não respondia. Só não gostava de tumulto, de zoada. Às vezes, depois do culto, se a mãe demorava muito conversando e eles ficavam pra trás quando o povo todo vinha, ele reclamava: “Mas a senhora deixa pra vir no escuro!” Ele gostava muito de ir à igreja também. Lá eles botam as crianças pra cantar aqueles hinos, eles ensaiam durante a semana. Quando chegava o dia de apresentar, colocava terno e gravata, ia todo arrumado. Jonatas saía pouco aqui do engenho. Só viu a praia três vezes, quando a mãe o levou para conhecer São José da Coroa Grande [praia a 12 km de Barreiros]. Ele estava crescendo, querendo saber de tudo e fazer as coisas da casa.
Quando eu ia trabalhar na roça ou olhar os bichos que a gente cria, que são três bois, ficava pedindo para ir comigo. Eu não deixava, ficava com medo. Ele já tinha tamanho, mas era uma criança, né? Podia se machucar com alguma coisa, não era seguro.
No dia 10 de fevereiro, eu saí de casa às 3h30 para ir pro serviço. Marlene também acordou ainda no escuro porque tinha que ir numa consulta de rotina no Recife e fazer o acompanhamento do câncer. Quando eu cheguei do trabalho, ela ainda não estava. Fiquei um pouco deitado no sofá, depois fui olhar os bichos da gente. Quando voltei já era noite, e ela já tinha chegado. Demorou um pouco e a minha esposa disse que ia deitar, porque estava cansada. Fiquei assistindo televisão e o menino chegou, pedindo pra dormir na casa do tio, que é aqui do lado. Queria ir para ficar brincando com as primas. A gente não deixou, porque ele tinha dormido lá na noite anterior. Ele ficou insistindo, dizendo que na nossa casa tinha muita muriçoca. Eu respondi: “Não vá, não. Durma aí mesmo.”
Meus dois filhos mais velhos são casados e não moram mais com a gente. Só a minha menina de 15 anos e Jonatas ficavam em casa. Eles dormiam na mesma cama. Nesse dia, duas sobrinhas resolveram dormir na nossa casa também. A gente tinha uma outra cama que estava sem colchão, então Jonatas foi, junto com as primas, pegar um na casa do tio. Foram e voltaram brincando. Quando chegaram, ficaram no sofá assistindo televisão. Eu resolvi ir dormir também.
De repente, ouvi um estrondo muito forte. Na hora até achei que a parede de taipa da casa tinha caído e matado meus filhos. Mas eram eles, derrubando a porta. Já entraram atirando, dizendo que eram da polícia. Assim que levantei para ver, recebi foi um tiro no ombro esquerdo. Quando olhei para trás, minha esposa já tinha se escondido embaixo da cama. Na confusão, eu saí correndo pelos fundos para pedir ajuda e ouvi um deles dizendo: “No coroa, não! No coroa, não!” Fui até a casa do meu cunhado e, no caminho, achei que eles viriam atrás. As meninas ficaram na sala. A minha filha de 15 anos disse que um deles apontou uma arma e mandou todo mundo calar a boca.
Minha esposa ficou embaixo da cama e já ia tentar chamar o menino quando viu o pezinho dele chegando, correndo. Ele mesmo se abaixou e entrou. Na mesma hora os bandidos já foram atirando atrás dele e mandando todo mundo sair. Marlene ouviu os tiros e falou: “É o meu filho!” Mas pensou que não tinha pegado nele, porque ele ficou quieto. Os bandidos ficaram lá discutindo, sobre quem tinha atirado no menino, e acabaram indo embora. Quando eles saíram, as meninas correram para fora também.
Jonatas ainda saiu de baixo da cama. Começou a dizer: “Ah, mãinha… mãinha” e a revirar os olhos. Minha esposa saiu correndo de casa, gritando por ajuda e berrando: “Atiraram no meu filho! Socorro, minha gente, acode. Meu menino foi atingido.” Ninguém sabia se os bandidos já tinham ido embora, se já dava para abrir a porta de casa. Aí ela disse: “Eles já foram! Balearam Jonatas!” Quando eu cheguei de volta, com o tio dele, o meu menino já estava estirado no chão. O povo já começava a chegar para ajudar. O primo da minha esposa falou para ela: “Calma, ele ainda está vivo.” Ela tem um tio que tem um carro, mas ele quebrou. Alguém pediu ajuda na cidade, veio um carro e levou todo mundo para o hospital de Barreiros. A bala perfurou o meu ombro esquerdo e saiu. Fui socorrido e até hoje não precisei de cirurgia. Jonatas morreu, acho que no caminho para lá.
A polícia ainda está investigando e prendeu alguns suspeitos. Disse que pode ter sido uma vingança de traficantes que fizeram oferta na terra onde moro para fazer uma criação de cavalos, mas que eu recusei. Isso nunca aconteceu, isso nunca existiu. Nunca recebi oferta nenhuma. Com medo de ficar lá, a gente saiu da casa onde morava. Viemos todos ficar na casa da minha mãe, agora só podemos sair com a polícia olhando.
Por causa da quimioterapia que fez para tratar do câncer de mama, a minha esposa começou a ter pressão alta. Quando alguém quer falar uma coisa sobre a morte do Jonatas, eu peço para não falar na frente dela, porque pode começar a passar mal. A igreja dela está toda em oração, ajoelhada. Isso dá um acolhimento para ela. Mas às vezes alguém da comunidade diz: “É assim mesmo, Deus conforta. Eu também já passei por isso, de perder um filho.” Aí ela responde: “Mas não foi do jeito que morreu o meu. Assassinado do meu lado.”
Eu não tenho muito costume de rezar. Mas às vezes peço a Deus conforto, conforto, conforto. Porque é uma dor muito grande, é uma coisa que pai nenhum sabe descrever. Aquele menino era tudo pra mim.
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