CRÉDITO: NELA TANKOSIC
Ir a Lviv
Aos meus pais
Adam Zagajewski | Edição 187, Abril 2022
Tradução de Henryk Siewierski
Ir a Lviv. De que estação ir
a Lviv, senão no sono, de madrugada,
quando o orvalho pousa nas malas e nascem
trens expressos e trens-bala. Sair de repente à
Lviv, no meio da noite, de dia, em setembro
ou março. Se Lviv existe, debaixo
das cobertas de fronteiras e não apenas no meu
novo passaporte, se as bandeiras das árvores
– dos freixos e choupos – continuam a respirar alto
como os índios, se os riachos balbuciam em seu
obscuro esperanto e as cobras-d’água como o sinal
brando em russo desaparecem
na grama. Fazer malas e partir, sem qualquer
despedida, ao meio-dia, desaparecer assim
como senhoritas desmaiando. E as bardanas, um exército
verde das bardanas, e embaixo, sob os guarda-sóis
no café veneziano, os caracóis conversam
sobre a eternidade. Mas a catedral se eleva,
você lembra, tão vertical, tão vertical
como o domingo e os guardanapos brancos e um balde
no chão cheio de framboesas e o meu
desejo que ainda não viera à tona,
só os jardins e ervas daninhas e o âmbar
das cerejas e Fredro[1] indecente.
Sempre havia Lviv em demasia, ninguém conseguia
entender todos os bairros, ouvir
o sussurro de cada pedra queimada pelo
sol, igreja ortodoxa calada à noite bem
diferente da catedral, os jesuítas batizavam
as plantas, folha por folha, mas elas cresciam,
cresciam loucamente, e a alegria escondia-se
em todo lugar, nos corredores e nos moinhos
de café que giravam sozinhos, em chaleiras
azuis e em amido de batata que era o primeiro
formalista, em gotas da chuva e espinhos
das rosas. A forsítia com frio amarelava sob a janela.
Batiam os sinos e o ar tremia, as cornetas
das freiras navegavam como escunas ao lado
do teatro, havia tanto mundo que precisava
bisar inúmeras vezes,
o público enlouquecia e não queria
sair da sala. As minhas tias ainda
não sabiam que um dia as ressuscitaria,
e viviam tão confiantes e tão ensimesmadas,
as empregadas corriam a comprar nata fresca,
limpas e engomadas, em casas um pouco de
zanga e grande esperança. Brzozowski[2]
veio dar conferências, um dos meus
tios escrevia um poema sob o título Por quê,
dedicado ao Todo-Poderoso e havia Lviv
em demasia, não cabia no vaso,
rebentava os copos, transbordava os
açudes, lagos, fumegava em todas
as chaminés, transformava-se em fogo e tempestade,
ria com relâmpagos, se amansava,
voltava para casa, lia o Novo Testamento,
dormia no sofá debaixo de um tapete hutsul,
havia Lviv em demasia e agora não há
nada, crescia sem parar e a tesoura
cortava, os jardineiros frios como sempre
em maio, sem piedade sem amor
ah esperai que venha o junho
quente e as samambaias macias, o campo
imenso do verão, ou seja, da realidade.
Mas a tesoura cortava, ao comprido e por meio
das fibras, os alfaiates, os jardineiros e os censores
cortavam o corpo e as grinaldas, os podões trabalhavam
incansáveis, como nos desenhos recortados das crianças
onde é preciso aparar um cisne ou uma cerva.
As tesouras, os canivetes e as giletes raspavam,
cortavam e encurtavam os vestidos fofos
dos prelados e das praças e dos edifícios, as árvores
caíam silenciosamente como na selva
e a catedral tremia e houve despedidas de madrugada
sem lenços e sem lágrimas, os lábios
secos assim, nunca mais te verei, tantas mortes
te esperam, porque cada cidade
há de se tornar Jerusalém e cada
ser humano tornar-se judeu e agora com pressa
fazer malas, sempre, cada dia
e ir embora, sem fôlego, ir a Lviv, pois ela
existe, serena e límpida como
pêssego. Lviv está em toda parte.
Este poema faz parte do livro Jechac do Lwowa (Ir a Lviv), publicado em 1985 por Adam Zagajewski, escritor e poeta polonês nascido em Lviv, em 1945. A cidade, hoje situada na Ucrânia, foi conquistada por poloneses em 1349. Em 1772, passou a fazer parte da Áustria. Em 1918, foi reconquistada pela Polônia. Durante a Segunda Guerra Mundial, Lviv foi ocupada pelos soviéticos e pelos nazistas. Com o fim da guerra, em 1945, a cidade passou a integrar o território da República Socialista Soviética da Ucrânia, criada pela União Soviética, em 1917. Os poloneses que viviam em Lviv foram então expulsos, entre eles Zagajewski e seus familiares. Na invasão russa da Ucrânia em fevereiro, Lviv, pela sua proximidade com a fronteira polonesa, tornou-se a mais movimentada porta de saída para os 4 milhões de ucranianos que já deixaram o país. Em 18 de março, no 22º dia da invasão, a cidade foi bombardeada. O poeta Adam Zagajewski morreu em 21 de março do ano passado, em Cracóvia, na Polônia, aos 75 anos.
[1] Aleksander Fredro (1793-1876), poeta polonês.
[2] Stanisław Brzozowski (1878-1911), filósofo, escritor e crítico polonês.
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