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17 de julho de 2014 – Desespero e insanidade no Leste da Ucrânia

Filme premiado no Festival de Sundance estreia amanhã no Brasil

Eduardo Escorel | 04 maio 2022_08h15
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A estreia de Klondike: A Guerra Na Ucrânia (2022) – escrito, dirigido e editado por Maryna Er Gorbach – é oportuna por motivos evidentes, considerando o conflito em curso. A guerra, iniciada em 2014, foi acirrada e ampliada a partir de fevereiro deste ano com a invasão russa do país que se tornou independente em 1991, a partir do fim da União Soviética.

Além de receber, em janeiro de 2022, o Prêmio de Direção para cinema mundial no Festival de Sundance e, no mês seguinte, o Prêmio do Júri Ecumênico na 72ª Berlinale, a produção ucraniana e turca colheu louros em quatro outros festivais e chega amanhã (5/5) a vários cinemas em São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades.

Falado em ucraniano, russo, checheno e holandês, o filme dura 100’ e tem início com a tela mantida preta e, em off, um diálogo de uma voz feminina com outra masculina, a princípio não identificadas. Ela conta ter sonhado que “quando tudo acabar, vamos colocar uma grande janela no buraco todo”. Ele propõe: “Vamos fazer um telhado novo e instalar aquecimento.” Ela: “Vamos reconstruir tudo.” Ele: “Você vai poder andar descalça.” Ela: “Vamos reconstruir toda a casa.” Ele: “Vamos comprar móveis novos também. Cadeiras. Mesas.” Ela: “Vamos jogar fora a televisão. Eu quero uma nova.” Ele: “Não, vamos cortá-la toda e usar para aquecer a casa. Vamos comprar uma televisão nova para você. Irka… O que é? Já está começando?” Ela (Irka): “Você está com medo?” Ele: “É claro que não.”

Esses 1’39” deixam claro haver algo momentoso em curso e obras a fazer na casa quando terminar. Entende-se, além disso, que os dois estão esperando por alguma coisa e ele, embora negue, parece estar com medo.

Um corte introduz a primeira imagem do filme, difusa e onírica, mais parecendo um cenário – o sol nascido há pouco e seu reflexo, uma árvore à esquerda e um volume, difícil de identificar à primeira vista, na borda inferior, à direita.

Ele entra em quadro e pergunta, sussurrando: “Como está se sentindo?” Em resposta, ela dá em off apenas um gemido discreto. Ele: “Você vomitou hoje?” Ela ergue o corpo e entra em quadro com um travesseiro em torno do pescoço. Irka: “Eu não vomito há cinco meses…” Ele sai de quadro e, enquanto o diálogo prossegue, a câmera inicia uma panorâmica circular lenta, da direita para a esquerda, que completará cerca de 270º, durando cerca de 4’34” sem cortes aparentes (salvo um, talvez) – um tour de force considerável da diretora e do diretor de fotografia, Sviatoslav Bulakovskyi, prova do alto grau de coordenação da equipe, indispensável para filmar um plano dessa complexidade. Irka continua: “Onde você estava até agora”. Ele (off): “Eu estava devolvendo o carro.” Irka: “Você comprou fraldas?” Ele (off): “Não.” Ela: “Você levou nosso carro de volta?” Ele (off): “Sim, levei.” Ela: “Quando você vai pegar fraldas?” Ele (off): “Ainda é muito cedo. Pegaremos mais tarde…” A panorâmica deixa Irka fora de quadro, e ele entra em quadro. Ele: “Escuta: onde está sua mala?” Irka (off): “Qual mala?” Ele: “Você tem sua mala do hospital?” Irka (off): “Alguém vai dar à luz?” Ele: “Você é minha querida idosa. Você devia ir para o hospital muito mais cedo.” Irka (off): “De que você está falando? Por que agora?” Ele: “Seus peitos vão ficar maiores depois do parto. Não posso mais esperar.” Irka (off): “Cuide dos seus cachos antes de falar dos meus peitos.” Ele: “Irka, vamos. Eu arrumei um lugar no hospital. Eles estão guardando o lugar para você. Venha.” Irka entra em quadro e acende a luz. Irka: “Tolik, aonde você está me levando?” Ele (Tolik) apaga a luz: “Vista-se.” Irka insiste: “Aonde?” Tolik: “Onde não há nenhuma guerra.”

No momento exato em que essa última frase acaba de ser dita, aos 3’29” do filme, ouve-se o sibilo curto seguido do som do impacto violento de algo contra a casa – uma granada é possível presumir, sabendo haver uma guerra em curso. O som da explosão é sincronizado com o começo da destruição da parede externa e da janela. A poeira encobre tudo, por completo, em um instante. Segundos depois, à medida que a poeira se dissipa um pouco, sem que se saiba o que aconteceu a Irka (Oksana Cherkashyna) e Tolik (Sergey Shadrin), a câmera retoma a panorâmica circular. Ouvem-se passos de alguém em off (Tolik, presume-se) saindo da casa. O movimento circular da câmera prossegue até parar diante do rombo feito na parede pelo morteiro, através do qual se vê a elevação do campo verde na luz da manhã. Irka entra em quadro e vai lentamente até o sofá. Senta e fica em silêncio, silhuetada entre os escombros, até o corte aos 6’13” para legendas brancas sobre fundo preto, informando, primeiro, data e local: 17 de julho de 2014. Hrabrove, vila na região de Oblast de Donesk, no Leste da Ucrânia; depois, que o filme é “inspirado em fatos reais…”.

Cena do filme Klondike: A Guerra Na Ucrânia – Foto: Divulgação

O dia e lugar indicados situam a ação de Klondike: A Guerra Na Ucrânia em circunstância histórica e tempo precisos. A data é emblemática da insanidade criminosa da guerra – conforme o espectador será lembrado adiante, foi nesse dia que o famigerado voo MH17, um Boeing 777 da Malaysia Airlines, voando de Amsterdam para Kuala Lumpur a 33 mil pés, caiu perto de Hrabove, vila onde o roteiro situa a ação do filme. A tragédia em que morreram 283 passageiros, a maioria holandeses, e 15 membros da tripulação, ocupa lugar decisivo no filme, servindo de contraponto a sequências ficcionais, como as duas descritas acima.

No âmbito da ficção, Irka, uma mulher decidida, e Tolik, o marido atarantado, estão em permanente guerra conjugal. Ela reclama que a explosão da granada destruiu o carrinho de bebê e diz que vão comprar outro no dia seguinte: “Malditos separatistas. Que batalhão estrábico”. Retoma, em seguida, seus afazeres cotidianos – primeiro, ordenha a vaca; depois, parece estar colhendo tomates quando um avião premonitório sobrevoa a plantação; em seguida, põe a panela no fogão e remexe o líquido vermelho.

Yaryk (Oleg Scherbina), vértice crucial do triângulo formado com sua irmã, Irka, e Tolik, chega apressado querendo levá-la embora. Uma nova explosão interrompe a querela dos dois. Outra panorâmica pela sala, em sentido contrário à anterior, mostra vidros dos armários partidos e, através de uma janela, Yaryk pedindo para Irka esperar por ele no porão de uma pequena construção vizinha. Outro estrondo próximo assusta Irka. Ela tenta sair do refúgio subterrâneo, mas depois de subir a escadaria de pedra não consegue abrir a porta e grita pedindo ajuda a Tolik. Ele chega correndo e libera a passagem bloqueada pelo corpo de alguém morto pela explosão.

A tarefa seguinte é remediar os estragos. Tolik sobe a escada para fixar as chapas onduladas do telhado. Ouvem-se sirenes ao longe. Irka sente dores e pergunta: “Isto é mesmo guerra, Tolik?” Ele está no alto da escada. Ao longe, um caminhão de bombeiro segue pela estrada em direção à nuvem de fumaça preta que se ergue no horizonte. Depois de amarrar as chapas do telhado, Tolik remonta as peças soltas da antena parabólica.

Cena do filme – Foto: Divulgação

A sequência seguinte começa com a imagem de um avião em mergulho vertical, seguido de escombros fumegantes e pertences de passageiros espalhados pelo chão. Irka e Tolik assistem à reportagem transmitida pela televisão sobre a queda do Boeing 777 da Malaysia Airlines. Ele, intrigado, ela, estupefata. Abusando da liberdade própria de relatos ficcionais, a apresentadora informa o que só seria conhecido algum tempo depois: “Foi anunciado que o avião foi atingido por um tiro dado pelo sistema de míssil Buk, perto de Torez, no território controlado pelos separatistas. O Buk soviético prova o apoio russo aos terroristas.”

“Animais…”, diz Irka. “Estou cansada desses erros”, referindo-se à explosão da granada que abriu o rombo na parede da sua casa. E, mais uma vez, ela retoma a arrumação.

O que só veio a público quase quatro anos depois, em maio de 2018, e não consta, portanto, de Klondike: A Guerra Na Ucrânia, é o relatório da Equipe Conjunta de Investigação formada por representantes da Holanda, Austrália, Bélgica, Malásia e Ucrânia. Encarregada do inquérito, a equipe anunciou que a instalação do míssil antiaéreo Buk que atingiu e derrubou o Boeing da Malaysia Airlines era de fabricação russa e pertencia ao seu exército. Três russos e um ucraniano foram responsabilizados por abater o avião, mesmo admitindo-se que podem não ter sido eles a fazer o disparo. Ainda assim, responderiam pelo fato de o míssil ter sido posicionado e estar em operação.

Tolik, além de meio desnorteado, é um conciliador. Sem ser separatista, tenta não desagradar nenhum dos combatentes em conflito sendo submisso a cada um deles – atendendo a um pedido, mata a vaca a facadas e retalha sua carne para entregá-la aos aliados dos russos.

Perto da casa de Irka e Tolik, corpos ensacados de vítimas do desastre estão estendidos, lado a lado, na plantação de girassóis e restos do Boeing sinistrado se encontram espalhados na área.

Irka, emudecida, parecendo meio catatônica, assiste a uma partida de futebol na televisão. Ela rejeita Tolik por ele estar fedendo a sangue depois de ter matado e retalhado a vaca.

Yaruk chega na manhã seguinte, e seu antagonismo com Tolik se aguça ao acusá-lo de ser um miserável separatista. Irka manda os dois tirarem o sofá da sala para limpar a poeira entranhada. Tolik pega água no poço que Irka diz “ter um cheiro horrível”. Tolik: “Quando a areia descer, o cheiro terá desaparecido. É normal.” Irka: “Não diga que uma coisa é normal quando não é.”

Enquanto Yaruk limpa o sofá, batendo com força no estofamento, Tolik começa a refazer, tijolo por tijolo, a parede arrombada da sala. Irka pede ao irmão para separar os tijolos inteiros dos quebrados. O bate-boca entre Tolik e Yaruk, causado pela música transmitida pelo rádio de Yaruk, prossegue até Tolik desligar o rádio. Yaruk acusa a irmã e o cunhado de serem separatistas. Tolik e ele se engalfinham e são separados por um banho de água quente jogada por Irka. A guerra, a princípio um confronto entre países, além de conjugal é também familiar.

O local onde o Boeing 777 da Malaysia Airlines caiu se tornou destino de peregrinação e é visitado por familiares de passageiros mortos no acidente. Tolik e Irka levam um casal de holandeses à procura da filha até onde uma asa chamuscada do avião está largada. A mãe diz ter “certeza que a filha está viva. Eles a encontrarão. Tenho certeza que ela está viva. Eu sinto”.

Uma conversa de Irka e Tolik reproduz, em parte, a que foi ouvida em off na abertura do filme e acaba com Irka pondo a mão dele na sua barriga. Tolik: “Com quem ele parecerá? Comigo?” Irka: “Ela vai parecer com meu irmão Yaryk. Não se preocupe. Temos mais dois meses para descobrir.”

Tolik acorda Yaryk no meio da noite. O irmão de Irka está no mesmo porão onde Irka tentou se proteger antes, com os punhos amarrados nas costas, sem que se tenha visto quem, quando e como ele foi levado para lá. Pode-se presumir, porém, ter sido Tolik quem o prendeu: “Yaryk: Separatista bastardo.” Tolik enfia um pano na boca dele. Tolik: “Eu estou cansado de você. Ouça com cuidado: se eu te soltar, você irá para Kiev para sempre! Entende?…Vou lhe dizer de novo. Leve suas coisas e suma das nossas vidas. Estamos cansados de você.” Yaryk: “Saia você daqui separatista de merda! Não vou lhe dar minha terra! Eu odeio você, traidor.” Tolik dá uma pancada com uma frigideira na cabeça de Yaryk e ele desmaia.

Um plano da lua no início do quarto minguante e o seguinte de dois carros se aproximando com os faróis acesos no amanhecer dão início aos 20’ finais de Klondike: A Guerra Na Ucrânia. Irka e Tolik estão deitados de valete com os corpos entrelaçados. Irka: “Tolik! Tolik! Está começando. A bolsa d’água rompeu.”

Soldados russos e chechenos rondam a casa. Para entrarem, o chefe do grupo (Evgeniy Efremov) corta de alto a baixo o plástico transparente estendido no lugar da parede destruída da sala.

Irka em off: “Já parou. Parou, de verdade.”

O chefe entra no quarto e pergunta em russo a Tolik se ele é Anatoliy Sudak. Tolik confirma. O chefe pergunta se ele sabe a senha. Chefe: “Quem está conosco?” Tolik responde certo: “Deus está conosco.” Depois de conferir que Irka está grávida, o chefe manda Tolik dizer à mulher para alimentá-los.

Sentado na sala, o chefe pergunta a Tolik: “Você viu quem atirou no Boeing?” Tolik: Não, não vi. Nós precisamos ir para o hospital…”; chefe: “Depois que tiverem nos alimentado.”

Irka chega na sala trôpega, dobrada sobre si mesma, gemendo. As contrações parecem ter recomeçado. O chefe manda Anatoliy se sentar e insiste: “Me diga, você viu quem atirou no avião?” Tolik, após uma pausa: “Sim, eu vi.” Chefe: “Se você viu, então vamos conversar…”

Os soldados saem e deixam Irka sozinha. Ela se acomoda dobrada sobre o espaldar do sofá.

O desfecho dessa penúltima sequência fica sem ser descrito aqui.

 

Passados cerca de 4’ durante os quais transcorre o final da sequência anterior, os soldados voltam, recolhem o armamento deixado na casa, ignorando Irka que está dando à luz no sofá, e vão embora.

O bebê recém-nascido dá seu primeiro choro. Irka vira para olhar a criança e, em seguida, a legenda branca sobre fundo preto informa que o filme é “dedicado às mulheres…” e por boas razões, cabe acrescentar. O parto diante da câmera, em plano sem cortes, é um final de grande impacto.

O Klondike (Клондайк) contido no título Klondike: A Guerra Na Ucrânia não se refere à acepção usual encontrável em dicionários – uma região do Canadá com o mesmo nome, conforme o Dicionário Britânica. Muito menos a uma variante específica de jogo de cartas chamado solitária, segundo a Enciclopédia Britânica. Tampouco tem a ver com os diversos tipos de sorvete e chocolate da marca Klondike, fabricados nos Estados Unidos. Teria, por acaso, alguma relação com a “energia ilimitada” oferecida pelo jogo eletrônico Klondike Adventures MOD APK Hack Unlimited Energy, Money? Confesso que não sei.

*

Estarei de férias nas próximas quatro semanas. A coluna voltará a ser publicada em 8 de junho. Até lá e cuidem-se. 

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