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    Francia Márquez, vice-presidenta eleita da Colômbia. Crédito: Mariana Nedelcu/REUTERS

colunistas

Cores novas na América Latina

Brasil precisa de diálogo com líderes como a colombiana Francia Márquez – cuja visita foi quase ignorada pela mídia nacional frente à hipercobertura da mulher da casa abandonada

Flavia Rios | 04 ago 2022_10h00
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Na última semana de julho a vice-presidenta eleita da Colômbia, Francia Márquez, esteve no Brasil e quase não foi notada pela grande imprensa brasileira. Francia Márquez se tornou um símbolo da democracia na América Latina mesmo antes de ser eleita na chapa com Gustavo Petro, em junho de 2022. Duas semanas antes das eleições na Colômbia, na Clacso (Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales), realizada no México, não se falava de outra coisa senão das chances eleitorais de Márquez e Petro, além do possível retorno de Luiz Inácio da Silva à Presidência da República. 

Das mesas de bar às reuniões dos mais de noventa grupos de pesquisa que se reuniram na capital do México, Brasil e Colômbia eram os assuntos mais importantes. O evento discutiu “As tramas das desigualdades na América Latina e no Caribe” na Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), sob a organização da Clacso, o Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, que atua em 25 países da América Latina e Caribe, com presença também nos Estados Unidos e na Europa.

Eleita, Márquez fechou uma agenda concorridíssima com políticos da América do Sul. Em um giro pela região, a também ativista premiada internacionalmente assumiu compromissos com agentes públicos e representantes dos movimentos sociais. Foi recebida pelo presidente da República do Chile, Gabriel Boric. Na agenda com o presidente chileno, Márquez tratou de temas como justiça de gênero, nova política de drogas e de combate ao racismo, bem como os desafios da mudança climática.

Antes de seguir para a Argentina, onde teria um encontro com a vice-presidenta do país, Cristina Fernández de Kirchner, a ambientalista e ativista dos direitos humanos colombiana ficou dois dias no Brasil, entre 26 e 27 de julho. Em São Paulo, Márquez encontrou-se com Lula e a ex-ministra Nilma Lino Gomes. Também conversou com representantes do movimento negro, dentre eles o pré-candidato a deputado federal Douglas Belchior (PT-SP), um dos principais expoentes da Coalizão Negra por Direitos, organização brasileira que reúne mais de duzentas entidades políticas e culturais, de Norte a Sul do país, das zonas rurais e urbanas.

No dia do aniversário de Marielle Franco, Márquez conversou com parlamentares e organizações cariocas, dentre elas Anielle Franco e as deputadas Benedita da Silva e Talíria Petrone. Assim como Marielle, Francia Márquez foi vítima de atentados políticos na Colômbia. Não à toa, a parlamentar brasileira é uma das referências políticas para a política colombiana. Diferente de Marielle, Márquez sobreviveu e pôde seguir seu trajeto político de alterar o futuro de seu país. Foi pré-candidata à Presidência da República e logo depois juntou-se à chapa de Petro, tornando-se a primeira mulher negra na vice-presidência da República da Colômbia – o que coincide também com a chegada da esquerda ao poder naquela nação.

Márquez passou a representar na América Latina novas cores e visões presentes no contexto político da região. Se a imprensa e os intelectuais nacionais se dedicassem mais aos assuntos latino-americanos, teriam aproveitado a visita da colombiana para conhecer mais sobre o projeto político de Márquez e Petro, inclusive em termos do desenvolvimento regional e integração dos países latino-americanos, assolados por problemas comuns como o tráfico internacional de drogas, a violência endêmica, as fortes desigualdades sociais, raciais e de gênero, bem como o elevado grau de informalidade no mercado de trabalho. Certamente, Márquez poderia trazer mais luz sobre o segundo giro progressista que tem se figurado na América Latina.

Sabe-se que o primeiro giro na América Latina foi dado na virada do século XXI, com a ascensão de diversos líderes de esquerda. O marco do seu início é a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela, em 1999, e culmina com a eleição de Lula para a presidência da República no Brasil, em 2002, passando pelas vitórias eleitorais de Néstor Kirchner, na Argentina (2003), Tabaré Vázquez, no Uruguai (2004), Evo Morales, na Bolívia (2005), Rafael Correia, no Equador (2006) e  do ex-bispo católico Fernando Lugo, no Paraguai (2008). A decisão por investir nas lutas institucionais via democracia foi o rumo que as esquerdas latino-americanas tomaram após a queda do Muro de Berlim e o redesenho da geopolítica global, superando o debate sobre reforma-revolução que marcou as gerações dos anos 1960 e 1970, em plena guerra fria. 

Nessa primeira onda, governos progressistas latino-americanos tiveram que lidar com profundas disparidades sociais, pobreza e crescimento da violência em seus países. Por outro lado, foram responsáveis por projetos de transferência de renda e de inclusão social, criando mais condições para ampliação da cidadania, inclusive entre grupos historicamente discriminados como indígenas e negros. Na última década, muitos deles viram seus projetos serem desmantelados por forças neoconservadoras que, por vias eleitorais ou golpes políticos, assumiram o poder, fraturando ainda mais as já frágeis democracias da região. 

O segundo giro progressista, que tem gerado grandes expectativas ao redor do mundo, começou na segunda década deste século, após um cenário na região marcado por crises e golpes políticos, a exemplo de Paraguai (2012), Brasil (2016) e Bolívia (2019). A guinada à direita ou à extrema direita e a ascensão de candidatos ultraconservadores tornaram-se desafios novos para o contexto progressista na região, assim como o legado da pandemia de Covid.

Pensado a partir da geopolítica latino-americana, o segundo ato progressista conta com as vitórias de Alberto Fernández na Argentina, Luis Arce na Bolívia, Gabriel Boric no Chile e Obrador no México. Todos os olhos do mundo observam atentos a possibilidade do terceiro mandato de Lula no Brasil, atualmente líder na corrida presidencial, segundo as últimas pesquisas eleitorais. Nesse cenário de progressismo, há também os elefantes sentados na sala: a esquerda autoritária que governa hoje a Venezuela, com Maduro, e a Nicarágua, com Daniel Ortega. 

Ciente dos desafios que a região enfrenta, seja em termos de agenda econômica, ambiental, enfrentamento da pobreza ou contenção da inflação, Márquez seguiu para a Argentina. O país se tornou símbolo de luta feminista ao descriminalizar o aborto em 2020 e ganhou destaque nas páginas dos jornais com o avanço das políticas de justiça, memória e verdade, por um lado; de outro lado, a nação dos hermanos vive hoje assombrada com a hiperinflação, que certamente é o maior desafio atual para garantir a estabilidade democrática no país.

Com velhos e novos problemas, o campo progressista na América Latina precisa mirar as políticas bem-sucedidas desses países e seus fracassos também. Se o Brasil quiser assumir uma liderança na região, terá que contar com uma visão estratégica, como a de Francia Márquez, disposta ao diálogo, à defesa da vida, da equidade e do ambientalismo. Trata-se de uma nova concepção de desenvolvimento na região. Todas essas pautas marcam os novos tempos, o convívio comum e o futuro do planeta.

A imprensa brasileira, contudo, estava de costas para Márquez. Preocupada em fazer hipercobertura da mulher da casa abandonada, a mídia ocupou-se de nos fazer reviver o passado e os fantasmas de um país que não se cansa de exorcizar seus espíritos mal-assombrados. Perdemos uma grande oportunidade de falar sobre o novo, sobre a esperança no futuro. Perdemos a oportunidade de saber como seriam as possíveis versões para o português brasileiro do “vivir sabroso” de Márquez.

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