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    "Bolsonaro almeja conseguir maioria de indicações no Supremo para vender ao público a imagem de que não apenas um par de ministros, mas o tribunal como um todo, é “seu”." Crédito: Divulgação/Supremo Tribunal Federal

colunistas

O Supremo impotente de Bolsonaro

Nem a ditadura militar sonhou com um Judiciário tão desacreditado como o que move a imaginação do atual ocupante do Planalto

Rafael Mafei | 14 out 2022_09h00
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Em setembro de 1965, Victor Nunes Leal publicou na Revista dos Tribunais um pequeno artigo intitulado “Supremo Tribunal: a questão do número de juízes”. O legado de Leal é mais reconhecido nas faculdades de ciência política, onde seu clássico seminal sobre política municipal brasileira, Coronelismo, enxada e voto, ainda é bastante lido. Na maioria das faculdades de direito, quando muito, alguém se lembra que partiu dele, quando ministro do Supremo Tribunal Federal (1960-1969), a ideia de criação das súmulas, que são enunciados sintéticos do entendimento do tribunal sobre uma dada questão jurídica. O recurso teve origem no hábito que Leal tinha de anotar, em cadernos que levava aos julgamentos, as decisões tomadas pelo Supremo em cada matéria. As anotações depois eram usadas para apontar inconsistências dos demais ministros quando, meses após, alguém propunha decisão em sentido diverso para o mesmo tema, esquecendo-se do que haviam decidido antes. Evandro Lins e Silva, que foi seu colega no STF, chamava as brochuras de Leal de “cadernos implacáveis”. Um dos volumes está em exposição na biblioteca do Supremo Tribunal Federal, que tem o nome do ex-ministro.

Este texto dialoga diretamente com o artigo de Leal, escrito em um contexto que, em certos sentidos, parece-se com o de hoje. Também àquela época o STF estava no centro dos debates políticos nacionais por haver atraído para si o antagonismo de vozes importantes do governo Castello Branco, como a do ministro da Guerra, general Costa e Silva. O presidente do Supremo à época, ministro Ribeiro da Costa, que de início apoiara o golpe de 1964, em pouco tempo se indispôs com o governo ao perceber que os militares, ao contrário do que prometia o presidente da República, ensaiavam intervir no tribunal. Em setembro de 1965, como nesta semana de outubro de 2022, o tema era justamente um possível aumento no número de ministros, contra o qual Victor Nunes Leal se posicionou.

Ao contrário de Jair Bolsonaro, Castello Branco não era defensor orgulhoso de uma ditadura militar sanguinária. Confortava-lhe enxergar-se menos como líder fardado de uma caquistocracia militar sul-americana e mais como uma espécie de general De Gaulle dos trópicos – um comandante que assume um país com mão forte, em momento de emergência extraordinária, para conduzi-lo com segurança à normalidade democrática. Mas Castello não foi De Gaulle: entegrou-nos a Costa e Silva, exemplar destacado de ditador militar truculento e incompetente, sob uma ditadura plenamente institucionalizada, inclusive pela interferência autoritária no STF que ele promoveu. 

A ditadura de 1964, nesse tópico ao menos, foi mais pudica do que promete Jair Bolsonaro. Ao contrário do que aconteceu nesta semana, quando o presidente da República ameaçou abertamente apoiar o enxerto de cinco novos ministros se o tribunal não “baixar a temperatura”, o discurso oficial em 1965 era outro. A ala que defendia interferir no Supremo por razões escancaradamente políticas – por que o Judiciário deveria ser o único poder poupado da “revolução”?, indagavam – era menos expressiva. Castello parecia enxergar a preservação do STF como indicativo de que seu governo não era uma ditadura de verdade, justamente por não haver interferido na composição do Supremo. Para mandar recados aos militares que pressionaram por interferência no tribunal, o presidente fazia questão de tratar com especial cordialidade os ministros que haviam sido indicados pelos maiores adversários da ditadura, como Leal (indicado por Juscelino Kubitschek) e Lins e Silva (indicado por João Goulart).

Depois de ser muito pressionado em razão de reveses que o governo sofreu em julgamentos politicamente sensíveis, Castello Branco transigiu e instituiu uma comissão para debater uma reforma judiciária, mas sob o pretexto de melhorar a produtividade do tribunal. Ao menos na fachada, portanto, o discurso tornou-se próximo daquele que o atual líder do governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), expôs esta semana. Barros foi à televisão defender que a chegada de cinco novos ministros aumentaria a “agilidade” do tribunal, por dar-lhe mais força de trabalho. Na mesma ocasião, o deputado paranaense também lançou platitudes como “transparência”, sem explicar como o aumento de ministros contribuiria para isso; repetiu o bordão preguiçoso do “ativismo”, crítica que nada diz quando desprovida de contexto; e ameaçou “enquadramento”, deixando patente o tom geral de ameaça.

A resposta de Victor Nunes Leal aos defensores do aumento de ministros em 1965 serve igualmente bem a Ricardo Barros e àqueles que acreditam, ou fingem acreditar, que um aumento do número de ministros aumentaria a celeridade processual no STF. Com sensibilidade institucional incomum aos juristas, Leal identificava que o verdadeiro gargalo do STF estava não nas turmas, que reúnem apenas cinco ministros e julgam as matérias para as quais não se exige quórum aumentado, mas no Tribunal Pleno, que reúne todos os membros do tribunal na bancada em forma de “U” que nos acostumamos a assistir pela TV Justiça. Ao Pleno compete o julgamento das ações que podem invalidar, por inconstitucionalidade, uma lei aprovada pelo Congresso Nacional. Mesmo as matérias de competência das turmas podem ser remetidas ao plenário quando se julgar oportuno que o colegiado maior do STF se pronuncie a esse respeito, o que ocorre, por exemplo, quando há entendimentos jurídicos divergentes entre uma e outra turma. Considerados os números do tribunal hoje em dia, o diagnóstico desse gargalo permanece: das mais de 10 mil decisões colegiadas tomadas pelo STF em 2022, pouco mais de 32% são decisões plenárias; e de todas essas, apenas 47 aconteceram no plenário físico, ambiente mais deliberativo e transparente de toda a corte, ao qual os ministros dedicam duas ou três tardes da semana. 

Se considerarmos que as matérias de competência do plenário são, presumivelmente, as de maior relevância jurídica – e que por isso a Constituição, o regimento interno e as ministras e os ministros os remetem para lá –, a criação de uma terceira turma tornaria o tribunal menos ágil nesse ambiente. Primeiro, porque com um número maior de ministros no tribunal, aumentaria a possibilidade de entendimentos divergentes, o que exigiria o acionamento mais frequente do plenário para pacificá-los. Segundo, porque aumentariam também os casos de relatores nas turmas afetando julgamentos para o plenário, pois haveria mais turmas e mais relatores. Terceiro, porque os julgamentos do Tribunal Pleno presencial ficariam obviamente mais demorados: ao invés de ouvirmos até onze longos votos a cada caso, um STF aumentado nos obrigaria a ouvir até dezesseis preleções para se chegar ao mesmo resultado prático. 

Um aumento do número de ministros tenderia a agravar aquilo que o STF de hoje em dia tem de pior: o excesso de decisões individuais. Com um plenário mais atarefado e mais lento, haverá maior apelo para que ministros recorram a decisões monocráticas em muitos casos relevantes julgados pelo tribunal. Mas esse expediente gera, por si, outro tipo de demanda: o referendo dessas decisões monocráticas. Todos os fatores considerados, o esperado seria que ainda mais julgamentos (proporcionalmente) acabassem levados aos ambientes decisórios virtuais, onde a genuína deliberação não existe, e o escrutínio público do processo decisório é menor. Ou seja, menos transparência, ao contrário do que Ricardo Barros quer fazer crer. Nada disso contribui para o aprimoramento do STF como tribunal.

A ilusão de Castello Branco, de que seu governo poderia não descambar para uma ditadura, acabou quando ele cedeu à pressão da facção militar comandada por Costa e Silva e interveio no STF por meio do Ato Institucional 2, de outubro de 1965. Além de desfigurar o sistema partidário de então, o novo ato aumentou para dezesseis o número de ministros no tribunal, como cogitam Bolsonaro, Barros e o recém-eleito senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS). Mas vale notar que, mesmo nessas circunstâncias nefastas, Castello Branco ainda levou ao Supremo ministros com alguma estatura intelectual, como Aliomar Baleeiro e Adaucto Lúcio Cardoso. (Com o passar do tempo, ambos revelaram-se pedras nos coturnos da ditadura.) Nem Carlos Medeiros e Silva, o jurista mais autoritário indicado por Castello, era um indigente intelectual. 

Bolsonaro não dispensou essa mesma cortesia ao Supremo em seu primeiro mandato. A continuação, em um eventual segundo mandato, de sua política de indicação de nomes inexpressivos para o tribunal, somada à propagada submissão que o próprio presidente projeta sobre os “seus” ministros, seguirá alimentando a percepção pública, especialmente entre seus muitos apoiadores, de que o Supremo é composto por marionetes de toga, que julgam de acordo com os interesses de quem os indicou. Na visão de mundo propagada pelo próprio Bolsonaro, Kassio Nunes Marques e André Mendonça não são ministros melhores por terem mais cabedal jurídico ou reputação moral acima de qualquer suspeita, mas apenas porque decidem de acordo com o que interessa politicamente a quem os indicou. Um tribunal que seja publicamente percebido como um covil da politicagem e da subserviência será fatalmente menos respeitado, com menos força social para cumprir sua difícil missão. É isso que Bolsonaro almeja: conseguir maioria de indicações no Supremo para vender ao público a imagem de que não apenas um par de ministros, mas o tribunal como um todo, é “seu”. Como poderá ser respeitado um tribunal que seja visto sob ângulo tão depreciativo?

O STF chegou à constituinte de 1987 com prestígio suficiente para sair dela maior do que entrou, com importantes competências que fazem dele a força que hoje conhecemos, porque nem a ditadura de 1964-1985 trabalhou para arruinar a reputação e a credibilidade do tribunal com a mesma energia que Jair Bolsonaro e seus aliados têm dedicado a esse propósito. Se hoje há quem ainda considere as investidas de Bolsonaro contra o STF como bravatas, sua recondução a um segundo mandato, agora com uma bancada maior a apoiá-lo, povoada por parlamentares cuja vida pública se notabiliza por confrontos e hostilidades contra o tribunal, terá grandes chances de implicar o fim do Supremo como hoje conhecemos. Em seu lugar, não virá um tribunal melhor.

A descaracterização do STF não virá necessariamente pelo eventual aumento do número de ministros, nem pelo eventual impeachment de um deles. A caixa de ferramentas de autocratas em segundo mandato, que contam com maior força parlamentar, vai muito além. Em países como Hungria e Polônia, além de interferências na composição de cortes, houve também alterações de competências para julgamento e recrudescimento de mecanismos disciplinares. Essas medidas, importante que se diga, podem até mirar os membros das cortes supremas, mas fatalmente liquidam a independência de todo o Poder Judiciário. A ideia é sempre deixar claro que decisões que contrariem interesses importantes do governo serão anuladas ou reformadas, e que a dor de cabeça para quem as assinou poderá ser muito grande.

Mesmo que alterações assim não cheguem a ser implementadas, a simples ameaça plausível de interferências desse tipo forçosamente coloca no cenário de magistrados um cálculo que é incompatível com a independência que a função pressupõe. Caso o Supremo seja forçado a reagir a essas ameaças pela estratégia de evitar pautas “sensíveis”, entendidas como aquelas que podem gerar indisposição com o governo, ele terá cedido à exigência de Bolsonaro – que nem precisará pagar o custo político da intervenção. Também nesse caso, o STF acabaria descaracterizado em relação àquilo que a Constituição imaginava para seu maior tribunal. Ao contrário do que deseja Bolsonaro, nem o Supremo nem o restante da magistratura podem “baixar a temperatura” em face de quem governa em antagonismo com a Constituição e planeja subjugar o Judiciário.