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    Ilustração: Carvall

questões delicadas

Mais que um negócio de família

Como disputas milionárias por herança se transformaram em investigações sobre maus-tratos contra idosos; casos de estelionato contra pessoas nessa faixa etária cresceram 47% no Rio

Allan de Abreu | 09 nov 2022_10h29
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Às margens da Rodovia Washington Luís, o Hotel Nobre e Feirão Moda Rio funcionavam em imóveis vizinhos. São locais bem conhecidos em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O primeiro pertence aos quatro herdeiros do empresário Otto Francisco de Assis, que enriqueceu a partir dos anos 1980 com o contrabando de uísque a serviço do bicheiro José Caruzzo Escafura, o Piruinha. O segundo é da família Eloy, cujo patriarca, o empresário Cyro Eckhardt Eloy, ganhou fama na produção de cadeiras (é dele a peça utilizada pelo Papa João Paulo II na primeira visita ao Rio, em 1980) e mais tarde no ramo de confecções. 

A vizinhança uniu os enredos das duas famílias em uma disputa acirrada na Justiça pelo controle das heranças milionárias de Otto Assis e Cyro Eloy – e a história poderia ser só uma disputa por heranças. A questão é que, nos dois casos, foram abertos inquéritos pela Polícia Civil para investigar suspeita de estelionato e falsificação de documentos praticados pelos filhos contra os próprios pais, idosos já em idade avançada.

Não se trata de um caso isolado. Em 2021, a Polícia Civil registrou 11,6 mil casos de estelionato contra idosos na cidade do Rio – média de 32 ocorrências por dia. Em relação ao ano anterior, houve um crescimento de 47% nos registros desse tipo de crime.

 

A família Assis

O imbróglio começou em fevereiro de 2017, quando Jaqueline, filha primogênita de Otto Francisco de Assis e da mulher Zenira, tirou os pais da casa em Cabo Frio (na região dos Lagos fluminense) onde moravam havia sete anos sob os cuidados de Charles, irmão de Jaqueline. Essa última alega que os pais, já idosos (ele com 77 anos, ela com 72) estavam sendo maltratados (segundo Jaqueline disse à polícia, Zenira disse a ela que estava sendo agredida por uma cuidadora). Com desidratação e infecção urinária, Otto foi levado ao hospital, onde ficou por alguns dias, até ter alta e ser levado por Charles para a casa deste último na Barra da Tijuca. 

Zenira, que tempos antes tivera diagnosticado um câncer no cérebro e passava por quimioterapia, passou a morar com Jaqueline. Mesmo fragilizada e com a capacidade cognitiva prejudicada, conforme laudo médico, Zenira cancelou uma procuração para o filho Charles cuidar de seus bens e em março de 2017 assinou outra, dessa vez à advogada de Jaqueline, Renata Mansur Fernandes Bacelar, para que ela cuidasse dos negócios da matriarca. Três meses depois, com forte depressão, Zenira foi internada. Nessa época, segundo o mesmo laudo médico, a idosa já perdera parte da capacidade cognitiva e dizia apenas frases curtas e esparsas.

Mesmo assim, já no mês seguinte, Zenira fez muitos negócios e tomou decisões importantes, sempre favoráveis à filha primogênita. Em 21 de junho, a advogada Renata Bacelar, procuradora de Zenira, registrou em cartório a venda de um apartamento na Avenida Vieira Souto, em Ipanema, Zona Sul do Rio, por 6,65 milhões de reais. No mês seguinte, em 18 de julho de 2017, a matriarca assinou testamento deixando todos os seus bens apenas para Jaqueline e os três netos filhos da primogênita. No documento, a idosa justifica sua decisão: o filho Charles teria sido conivente com as agressões da cuidadora em Cabo Frio e “usufruiu de todo seu dinheiro através de uma procuração dada sob coação, sem lhe prestar contas ou lhe dar uma vida digna” (Charles nega os maus-tratos); sobre a filha Anique, Zenira diz no testamento que ambas nunca tiveram boa relação, e que certa vez a filha teria dito a ela que “mijaria no seu caixão” quando a mãe morresse (a defesa de Anique nega que ela tenha dito isso). Posteriormente, a Justiça concedeu liminar a Charles suspendendo os efeitos do testamento da mãe.

Três meses depois, em outubro de 2017, doou para Jaqueline uma casa de Zenira avaliada em 5 milhões de reais na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade. No ano seguinte, a advogada procuradora ainda vendeu a casa onde Otto e Zenira moravam em Cabo Frio por 2 milhões de reais.

Restavam o Hotel Nobre e a casa em Cabo Frio. No caso do hotel, Otto tinha 49,5% do imóvel, Zenira, 49,5%, e 1% pertencia a Anique, a terceira filha do casal. Bacelar, advogada de Jaqueline e procuradora de Zenira, falou à família sobre um possível comprador. Como Anique também queria vender a propriedade, bastaria a concordância de Otto. No entanto, o idoso fora interditado com um quadro de demência e mal de Parkinson, e, como curador do pai, Charles era contra a venda do hotel. Para driblar o obstáculo, Jaqueline, Anique e Yago (filho de Otto fora do casamento com Zenira) ingressaram com ação na 1ª Vara da Família da Barra da Tijuca solicitando a curatela do pai, com o argumento de que Charles não permitia o acesso dos irmãos tanto ao pai Otto quanto ao Hotel Nobre. 

 

A família Eloy

O “possível comprador” do Hotel Nobre citado pela procuradora era João Carlos de Freitas Eloy, o Cacalo, segundo dos três filhos do empresário Cyro Eloy. Dono de 24 empresas, a maioria no ramo de construção civil e de empreendimentos imobiliários, Cacalo chegou a ser investigado por suposto envolvimento no desvio milionário de dinheiro do INSS capitaneado por Jorgina de Freitas, prima dele. Nos anos 1990, o empresário vendeu mais de uma dezena de imóveis em Petrópolis para um dos advogados que desviaram verbas da Previdência. No entanto, nada ficou provado contra ele, e a investigação foi arquivada. 

Em 2010, Cyro e o filho Cacalo inauguraram em Duque de Caxias o Feirão Moda Rio, com mais de quatrocentas lojas de roupas populares. Depois de muitas brigas entre pai e filho pelo controle do Feirão, em maio de 2019 o patriarca registrou testamento deserdando Cacalo. Cinco meses depois, Ciro de Freitas Eloy, o Cirinho, filho mais velho de Cyro e sócio de Cacalo em seis empresas, apresentou ao pai, na época com 96 anos, acamado e com grave doença pulmonar, um interessado em comprar a metade de Cyro no Feirão por 15 milhões de reais: o empresário Douver Torres Braga, investigado pela Polícia Civil de São Paulo por praticar pirâmide financeira com criptomoedas. O contrato foi assinado em 8 de outubro de 2019. A certeza de Cacalo e Cirinho de que o pai assinaria o acordo era tanta que, um dia antes, Braga e Douver criaram uma nova empresa para administrar o Feirão.

Aquele não era o primeiro ato suspeito de Cacalo contrário aos interesses do pai. Em abril de 2019, Cacalo sacara no banco 3,14 milhões de reais de um plano de previdência privada de Cyro, e que deveria ser dividido igualmente entre os três irmãos. À Justiça, o filho caçula de Cyro e meio irmão de Cirinho e Cacalo, Antônio Luiz Garcia Eloy, acusa o irmão Cacalo de utilizar esse valor para comprar o Hotel Nobre. O imóvel interessava a Cacalo porque, quando o Feirão foi aberto em 2009, Otto Assis cedera parte da área do hotel, cerca de 9 mil m2, para que os Eloy montassem um estacionamento para o Feirão. No entanto, posteriormente, o acordo foi desfeito, e o Feirão ficou sem garagem para os clientes. Quando os Assis quiseram vender o hotel, Cacalo viu uma oportunidade de ouro. Fechou o negócio, comprou o hotel e dias mais tarde demoliu todo o imóvel.

O novo dono do Feirão, no entanto, só pagou à família Eloy 6 milhões dos 15 milhões acordados para se tornar dono de metade do negócio. Em 3 de novembro de 2019, o patriarca de 96 anos fechou um segundo contrato com Braga: vendeu sua metade no Feirão por 10 milhões de reais, 5 milhões a menos do que no acordo inicial, com a justificativa de que Braga descobrira dívidas milionárias do Feirão decorrentes de ações judiciais. Quem assina esse segundo acordo é um advogado procurador de Cyro, já que o idoso estava muito mal de saúde. Cyro morreria em 21 de dezembro de 2020, aos 96 anos.

 

As investigações

Envolta nas tratativas para vender o Hotel Nobre, a família Assis vivia seu próprio conflito. Numa audiência realizada em 10 de dezembro de 2018, em audiência sem a presença de Otto Assis e de Charles (que só foram intimados naquele mesmo dia 10), a juíza Bianca Ferreira do Amaral Machado Nigri concedeu a curatela do patriarca Otto a três dos quatro filhos do empresário, deixando Charles de fora. Segundo especialistas em direito de família, a decisão da juíza em intimar uma das partes com antecedência mínima não é ilegal, mas é incomum. “Normalmente as partes são intimadas com muita antecedência”, diz o advogado Franklin Diccini, especialista em direito de família. Em abril de 2020, Renata Bacelar, procuradora da filha primogênita do casal Assis, refere-se à juíza como “amiga” em uma postagem no Facebook. O Código de Processo Penal prevê que, caso o magistrado seja “amigo íntimo” de uma das partes (e isso inclui os seus advogados, segundo juristas ouvidos pela reportagem), precisa declarar-se suspeito e deixar o caso. 

Procurada pela piauí, Nigri negou ter amizade com a advogada. “Não tenho motivo para me declarar suspeita, na medida em que não sou amiga da dra. Renata Bacelar, não compartilho com a mesma da minha vida particular, apenas a conheço, assim como conheço vários advogados, e os cumprimento com educação e cortesia”, disse via e-mail. Sobre o fato de ter intimado a advogada de Charles apenas no dia da audiência, Nigri não quis se manifestar.

Com a curatela, a advogada Renata Bacelar solicitou à juíza a emissão de alvará judicial para a venda do hotel, com o argumento de que o imóvel já acumulava dívidas de 800 mil reais e que surgira um “possível comprador”. Nigri autorizou a venda. O Nobre foi vendido em maio de 2019 por 4,2 milhões de reais (bem abaixo do valor de mercado, 32 milhões de reais, segundo laudo de imobiliária contratada por Charles) para Cacalo. Àquela altura, Zenira havia sido levada pela filha Jaqueline para Lisboa, Portugal, onde a idosa morreu três dias após a venda do hotel, em 8 de maio de 2019, vítima do câncer e da depressão. 

Jaqueline, Anique e Yago não prestaram contas à Justiça sobre o destino do dinheiro da venda do hotel. Por isso, a Justiça nomeou um perito fora da família como curador. “Os conflitos familiares são de tal monta que os cuidados com o genitor estão sendo deixados de lado. Os filhos estão em tal nível de litígio que sequer conseguem – ou desejam – se organizar para que todos possam desfrutar dos últimos anos de vida do genitor, já idoso e com a saúde abalada. Também as divergências na administração do patrimônio de Otto e de sua esposa Zenira – recentemente falecida – vêm causando prejuízo financeiro capaz de comprometer a própria subsistência do curatelando, o qual, em razão de sua idade avançada e frágil situação de saúde, demanda cuidados especiais, inclusive tratamento médico e auxílio de cuidadores”, escreveu a promotora Larissa Ellwanger Fleury Ryff. Mas os três filhos recorreram ao TJ e conseguiram de volta a curatela do pai. Otto Assis faleceu em dezembro de 2020, vítima de falência múltipla de órgãos. 

A partir de boletim de ocorrência feito por Charles, a Polícia Civil instaurou inquérito para apurar o caso em que se transformou a disputa pela herança da família Assis. Uma perícia constatou que a assinatura de Zenira na procuração à advogada Bacelar foi recortada de outro documento e inserida na procuração. Laudos médicos confirmaram que a matriarca estava “incapaz de praticar os atos da vida civil”. “É certo que sua condição médica não a permitia mais entender o conteúdo dos documentos e expressar sua vontade real. Assim, ainda que tenha assinado os documentos, o fez sem plena consciência”, escreveu a delegada Daniela dos Santos Rebelo Pinto, então titular da Delegacia de Defraudações, no Rio. Jaqueline, Bacelar e três cartorários foram indiciados por estelionato e formação de quadrilha – a advogada também foi indiciada por uso de documento falso. O Ministério Público solicitou diligências antes de decidir se denuncia ou não o grupo à Justiça.

Atualmente, Jaqueline e o marido possuem uma construtora em Cascais, Portugal, com capital social de 125 mil euros. A defesa de Jaqueline ressalvou que a investigação policial tramita em sigilo, mas afirmou que o fato de o Ministério Público ainda não tê-la denunciado demonstra não ter sido comprovado nenhum crime contra ela. Já a advogada Bacelar diz que a perícia policial foi feita sobre uma cópia da procuração entregue por Charles, e não do documento original. “Estou absolutamente tranquila em relação à minha conduta nesse caso e confiante de que o Ministério Público vai arquivar esse caso.” Ela negou ser amiga da juíza Nigri. “Dizer ser amiga é uma maneira de dizer.” Procurado, o promotor André Cardoso não quis comentar o caso, com o argumento de que o inquérito é sigiloso. 

A disputa por herança da família Eloy, com a venda do Feirão, resultou em outro inquérito na Polícia Civil do Rio, aberto para investigar Cacalo e Douver Braga por estelionato contra idoso (no caso, o patriarca Eloy) e associação criminosa. O advogado procurador de Cyro e o filho Cirinho não são investigados, a princípio. Antônio Eloy, inventariante do pai, também ingressou com ação cível na Justiça pedindo a anulação da venda do feirão para Braga. A ação ainda não foi julgada.

Procurados pela piauí, Cacalo e Cirinho não quiseram se manifestar. A defesa de Braga não foi localizada. O espaço segue aberto para eventual manifestação.

*

Após a publicação da reportagem, a advogada Renata Bacelar e o espólio de Otto Francisco de Assis enviaram os seguintes esclarecimentos à piauí: 1) O espólio nega que Assis tenha tido ligações com o contrabando de uísque e o bicheiro José Caruzzo Escafura. 2) Afirma que as vendas dos imóveis ocorreram de forma idônea. 3) A advogada Barcela afirma que Zenira, ex-mulher de Assis, estava no pleno gozo pleno de sua capazidade cognitiva e não tinha diagnóstico de câncer quando cancelou a procuração concedida ao filho Charles. 4) Bacelar afirma que não registrou em cartório a venda de um apartamento de Zenir em Ipanema, no Rio de Janeiro. 5) Bacelar nega que seja amiga da juíza Bianca Nigri. A piauí publica os esclarecimentos para contemplar a versão dos envolvidos, mas mantém as informações originais contidas na reportagem.

 Reportagem atualizada em 24 de novembro de 2022, às 18h09

 

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