Lula e o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, em entrevista coletiva em Brasília Foto: Pedro Ladeira/Folhapress
Está na hora
Aos nove meses de governo Lula, o cinema brasileiro ainda aguarda por providências que o ajudem a superar a crise perpétua
Passados quase nove meses desde a posse do presidente Lula, que recriou o Ministério da Cultura no primeiro dia de seu terceiro mandato, está mais do que na hora de o governo demonstrar de forma objetiva e estruturada o propósito de examinar os dilemas que mantêm o cinema brasileiro em estado de crise perpétua. Crise muito anterior ao surgimento das plataformas de streaming e que costuma ser encoberta por manifestações recorrentes de euforia, tanto da parte de gestores públicos da área quanto pela mídia, em declarações tão inconsistentes quanto ilusórias.
O seminário BNDES do Audiovisual Brasileiro, realizado em 30 de agosto, parece ter sido uma iniciativa positiva, embora tardia e tímida. A julgar pelas informações publicadas a respeito, a impressão é de terem predominado as mesmas propostas de sempre – iniciativas responsáveis por garantir somente a sobrevivência vegetativa do setor, mas que já demonstraram ser incapazes de tornar a produção cinematográfica menos dependente do Estado, portanto ao menos parcialmente autossustentável, e tampouco de assegurar a possibilidade de os filmes brasileiros virem a ocupar lugar relevante no mercado exibidor interno.
Mais animadora do que a declaração retórica de que “faz-se peremptório e urgente elaborar um diagnóstico atualizado do setor” foi a inclusão, entre os desafios listados por Aloizio Mercadante, presidente do BNDES, e Juca Ferreira, assessor da presidência do BNDES, do “estabelecimento de regras para a presença das plataformas e grandes empresas globais no mercado interno”, conforme artigo publicado por eles no jornal O Globo, em 29 de agosto. Presume-se que entre as “grandes empresas globais” estejam as distribuidoras que dominam o circuito de salas de exibição.
Impõe-se, no entanto, reconhecer a prioridade de reformular o aparato institucional que rege a atividade cinematográfica no Brasil. O que temos, além de instituições estaduais e municipais, e das leis que tratam de incentivos fiscais, é uma Agência Nacional do Cinema (Ancine), fundada em 2001, encarregada de atribuições incompatíveis entre si – fomentar, regular e fiscalizar a indústria. Hipertrofiada e burocrática em grau paralisante, a Ancine parece alheia às necessidades básicas do cinema brasileiro e aos verdadeiros males que o afligem.
Estamos há muito tempo na situação paradoxal de haver apreciáveis recursos financeiros para produzir, enquanto a crônica do fracasso anunciado relata de antemão o destino dos filmes, na maioria fadados a serem lançados em salas de cinema com uma sessão por dia em horário inconveniente, desconsiderando seu mérito artístico ou valor comercial. Sem acesso ao mercado externo, confirma-se, desse modo, a inviabilidade de a receita de bilheteria no país propiciar o processo de acumulação de capital necessário para tornar as empresas produtoras mais independentes.
É preciso admitir, porém, que a responsabilidade pelo impasse em que o cinema brasileiro permanece não cabe apenas ao Estado e aos gestores públicos. Muitos de nós, produtores e diretores, temos sido coniventes, para não dizer omissos, com relação à precariedade da nossa atividade profissional que continua a não oferecer perspectivas animadoras. Ao adotar postura imediatista, cada um privilegiando seu próprio projeto individual do momento, deixa-se escapar a percepção de que a produção de filmes na escala atual, a se manter regida pelos mesmos parâmetros, é, na verdade, insustentável.
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Ter assistido há dias, pela primeira vez, a Oldboy (2003), de Park Chan-wook, faz indagar o que – além, naturalmente, de seu paroxismo de violência – diferencia a epopeia sanguinolenta coreana da maioria dos filmes brasileiros atuais.
Tendo recebido o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes, em 2004, e sido lançado no Brasil no ano seguinte, Oldboy foi relançado na semana passada em 56 cinemas de 25 cidades brasileiras. O filme narra a jornada de um homem comum, Oh Dae-su (Choi Min-sik), em busca de vingança, ao longo de cinco dias, após ter sido mantido em cárcere privado durante quinze anos.
Para o crítico Peter Bradshaw, quando Dae-su “finalmente consegue se libertar, ele não é o fantasma catatônico de um homem esmagado como poderíamos esperar: ele está empolgado e se tornou uma máquina de vingança, capaz de qualquer coisa (inclusive comer um polvo vivo por puro prazer, um dos grandes momentos de humor negro do cinema coreano). Uma incursão no mais selvagem dos lados selvagens”, Oldboy é “um thriller chocantemente horrível, mas de inspiração demoníaca, baseado no mangá japonês de Nobuaki Minegishi e Garon Tsuchiya que veio para sintetizar o gênero ‘Ásia extrema’: uma nova fronteira de loucura anormalmente violenta.” A resenha foi publicada no The Guardian, em agosto de 2019.
Além de ter sido produzido com orçamento de 3 milhões de dólares e obtido até agora renda pouco acima de 17 milhões de dólares, sendo 85,8% disso no mercado mundial – parâmetros inimagináveis para produções brasileiras –, um dos aspectos de Oldboy que mais se destaca em comparação com nosso cinema foi assinalado com precisão em uma crítica intitulada Trovão vindo da Coreia, de 2005: “Tantos filmes, mesmo alguns muito bem-feitos, parecem mortos quando os assistimos. Mas Oldboy está desesperadamente vivo, algo de que Quentin Tarantino estava claramente consciente quando tentou angariar apoio para o filme entre os seus colegas membros do júri no Festival de Cinema de Cannes… E quando algo está tão vivo assim, Hollywood sente cheiro de dinheiro…” A resenha foi escrita pela crítica de cinema americana Stephanie Zacharek.
Não faltam exemplos de filmes que “parecem mortos”. Já filmes “desesperadamente vivos” andam cada vez mais raros por aqui.
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